“Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a
única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem”. (Nelson
Rodrigues)
Como inicio?...
Como começo?...
Devo admitir: não faço ideia. Certos hábitos se vão
com o tempo. Digo, o não-hábito, ou a falta dele, nos leva à não-ação. Não sei
se me faço entender. Se o sujeito vomitasse todo dia pelo menos uma única e
singela vez, talvez já se entediasse de cada novo episódio emético, de modo que
aquilo não passaria de uma coisa a mais a lhe sobrevir no dia. E, após o icto, abriria
a bocarra em bocejos de entojo interminável. Estou a dizer o óbvio, quero crer.
Certa feita, há poucos anos, perguntei a meu pai
sobre seus amigos, o que era feito deles, onde andavam... Uns poucos, sabia eu,
já haviam morrido. Outros haviam sumido, simplesmente sumiram... Daí minha
curiosidade.
Em criança, meus pais e seus amigos estavam sempre
juntos em festas de família, jogos de baralho, passeios nas praias, viagens de
trabalho, eventos sociais de entidades filantrópicas das quais faziam parte...
Os filhos de todos se misturavam nessa comunidade de famílias de classe média
que compunham o que minhas irmãs e eu entendíamos como os amigos de nossos pais. Sim, naquele tempo os casais tinham
casais amigos. Os amigos eram casais amigos com seus filhos, a secretária do
lar, o gato, o cachorro, e por aí vai. As festas eram nos clubes e os velórios
em casa do morto ou, se pequena a moradia, em casa de parente próximo.
Eis que veio o tempo. Resolvi que queria saber
daquele povo tão unido que tanto marcara a vida da gente.
“Pai, onde estão seu amigos?” Meu velho, numa
entonação de voz demonstrativa de sua conclusão peremptória, fuzilou: “Não
tenho amigos... Não existem amigos, meu filho”... (As reticências tentam
expressar sua aura de decepção e, talvez, dor.)
Já presumia, eufemizando sua conclusão, que as
forças centrífugas da vida se avolumam ainda mais à terceira idade. Por outro
lado, cogitei estivesse a lamentar a morte de alguns, ou o exílio nacional de
um ou outro... Mas, ao término dessas lucubrações silenciosas, entendi o que
ele tentava me passar: – que a amizade é uma grande e dolorosa farsa, na qual
cremos por toda a vida.
Meu velho estava como que explicando o que quis
dizer o poeta quando disse “se o cachorro é o melhor amigo do homem, o charuto
é o cachorro enrolado e o uísque é o cachorro engarrafado”. Para o poeta, seus
únicos amigos verdadeiros eram o charuto e o uísque, seus vícios, seus
prazeres. De carne e osso mesmo não havia nenhum. De carne e osso morriam todos;
não a morte física, mas a morte que paria repetidamente o não-amigo e o
anti-amigo. Poderia, talvez, dizer o “ex-amigo”, o que denotaria um rompimento
tácito do relacionamento que já não relaciona um a outro.
O que acontece é precisamente o seguinte.
Com o inexorável advento das chamadas “redes
sociais” e da vida virtual, as interações humanas se tornaram diárias,
horárias, minutárias e até segundárias. (Desculpem-me tantos
neologismos...) Interação seria, novamente, uma eufemização da desgraça em que se tornaram certas amizades
seculares.
Tal frequência crescente veio acompanhada de um
intenso superficialismo interpessoal, uma imensa fragilização da energia vital
da antiga, pétrea e, por que não dizer, verdadeira amizade. Seria minha hipótese uma dessas absurdas
teorias que nunca se confirmam na realidade dos fatos? Vejamos.
Ora, o país foi sacudido. Não entremos nos meandros
do terremoto político nem da natureza de sua qualidade. Só não sente dor quem é
psicopata. (Falo da dor da empatia pelo sofrer alheio.) A sacudida foi tão
espetacular que dividiu esta terra como “nunca antes na história deste país”.
De fato, e sem muita lengalenga, a nação já vinha repartida, não pelo
terremoto, mas por aqueles que haviam denominado a uns de eles e a si mesmos de nós.
Nós eram, em seu pretensioso
entender, os donos da mudança, da verdade absoluta, da virtude supra-humana
inexistente em qualquer outro local do globo, ainda que outros, semelhantes, ao
longo da história desta raça, só houvessem trazido dor, doença, sofrimento,
perseguição, perda da liberdade de milhões e morte na mesma quantidade. Aqui não
se trata de opinião – aqui falam os fatos.
A propósito, poderia lembrar outra do Nelson,
quando disse que “se os fatos falam contra mim, então pior para os fatos”. Quanta
ironia!... Logo o Nelson, que denunciou durante anos, em sua relativamente
curta vida, o que nós estavam
plantando mundo afora...! Com certeza o escritor estava a pilheriar, empunhando
sua adaga contra os que não eram pó de
arroz, dentro ou fora do Estádio Mário Filho. (Para ele, Maracanã era unicamente e exclusivamente
o rio que corta o Rio.) Pois nós são
os que vivem a se comportar, ironicamente, segundo a frase de um de seus mais
tenazes e ferozes combatentes: “Se os
fatos falam contra nós, então pior para os fatos!!”
Mas, o que tem a ver a tal sacudida com redes
sociais e amigos na e fora da rede social? amigos desde as fraldas e depois de calças
curtas? vestidos de coroinhas no dia da primeira comunhão, ou jogando peladas
com tampas de refrigerante ou bolas de meia quando faltava a bola Pelé? (A
dente-de-leite veio depois.) Respondo sem delongas: tem a ver com a cretinização pela qual passamos. Ah,
como não entender o trecho de Gênesis sobre a inocência...!? “E ambos estavam nus, o homem e a sua
mulher, e não se envergonhavam”. É esta cretinização a causa de toda essa
coisa maluca que distancia o que já foi puro – amigos que sonhavam e brincavam
juntos, como se não existisse o mal, a dor, o fim de si mesmos e de seus mais amados
entes.
Não falemos de extremos, que o sol nasce bem a
leste e se põe lá longe, a oeste. Mas é compreensível, não menos lamentável,
que terremotos sacudam a terra, assim como maremotos e tsunamis despejem as
águas com força, longe de seus reservatórios. Mesmo o Cristo irou-se uma vez
quando, ainda no viger dos serviços do Santuário, expulsou, usando a força
física, os que maculavam o templo com o comércio profano. Era, já então, a cretinização.
Nem a Majestade dos Céus a tolerou.
Papai está velho. Vez ou outra se refere à própria
morte, ainda se deixando preocupar com assuntos da vida de quem ainda ficar. Sorrio
para ele e uma lágrima me desce a face, alegria misturada com diminuta dor, uma
espécie de saudade antecipada. Sorrio porque constato sua inocência cheia de
história de tentações; pela certeza de que não se cretinizou; pelo menino manso
e saudoso em que se tornou.
Concluí: envelhecer deve ser isso – tornar-se
criança de novo, não se envergonhar de estar nu. Amigos de fato são aqueles que
compartilham conosco a nudez dos inocentes, porque não têm do que se
envergonhar. Como disse Cícero, não é possível a amizade entre maus caracteres.
Não é possível ser perfeito neste plano, mas é possível ser humano.