sábado, 6 de abril de 2024

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura. 

Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía cedo para o trabalho. Ele não – ficava em casa o dia inteiro. Às vezes saía, tinha reuniões de trabalho, coisas a resolver. Mas gostava mesmo era do fundo da rede. A sesta depois do almoço era sagrada. 
– “Meu trabalho é em casa, meu amor”, dizia. “É home office” ... 
Ela não se conformava. Diferente dele, saía diariamente para o emprego e voltava para casa no começo da noite. Nem o fato de ele cuidar da casa como um serviçal amenizava a frustração de ver seu homem em casa a maior parte do tempo. Cuidava do jardim, varria a calçada, limpava a piscina... E ela: – “Onde já se viu? Não faz nada! Absurdo”! E a coisa foi piorando entre ela e ele. 
Não deu outra – a separação resolveria tudo. 
“Gostamos um do outro, mas não dá mais”, disse ele a um amigo. E completou – “Mulher chata, bicho... um pé no saco”! E ainda: – “Gente boa... mas um pé no saco”. 
De fato, seria a segunda tentativa de separação, já que em vez anterior até fechara um contrato de aluguel de um apartamento onde moraria, mas acabou por rescindi-lo. O amor falou mais alto para, em seguida, a vontade de dela se afastar tornar-se insuperável. Nem pelo mais robusto amor ficaria um dia a mais naquela casa na companhia da mulher.

                                                                         ***

                Alugou um apartamentinho pequeno no Meireles, bairro nobre, a duas quadras da praia, da Avenida Beira-Mar. Podia não ter nada no cubículo, mas tinha a varanda virada para a praia. Não consta ter vista mar, já que outros prédios na frente bem podiam atrapalhar a vista. Porém, a tal varanda dava para a vastidão dos céus, dos ventos, das nuvens, do sol e da lua. Já bastava. E tinha os armadores de rede. Em suma – alugara um espaço no Céu, utilizando uma figura de linguagem bem aquém do real. 
            Não podia faltar o som. Sim, punha ali na saleta que dava para a varanda as caixas de som da radiola. Apreciava os velhos e bons toca-discos de vinil. Frequentava sebos e neles adquiria antigos e bons LP’s do tempo da adolescência. E gostava tanto de raridades que comprara recentemente de um amigo o “THE DARK SIDE OF THE MOON”, em sua posse desde os anos ’70. A bem da verdade, adquirira dois exemplares do referido LP, uma delas colocada em moldura refinadíssima como a de um NARCISO pendurada na parede para sua eterna admiração. 
            Da rede ficava a apreciar o valoroso quadro enquanto se deliciava ouvindo Clare Torry em “THE GREAT GIG IN THE SKY”... 
            –“Me arrepio todo, bicho”!, dizia ao descrever sua cena.

                                                                            ***

           Tempos depois uma loira cinquentona e exuberante engraçou-se dele. Conheceram-se na Beira-Mar, sei lá. Não demorou muito a se engalfinharem em prazeres quase diários. Descobriu nela orgasmos múltiplos e infindáveis. 
          -“Gozou trinta e três vezes, bicho! Uma loucura”! Dir-se-ia estar em transe, possuída por entidades. E, depois do episódio, saiu a falar como o Cebolinha do Maurício: tlinta-e-tlês, tlinta-e-tlês, tlinta-e-tlês... Mais – fazia pilhéria do pedido do esculápio ao enfermo: – “Diga trinta e três”! 
            Estava todo faceiro até perceber nela certas inconveniências.
            - “É louca, bicho. Quer saber detalhes do passado de minha vida amorosa” ... 
            Perguntava de tudo e de todas. E quando bebia era o diabo – demonstrava um ciúme desproporcional ao envolvimento recente. A coisa foi tão impactante que ele resolveu dar-lhe um gelo. Dava desculpas para não a encontrar. 
      A pressão alta e o diabetes mereciam cuidados. Afinal, já tinha até passado por procedimento para desentupir as coronárias. Queria mais aquilo, não. Todo cuidado é pouco, dizia. Não convinha estresses desnecessários com outro convívio improdutivo. E descia três – ou seriam tlês? – a quatro vezes na semana a uma farmácia vizinha ao condomínio para verificar se suas mazelas estavam sob controle. 
          De tanto lá ir tornou-se conhecido dos funcionários, notadamente das farmacêuticas que lá faziam o trabalho de atender os que queriam medir a pressão e verificar a glicose no sangue

                                                                            ***
 – “Senhor Amorim, o senhor está muito bem”, disse a farmacêutica certo dia e a certa altura do atendimento. 
– “Suas mãos são macias e o senhor tem uma áurea intensamente positiva. É um homem muito interessante” ..., continuou. 
– “Lembro de o senhor ter dito que não costuma beber, não é isso”? 
Ele, que já tinha notado e observado as formas da doutora, não hesitou. Respondeu: – “Não bebo, mas posso perfeitamente acompanhar amigos num drinque”. Era noite. Ele continuou: – “A que horas você está livre? Tenho lá em cima, em casa, um delicioso reserva francês tinto... Posso acompanhá-la, se quiser. Que tal”? 
Ela respondeu balançando positivamente a cabeça e mordendo safadamente o lábio inferior.
           O que Amorim não quis me confessar até hoje foi se o pessoal do Parque Manibura ainda tem ido vê-lo com a mesma regularidade após a separação e vice-versa. Afinal, a farmácia é colada no prédio do homem. 

sábado, 11 de novembro de 2023

"SEU" ANTÔNIO, DISCÍPULO DE NASSIM NICHOLAS TALEB

           O que aconteceu foi o seguinte.

Contrataram “Seu” Antônio, lá para as bandas de Crateús, para confeccionar e pôr no lugar a escada helicoidal do Teatro Rosa Moraes. Seu Antônio é um homem simples. Seu ego é tão raso que, usando uma do Nelson Rodrigues, uma formiguinha atravessaria a pé com água pelas canelas. Seu aprendizado veio da prática diária em seu ofício. Nada de curso superior, nada de pós-graduação, nada de mestrado... Como se diz por aqui, Seu Antônio aprendeu com o dele na reta. Sempre. Quero crer que tenha fracassado a não mais poder.

Assim, lavrado o contrato, ele e seus empregados colocaram mãos à obra na valiosa peça que ligaria o andar térreo ao superior daquela casa de espetáculos.

Certo dia, terminado o trabalho na oficina, a escada – uma estrutura única, indivisível e inseparável – foi levada para ser colocada em seu devido lugar, um estreito espaço previamente designado e planejado a ela. Lá chegando, Seu Antônio e seus colegas deram de cara com outros trabalhadores que também estavam envolvidos na obra do teatro. Eram engenheiros civis, engenheiros elétricos, engenheiros hidráulicos..., enfim, uma penca de gente bem “curriculada” e deveras “intitulada”. 

Estes, vendo o séquito de Seu Antônio carregando aquele monte de ferro à moda Watson & Crick, saíram a opinar e especular.

Um deles disse: –“Isso não se encaixa aí...”

              Outro opinou logo a seguir: –“Não vai caber no espaço...”

O terceiro já foi sugerindo a solução: – “Vai ter que cortar pra entrar...” “

Um baixinho encorpado e esculpido já criticava o séquito do homem: – “Esses caras são doidos...”

O último, meneando a cabeça em desalento, fuzilou: – “Não vai dar...”

Seu Antônio com a mão esquerda alisava o queixo e o bigode em sua humilde e resignada paciência, ouvindo o que diziam os doutos senhores da engenharia em seus péssimos e irretratáveis prognósticos.

Aos poucos foi silenciando o burburinho, ao que Seu Antônio falou, dirigindo-se a seus humílimos e compenetrados colaboradores: –“Vamos lá, meninos...”

E, em manobras circulares inclinadas e alternadas num vai-e-vem sincronizado, harmônico e como se bem ensaiado denotando toda uma experiência e skill, esses homens instalaram e puseram em seu lugar a pesada estrutura de ferro. Tudo isso sem nenhum dano, um arranhão sequer, a qualquer parede ou outro componente físico do teatro.   

            O silêncio dos títulos deu lugar à evidência e excelência da força do que faz. Todos saíram dali sem dar um pio. Comenta-se que até pararam de respirar ao sair do recinto.

É POSSÍVEL SER HUMANO

                     “Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem”. (Nelson Rodrigues)

 

Como inicio?...

Como começo?...

Devo admitir: não faço ideia. Certos hábitos se vão com o tempo. Digo, o não-hábito, ou a falta dele, nos leva à não-ação. Não sei se me faço entender. Se o sujeito vomitasse todo dia pelo menos uma única e singela vez, talvez já se entediasse de cada novo episódio emético, de modo que aquilo não passaria de uma coisa a mais a lhe sobrevir no dia. E, após o icto, abriria a bocarra em bocejos de entojo interminável. Estou a dizer o óbvio, quero crer.

Certa feita, há poucos anos, perguntei a meu pai sobre seus amigos, o que era feito deles, onde andavam... Uns poucos, sabia eu, já haviam morrido. Outros haviam sumido, simplesmente sumiram... Daí minha curiosidade.

Em criança, meus pais e seus amigos estavam sempre juntos em festas de família, jogos de baralho, passeios nas praias, viagens de trabalho, eventos sociais de entidades filantrópicas das quais faziam parte... Os filhos de todos se misturavam nessa comunidade de famílias de classe média que compunham o que minhas irmãs e eu entendíamos como os amigos de nossos pais. Sim, naquele tempo os casais tinham casais amigos. Os amigos eram casais amigos com seus filhos, a secretária do lar, o gato, o cachorro, e por aí vai. As festas eram nos clubes e os velórios em casa do morto ou, se pequena a moradia, em casa de parente próximo.

Eis que veio o tempo. Resolvi que queria saber daquele povo tão unido que tanto marcara a vida da gente.

“Pai, onde estão seu amigos?” Meu velho, numa entonação de voz demonstrativa de sua conclusão peremptória, fuzilou: “Não tenho amigos... Não existem amigos, meu filho”... (As reticências tentam expressar sua aura de decepção e, talvez, dor.)

Já presumia, eufemizando sua conclusão, que as forças centrífugas da vida se avolumam ainda mais à terceira idade. Por outro lado, cogitei estivesse a lamentar a morte de alguns, ou o exílio nacional de um ou outro... Mas, ao término dessas lucubrações silenciosas, entendi o que ele tentava me passar: – que a amizade é uma grande e dolorosa farsa, na qual cremos por toda a vida.

Meu velho estava como que explicando o que quis dizer o poeta quando disse “se o cachorro é o melhor amigo do homem, o charuto é o cachorro enrolado e o uísque é o cachorro engarrafado”. Para o poeta, seus únicos amigos verdadeiros eram o charuto e o uísque, seus vícios, seus prazeres. De carne e osso mesmo não havia nenhum. De carne e osso morriam todos; não a morte física, mas a morte que paria repetidamente o não-amigo e o anti-amigo. Poderia, talvez, dizer o “ex-amigo”, o que denotaria um rompimento tácito do relacionamento que já não relaciona um a outro.

O que acontece é precisamente o seguinte.

Com o inexorável advento das chamadas “redes sociais” e da vida virtual, as interações humanas se tornaram diárias, horárias, minutárias e até segundárias. (Desculpem-me tantos neologismos...) Interação seria, novamente, uma eufemização da desgraça em que se tornaram certas amizades seculares.

Tal frequência crescente veio acompanhada de um intenso superficialismo interpessoal, uma imensa fragilização da energia vital da antiga, pétrea e, por que não dizer, verdadeira amizade.  Seria minha hipótese uma dessas absurdas teorias que nunca se confirmam na realidade dos fatos? Vejamos.

                     Ora, o país foi sacudido. Não entremos nos meandros do terremoto político  nem da natureza de sua qualidade. Só não sente dor quem é psicopata. (Falo da dor da empatia pelo sofrer alheio.) A sacudida foi tão espetacular que dividiu esta terra como “nunca antes na história deste país”. De fato, e sem muita lengalenga, a nação já vinha repartida, não pelo terremoto, mas por aqueles que haviam denominado a uns de eles e a si mesmos de nós. Nós eram, em seu pretensioso entender, os donos da mudança, da verdade absoluta, da virtude supra-humana inexistente em qualquer outro local do globo, ainda que outros, semelhantes, ao longo da história desta raça, só houvessem trazido dor, doença, sofrimento, perseguição, perda da liberdade de milhões e morte na mesma quantidade. Aqui não se trata de opinião – aqui falam os fatos.

    A propósito, poderia lembrar outra do Nelson, quando disse que “se os fatos falam contra mim, então pior para os fatos”. Quanta ironia!... Logo o Nelson, que denunciou durante anos, em sua relativamente curta vida, o que nós estavam plantando mundo afora...! Com certeza o escritor estava a pilheriar, empunhando sua adaga contra os que não eram pó de arroz, dentro ou fora do Estádio Mário Filho. (Para ele, Maracanã era unicamente e exclusivamente o rio que corta o Rio.) Pois nós são os que vivem a se comportar, ironicamente, segundo a frase de um de seus mais tenazes e ferozes combatentes: “Se os fatos falam contra nós, então pior para os fatos!!”

    Mas, o que tem a ver a tal sacudida com redes sociais e amigos na e fora da rede social? amigos desde as fraldas e depois de calças curtas? vestidos de coroinhas no dia da primeira comunhão? ou jogando peladas com tampas de refrigerante ou bolas de meia quando faltava a bola Pelé? (A dente-de-leite veio depois.) Respondo sem delongas: tem a ver com a cretinização pela qual passamos. Ah, como não entender o trecho de Gênesis sobre a inocência...!? “E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher, e não se envergonhavam”. É esta cretinização a causa de toda essa coisa maluca que distancia o que já foi puro – amigos que sonhavam e brincavam juntos, como se não existisse o mal, a dor, o fim de si mesmos e de seus mais amados entes.

    Não falemos de extremos, que o sol nasce bem a leste e se põe lá longe, a oeste. Mas é compreensível, não menos lamentável, que terremotos sacudam a terra, assim como maremotos e tsunamis despejem as águas com força, longe de seus reservatórios. Mesmo o Cristo irou-se uma vez quando, ainda no viger dos serviços do Santuário, expulsou, usando a força física, os que maculavam o templo com o comércio profano. Era, já então, a cretinização. Nem a Majestade dos Céus a tolerou.

    Papai está velho. Vez ou outra se refere à própria morte, ainda se deixando preocupar com assuntos da vida de quem ainda ficar. Sorrio para ele e uma lágrima me desce a face, alegria misturada com diminuta dor, uma espécie de saudade antecipada. Sorrio porque constato sua inocência cheia de história de tentações; pela certeza de que não se cretinizou; pelo menino manso e saudoso em que se tornou.

   Concluí: envelhecer deve ser isso – tornar-se criança de novo, não se envergonhar de estar nu. Amigos de fato são aqueles que compartilham conosco a nudez dos inocentes, porque não têm do que se envergonhar. Como disse Cícero, não é possível a amizade entre maus caracteres. Não é possível ser perfeito neste plano, mas é possível ser humano. 

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

UMA HISTÓRIA DE MULHERES

 Mulheres têm história. E histórias. No plural. Por que afirmo isso a essas alturas do campeonato? Porque conto tantas histórias cujos protagonistas são figuras masculinas que possa parecer que desconheço o fato de que as mulheres também têm suas histórias. Então, deixem-me dizer uma verdade: como têm histórias as mulheres!

Outro dia fiz um comentário sobre o pensamento de uma querida amiga e o resultado foi que acabei por magoá-la. Foi involuntário. Em nenhum momento quis lhe desdenhar a ideia. Apenas a combati – a idéia – com uma veemência tal que talvez tenha parecido a seus olhos uma audácia de minha parte. Pedi-lhe perdão pela mágoa, mas ratifiquei meu persistente desacordo com sua ideia. A mulher é um ser especial, não resta dúvida. Diz a Rita Lee que “mulher é bicho esquisito, todo mês sangra.” E diz também: “nas duas faces de Eva a bela e a fera.” E avisa repetidas vezes, com maior veemência que a minha: “por isso não provoque, não provoque, não provoque, não provoque, não...” Eu, mais ligado à melodia e à harmonia e avoado aos dizeres e alertas da letra, anos e anos ouvindo, acabei por sentir na pele o que é contrariar uma mulher.

Pergunto-me agora, no exato instante em que escrevo estas linhas, e por ter passado por essa experiência decorrente de minha mania de escrever crônicas, se não adquiri um heart’s core feeling que me impele à lonjura das histórias femininas. Gato escaldado tem medo de água fria. Mas, se fico exclusivamente em território masculino perco as miríades de possibilidades do universo feminino. Vejam que o Amorim nunca me chamou às conversas por sequer uma linha que tenha escrito sobre ele e seus inúmeros causos. E assim também o Padilha, o Chico, o Pinto, o Mesquita. Não quero concluir que as mulheres perderam seu apurado senso de humor. Não. Fica aqui registrada minha recusa em acreditar nesta possibilidade.

Se pensarmos melhor, não é que escreva sobre histórias onde os homens sejam os principais protagonistas. A verdade verdadeira é que por detrás de toda boa história “masculina” há sempre uma mulher - ou mais de uma! – a protagonizá-la. Se não, vejamos.

Tomemos o Padilha como exemplo. Nem é preciso dele contar uma história. Coloquemos como pano de fundo de qualquer de suas histórias algumas características únicas do homem. Observem que a expressão “características únicas” é um deslavado pleonasmo que me vem em socorro apenas para enfatizar o meu discurso. Já verão o que digo.

Há uma noção entre as mulheres cearenses de que o homem da terra é mal-educado e pouco ou nada cavalheiro. E – pior! – que o interesse maior do cearense com uma mulher é ir direto ao “ato”. E não há um único e solitário conterrâneo que escape a essa condenação sumária. Desde o governador até o catador de lixo passando pela elite pensante e educante, toda nossa população masculina é de trogloditas. Eles não voltam para casa – voltam para suas cavernas após o trabalho. Eu disse que há uma noção? Minto: - é uma dessas certezas que se equiparam à da morte.

Digamos, então, que todas as mulheres cearenses são, desde já e sem direito à recusa, protagonistas de qualquer história do Padilha. Por quê? Simples: o Padilha é a exceção. Ele é dessas raridades que nos envergonham e deixam a rosnar os vermes das grutas. O Padilha abre portas, puxa cadeiras, beija na mão, sorri olhando no olho, enfim, é um lord refinadíssimo. Aos que se estão roendo de inveja e procurando uma brecha para desmascarar o homem, aviso: impossível. Padilha é cavalheiro com uma mulher que conquiste desde o primeiro dia até sua morte. O problema está em provar a matéria. Padilha já casou uma penca de vezes e não parece que dará chance a provar a tese: - separou-se de todas elas. A única vingança possível é que o Padilha é nordestino, mas não é cearense.

Termino concluindo o que me parece o mais lógico. Padilha tinha de ser cearense ou as mulheres não gostam de tanto cavalheirismo assim. Essa é uma história de mulheres. Se não fosse por elas não existiria um Padilha. Perceberam?

 

Fernando Cavalcanti, 10.12.2010

UMA DO CHICOTE

 Dizes que sou o indivíduo que mais amigos de infância tem. Pois queres saber? É a mais pura verdade, e ainda sinto aquela vaidade pueril em tê-los. O que é a amizade nesses tempos difíceis? Diria ser algo quase impossível, algo que não tem preço. E bem sei que conheces alguns de meus amigos do tempo das fraldas e da merendeira, o Amorim, o Motta, o Baxim, o Mesquita, o Bacana, e outros, e outros, e outros. São tantos que às vezes não percebo quão rico sou.

            O que não sei é se conheces o Chicote. Conheces o Chicote? Isso mesmo: Chicote. Não, não o chamam assim por ser ele um Francisco pequeno, miúdo, raquítico, um Chico anão. Recebeu esse epíteto por ser um sujeito mordacíssimo, quase intolerável. Sua mordacidade atingia a vítima como uma chicotada. Daí o apelido. O tempo só serviu a aperfeiçoá-lo em sua habilidade maior: as chicotadas.

            Sujeito inteligente, leitor voraz, cultivou um bigode lustroso que cobria dentes incrivelmente brancos quando de uma de suas comedidas gargalhadas. É mulato, do tipo dado à pândega. Formou-se médico e tornou-se conceituadíssimo entre seus pares e pacientes. Competentíssimo em seu mister, cultiva amizades ecléticas que inclui o vigia do prédio onde mora a figuras do high society. Para falar a verdade, tudo no Chicote é de um ecletismo abissal, as mulheres que conquistou aí incluídas. Na literatura lê rótulo de raticida; na música ouve até o João do Pífaro. 

            Dirás que supervalorizo o amigo, já que não lhe atribuo defeitos. Ora, o defeito é universal ao passo que a qualidade é individual e única, quando muito, parcamente alastrada. Diria até que sua mordacidade se lhe incrustou como uma virtude singular.

            Vamos aos fatos sobre o Chicote.

Certo dia ele sentia-se mal, enfraquecido, cansado. Emagrecia a olhos vistos e um dia de labuta era para ele como os doze trabalhos de Hércules. Diagnóstico: hepatite. Os olhos amarelaram, a urina escureceu, a barriga doía. Prescreveram-lhe repouso, boa alimentação, nenhum medicamento e abstenção do álcool.

            Aqui paro para dizer que Chicote e eu éramos dados a uns tragos bem ali no Cais Bar. Não sei se lembram do Cais Bar. Freqüentávamos o Cais Bar como de ordinário, coisa bastante comum entre os fortalezenses aquinhoados com a oportunidade de ter vivido época tão romântica e bucólica. Nem me delongo a fazer tais considerações sob pena de me perder naquela Fortaleza minúscula e apaixonante. Direi apenas que bem ali no Cais Bar íamos Chicote e eu, no tête-à-tête, bebericar e paquerar as meninas.

            Com o diagnóstico caiu sobre o amigo uma desolação tocante. Um fígado viral é algo preocupante. E se a coisa fica crônica? Quanto tempo se fica de molho sob a ameaça do vírus indestrutível e à mercê de vida regrada e insossa? Sabia lá o especialista. E eu? Beber sozinho? Um saco!  Acreditávamos que tudo se resolveria no devido tempo e que era preciso seguir a prescrição à risca.

            Quando o amigo melhorou da indisposição seu médico lhe autorizou a trabalhar e sair, mas as restrições alcoólicas foram mantidas. Assim, íamos ao Cais Bar, mas só eu bebia. Chicote ficava só na soda e na água. Olhava para mim e dizia, triste como um bicho preguiça: -“A vida sem álcool é uma merda.” O médico lhe dissera que não lhe seria permitido beber ainda após seis meses da normalização das enzimas.

            O diabo é que passava o tempo e as malditas enzimas continuavam lá em cima. Já dera o tempo de elas caírem e nada. Aquele era um caso diferente. Parecia que o Chicote ia ter uma hepatite crônica, cujo desfecho final é uma cirrose e possivelmente um hepatoma, um câncer de fígado. Que coisa! Seria possível?, era o que nos perguntávamos em silêncio mútuo.

            Chicote não queria morrer de véspera e continuava trabalhando e me acompanhando ao Cais Bar, eu na cerveja, ele na soda limonada. Até que chegou o dia em que ele me bate o telefone e fuzila: -“Fiz novos exames. As enzimas normalizaram.” Fomos ao Cais Bar comemorar. Nada de olhos amarelos, urina preta, enzimas altas, vírus presentes. Tudo coisa do passado, recente é verdade, mas passado. Ah, o Chicote queria uma dose do destilado, sem pedra de gelo nenhuma! Veio de lá o Chagas com uma dose dupla, dessas que se derramam pelas beiradas. O amigo nem deixaria passar os seis meses. Entornou de uma lapada só, como se fosse morrer a seguir. Dir-se-ia a cicuta socrática. Lambia os beiços como se acabasse de degustar um crêpe Suzette.

            Olhou-me nos olhos e confessou: -“Eu pedia ao Chagas pra derramar metade da soda e completar com vodka. Pensei que ia morrer.” Fiz cara de terror e ele completou: -“Se eu te contasse tu irias me repreender.” Continuei calado como uma múmia. Ele finalizou: -“Matei o vírus com vodka.”

            Ele está vivinho da silva até hoje. O Cais Bar já morreu faz tempo.

 

Fernando Cavalcanti, 03.02.2011

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

A ÚLTIMA SOBRE ELOGIOS

          Eu poderia jurar que meu amigo Siqueira está a me perseguir. Vou por uma rua, lá ele está. Vou por outra, idem. Estou em determinado hospital, o homem me aparece. Contudo, muito me alegro ao vê-lo pois já antevejo uns bons dois dedos de prosa. Pois foi o que aconteceu outro dia desses, há três dias. 

            Para os que não o conhecem, o Siqueira é dos cirurgiões renomados desta geração. Médico de branco, eterno servo de seus mestres, e saudoso aluno do Marista cearense. E escritor de pena hábil. Autor de livro. Repito: o homem não é pouca coisa, meus caros. Há alguns anos eu dizia numa crônica ao meu querido amigo Casoba que o sujeito mais famoso que eu conhecia era ele, Casoba. E, se bem me lembro, já profetizava a fama de meu amigo Siqueira. O destino me foi generoso: acertei em cheio. Doutor Fernando Siqueira, meu xará, vive o auge de sua carreira profissional e sua fama corre solta à sua frente. Por isso aceitei de bom grado a crítica que me fez nesse nosso encontro. Disse ele que não se conformava por eu não aceitar elogios. Que eu não devia fazer assim. E disse mais: que eu estava muito negativo em meus escritos. Que eu deveria contar fatos pitorescos que, segundo ele tem certeza, eu conheço muito bem.

                De fato conheço muitos e muitos fatos ímpares. São fatos da tragicomédia da vida. Não existe fato sem tragédia. O que para um dá para sorrir, para outro dá para chorar. Nós, os expectadores, preferimos o riso ao choro. Quem quiser que vá chorar bem longe. E assim a coisa vai indo. Entretanto, creio que ele talvez tenha ficado impressionado porque andei falando sobre perdas, que na vida tudo perdemos, inclusive a própria. Ora, o discurso foi proferido em momento doloroso para um amigo que perdeu o pai. Os miasmas que me envolviam não me permitiriam chacotas e folguedos. Neste momento não havia comédia, mas dor. E os elogios? Por que não os permitir? Parece que escrevi para cegos: o elogio é a véspera da decepção! E acho que por agora ambos os assuntos estão encerrados. Desculpe-me lá o Siqueirinha, mas abandonemos essa léria.

                Ele queria que eu escrevesse sobre os bons tempos do ginásio, no marista. Em particular ele queria que eu lembrasse a zoeira que os alunos maristas faziam no ônibus de volta para casa. Sim, o lotação vinha repleto de maristas que quase saíam pelas janelas. E gritavam a não mais poder. Faziam batucada e pediam em coro para o motorista correr ao cruzar Aguanambi com Treze de Maio, porque lá havia uma lombada no asfalto e o ônibus pulava como uma bola saltitante quando passava em velocidade. Nós adorávamos aquele salto. E vaiávamos. Gritávamos: -“Motorista, cooooooorra!” As pessoas pensavam que íamos xingar o motorista, chamá-lo de “coooooooorno”... Alguém veria graça nisso hoje em dia? Naquele tempo a maioria dos motoristas gostava. Não se importava com a brincadeira. Um ou outro se enfurecia e punha-nos para fora do ônibus. Certa vez um parou o carro e veio de lá para nos pegar. Saltamos porta traseira afora como doidos. Uma jovem que subia abraçada a meia dúzia de livros e cadernos foi literalmente atropelada por nós, caindo sentada à entrada do ônibus com seu material escolar espalhado no asfalto. Voltamos para casa a pé, rindo à beça. A comédia era nossa; a tragédia dos motoristas. Não sei, não, mas hoje não vejo nenhuma graça nisso. Será que eu estou ficando caduco? Responda lá o Siqueira...

O INCOMPETENTE

                       Chamou-se o sujeito de incompetente.

                É verdade que ele não tinha nem tem as qualificações necessárias às funções que exerce. Não tem educação em gestão de pessoas, nem em administração de empresas, nem em recursos humanos, nem em nada semelhante. Seria como o sujeito dizer-se engenheiro civil e tentar construir um edifício de dois andares.

                Eu mesmo sou um incompetente para construir tal edifício ou mesmo uma casa. Não saberia erguer uma parede, a bem da verdade. Um muro de meio metro de altura feito por mim, baseado em meus cálculos, não se sustentaria por dois minutos. Então, sou de fato um incompetente neste mister. Sou um incompetente para pilotar aviões. Se me dessem a pilotar um ultra-leve, seria um desastre. Literalmente. Sou um incompetente para pilotar ultra-leves. E para tocar oboé? A mesma coisa. Sou um incompetente.

                A bem da honestidade, todos nós indistintamente somos incompetentes para muitas e muitas coisas. É normal. Não estamos habilitados a realizar todas as tarefas e funções especializadas dentre as ocupações humanas. Onde está a razão para se sentir magoado ou melindrado com a pecha de incompetente? Não há razão, eis a verdade. Eu poderia enumerar mais de uma centena de atividades para as quais sou um completo incompetente.

                O problema começa quando o sujeito começa a achar possível exercer determinada função ou executar determinada tarefa para a qual não foi treinado. E geralmente ele o faz porque a princípio a função lhe parece fácil ou possível, ou parece-lhe que os danos advindos do mau exercício desta não seriam tão evidentes ou tão impactantes. Então, cresce no indivíduo em questão uma falsa auto-estima às avessas: sente-se perfeitamente capacitado e ninguém pode questionar ou duvidar disso. Esse indivíduo só chega a esta função em duas situações: em empresas familiares ou no serviço público brasileiro. Na empresa familiar ele exerce cargos por ser parente do dono da bola; no serviço público porque a empresa pública no Brasil é objeto de loteamento político por apadrinhamento de correligionários e aliados. O indivíduo não tem competência para exercer a função mas lá é colocado de forma a que o partido político do poder possa manipular a empresa ao seu bel-prazer. Trocando-se o partido do poder na próxima eleição, troca-se a “panela”.

                Este é o caso com o sujeito de quem falo. Está lá por apadrinhamento político. É bem verdade que os partidos poderiam selecionar eminências técnicas para exercer cargos com funções especializadas, mas não o fazem, na maioria das vezes. Colocam lá o incompetente. Seu currículo profissional não é considerado na escolha. Considera-se apenas o partido ao qual está afiliado.

                Contudo, haverá sempre quem defenda que as coisas podem dar certo mesmo feitas à margem da ciência e das boas normas. Para estes temos que lembrar-lhes que nada pode falar contra a evidência implacável dos resultados. Os resultados são fatos, e contra fatos não há argumentos. Portanto, há sempre como demonstrar que um incompetente curricular é um incompetente de fato: através de seu resultado.

                Se eu fosse construir um muro, ou uma parede, ou um edifício eu chamaria o meu querido amigo Alex Matos. Ele é engenheiro e atua no ramo. Eu posso construir um muro, se quiser. Contrataria o expertise de meu amigo. O muro seria meu mas a obra seria de meu assessor. É uma maneira de exercer uma função para a qual sou incompetente. Mas nem isso fazem os incompetentes do serviço público. O incompetente traz outro incompetente para lhe assessorar. Imaginem qual será o resultado. Então, não pode se melindrar o incompetente gestor do serviço público por ser chamado de incompetente. Não há aqui sentido pejorativo no uso do termo. São os resultados a aparecer. Seria o óbvio ululante de Nelson Rodrigues.

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...