segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

É POSSÍVEL SER GENTE


“Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem”. (Nelson Rodrigues)


Como inicio?...
Como começo?...
Devo admitir: não faço ideia. Certos hábitos se vão com o tempo. Digo, o não-hábito, ou a falta dele, nos leva à não-ação. Não sei se me faço entender. Se o sujeito vomitasse todo dia pelo menos uma única e singela vez, talvez já se entediasse de cada novo episódio emético, de modo que aquilo não passaria de uma coisa a mais a lhe sobrevir no dia. E, após o icto, abriria a bocarra em bocejos de entojo interminável. Estou a dizer o óbvio, quero crer.
Certa feita, há poucos anos, perguntei a meu pai sobre seus amigos, o que era feito deles, onde andavam... Uns poucos, sabia eu, já haviam morrido. Outros haviam sumido, simplesmente sumiram... Daí minha curiosidade.
Em criança, meus pais e seus amigos estavam sempre juntos em festas de família, jogos de baralho, passeios nas praias, viagens de trabalho, eventos sociais de entidades filantrópicas das quais faziam parte... Os filhos de todos se misturavam nessa comunidade de famílias de classe média que compunham o que minhas irmãs e eu entendíamos como os amigos de nossos pais. Sim, naquele tempo os casais tinham casais amigos. Os amigos eram casais amigos com seus filhos, a secretária do lar, o gato, o cachorro, e por aí vai. As festas eram nos clubes e os velórios em casa do morto ou, se pequena a moradia, em casa de parente próximo.
Eis que veio o tempo. Resolvi que queria saber daquele povo tão unido que tanto marcara a vida da gente.
“Pai, onde estão seu amigos?” Meu velho, numa entonação de voz demonstrativa de sua conclusão peremptória, fuzilou: “Não tenho amigos... Não existem amigos, meu filho”... (As reticências tentam expressar sua aura de decepção e, talvez, dor.)
Já presumia, eufemizando sua conclusão, que as forças centrífugas da vida se avolumam ainda mais à terceira idade. Por outro lado, cogitei estivesse a lamentar a morte de alguns, ou o exílio nacional de um ou outro... Mas, ao término dessas lucubrações silenciosas, entendi o que ele tentava me passar: – que a amizade é uma grande e dolorosa farsa, na qual cremos por toda a vida.
Meu velho estava como que explicando o que quis dizer o poeta quando disse “se o cachorro é o melhor amigo do homem, o charuto é o cachorro enrolado e o uísque é o cachorro engarrafado”. Para o poeta, seus únicos amigos verdadeiros eram o charuto e o uísque, seus vícios, seus prazeres. De carne e osso mesmo não havia nenhum. De carne e osso morriam todos; não a morte física, mas a morte que paria repetidamente o não-amigo e o anti-amigo. Poderia, talvez, dizer o “ex-amigo”, o que denotaria um rompimento tácito do relacionamento que já não relaciona um a outro.
O que acontece é precisamente o seguinte.
Com o inexorável advento das chamadas “redes sociais” e da vida virtual, as interações humanas se tornaram diárias, horárias, minutárias e até segundárias. (Desculpem-me tantos neologismos...) Interação seria, novamente, uma eufemização da desgraça em que se tornaram certas amizades seculares.
Tal frequência crescente veio acompanhada de um intenso superficialismo interpessoal, uma imensa fragilização da energia vital da antiga, pétrea e, por que não dizer, verdadeira amizade.  Seria minha hipótese uma dessas absurdas teorias que nunca se confirmam na realidade dos fatos? Vejamos.
Ora, o país foi sacudido. Não entremos nos meandros do terremoto político nem da natureza de sua qualidade. Só não sente dor quem é psicopata. (Falo da dor da empatia pelo sofrer alheio.) A sacudida foi tão espetacular que dividiu esta terra como “nunca antes na história deste país”. De fato, e sem muita lengalenga, a nação já vinha repartida, não pelo terremoto, mas por aqueles que haviam denominado a uns de eles e a si mesmos de nós. Nós eram, em seu pretensioso entender, os donos da mudança, da verdade absoluta, da virtude supra-humana inexistente em qualquer outro local do globo, ainda que outros, semelhantes, ao longo da história desta raça, só houvessem trazido dor, doença, sofrimento, perseguição, perda da liberdade de milhões e morte na mesma quantidade. Aqui não se trata de opinião – aqui falam os fatos.
A propósito, poderia lembrar outra do Nelson, quando disse que “se os fatos falam contra mim, então pior para os fatos”. Quanta ironia!... Logo o Nelson, que denunciou durante anos, em sua relativamente curta vida, o que nós estavam plantando mundo afora...! Com certeza o escritor estava a pilheriar, empunhando sua adaga contra os que não eram pó de arroz, dentro ou fora do Estádio Mário Filho. (Para ele, Maracanã era unicamente e exclusivamente o rio que corta o Rio.) Pois nós são os que vivem a se comportar, ironicamente, segundo a frase de um de seus mais tenazes e ferozes combatentes: “Se os fatos falam contra nós, então pior para os fatos!!”
Mas, o que tem a ver a tal sacudida com redes sociais e amigos na e fora da rede social? amigos desde as fraldas e depois de calças curtas? vestidos de coroinhas no dia da primeira comunhão, ou jogando peladas com tampas de refrigerante ou bolas de meia quando faltava a bola Pelé? (A dente-de-leite veio depois.) Respondo sem delongas: tem a ver com a cretinização pela qual passamos. Ah, como não entender o trecho de Gênesis sobre a inocência...!? “E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher, e não se envergonhavam”. É esta cretinização a causa de toda essa coisa maluca que distancia o que já foi puro – amigos que sonhavam e brincavam juntos, como se não existisse o mal, a dor, o fim de si mesmos e de seus mais amados entes.
Não falemos de extremos, que o sol nasce bem a leste e se põe lá longe, a oeste. Mas é compreensível, não menos lamentável, que terremotos sacudam a terra, assim como maremotos e tsunamis despejem as águas com força, longe de seus reservatórios. Mesmo o Cristo irou-se uma vez quando, ainda no viger dos serviços do Santuário, expulsou, usando a força física, os que maculavam o templo com o comércio profano. Era, já então, a cretinização. Nem a Majestade dos Céus a tolerou.
Papai está velho. Vez ou outra se refere à própria morte, ainda se deixando preocupar com assuntos da vida de quem ainda ficar. Sorrio para ele e uma lágrima me desce a face, alegria misturada com diminuta dor, uma espécie de saudade antecipada. Sorrio porque constato sua inocência cheia de história de tentações; pela certeza de que não se cretinizou; pelo menino manso e saudoso em que se tornou.
   Concluí: envelhecer deve ser isso – tornar-se criança de novo, não se envergonhar de estar nu. Amigos de fato são aqueles que compartilham conosco a nudez dos inocentes, porque não têm do que se envergonhar. Como disse Cícero, não é possível a amizade entre maus caracteres. Não é possível ser perfeito neste plano, mas é possível ser humano.  


O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...