segunda-feira, 7 de agosto de 2023

VISITAS

          Chego a qualquer hora. Ele dorme. 

        Lá fora, o sol escaldante anuncia que as chuvas intensas e frequentes recentes parecem ter-se ido. Seriam 10 da manhã. Adentro seu quarto, escuro na penumbra das cortinas cerradas. Sei que estão lá, nas prateleiras do guarda-roupas, as fotografias. Numa delas mamãe discursa num encontro de amigas, enfeitada em seu lindo estilo de mulher de família, à moda antiga, elegante, britânica. Nas brincadeiras chamavam-na "perua". 

        A cuidadora me cumprimenta, sentada à cadeira ao lado da cama dele. Pergunto sobre como ele passou a noite, se dormiu, se queixou-se de algo, enfim, uma espécie de relatório sobre seu bem ou mal estar. Hoje cheguei e ele estava sentado no vaso sanitário. Estava bem alerta. No último mês apresentou uma melhora substancial em todos os aspectos. Hoje, especificamente, havíamos combinado uma visita ao túmulo de mamãe. Semanas atrás sugeri o passeio. Ele topou na hora, mas, nos dias seguintes, a velha adinamia que até então se impunha parecia não arredar pé. Foi quando veio a melhora, insidiosamente, paulatinamente, surpreendentemente. "Vamos ao cemitério?", perguntou ele na última sexta. Acertamos para dali a dois dias, na segunda. 

        O trajeto foi tranquilo. O trânsito estava calmo por conta do feriado local. Ele entrou no carro abrindo a porta por conta própria. No percurso não falamos. A surdez sem a prótese tornou-o mais ensimesmado que o habitual. Como se diz com frequência, o valor de algo só se mede quando se o perde. No caso dele a audição faltava. Como travar um diálogo sem escutar? Melhor se recolher e nada dizer. Nem mesmo uma pergunta banal, dessas que se fazem apenas para matar o tempo, é possível nessas circunstâncias. Disse ao início que ele dormia quando cheguei. Faz parte desse recolhimento diário. E, como tudo o que não é usado atrofia ou desaparece, ele desaparecia em pleno dia.   

        No cemitério o silêncio imperava. Procuramos, durante alguns minutos, o sepulcro de mamãe. Uma pedra onde se escreveu seu nome o localizou. O resto era o gramado com inúmeras outras pedras equidistantes entre si, cada uma com um nome e as datas, o tempo de vida. Algumas carregavam fotografias do morto. O de mamãe é só a pedra e as datas. Ele parou diante da pedra e nada disse. Um sem-número de pensamentos me acudiram. Ele continuou em pé diante da pedra sem dizer palavra, expressar qualquer sentimento ou reação. Pouco tempo ali ficou. Ergueu os olhos em direção ao campo gramado em todas as direções e saiu a andar lentamente por entre as lápides, parando brevemente aqui e ali a ver se identificava algum conhecido. A poucos metros uma família parada defronte de outra pedra orava. Sentamos no banco de cimento ali perto.

        "Ave Maria, cheia de graça...", disseram eles mais de uma dezena de vezes antes de partirmos. Antes, porém, me veio uma lembrança de mamãe. Divertida, com apurado senso de humor, dizia sobre o que hipoteticamente falavam os habitantes dos cemitérios aos visitantes quando da morte de alguém conhecido: 

        - "Nós que aqui estamos um dia por vós esperamos!", e caía na gargalhada...

7 comentários:

  1. Bela sintese de um momento vivido com seu pai,culminando com a genial frase espirituosa da sua mãe. Vida e morte para se refletir com a leveza que ela possuía

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  2. Ainda estou tentando descobrir is oração é essa "Ave, Maria, que estás no Céu..." 😆😆

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  3. Muito singelo meu amigo, o compartilhamento desse momento soturno do seu pai. Parabens.

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