Pilotar uma motocicleta na continuamente decadente Fortaleza não pode ser considerada uma tarefa fácil e muito menos monótona. As dificuldades são inúmeras, a começar pelas idéias. É muito difícil combater idéias, ainda que elas representem as mais idiotas opiniões, ainda que representem os mais esdrúxulos conceitos, ainda que exponham os muito maus bofes de seus autores. Idéias sempre hão de encontrar eco, quaisquer que sejam elas.
A idéia mais estapafúrdia que impera nas ruas desta cidade é a de que a motocicleta é "apenas" uma bicicleta provida de motor. Por isso se permite a seu condutor pilotar sem equipamento de segurança – notadamente o capacete –, transitar por calçadas e passarelas, ultrapassar outros veículos por onde lhe der na telha, estacionar onde bem entender. O único momento em que o irresponsável condutor se dá conta de que a motocicleta não é nem de perto uma bicicleta com motor é quando ele lhe imprime alta velocidade e se estraçalha por cima de qualquer outro veículo ou coisa que o valha. Ou quando, numa daquelas manobras que citei há pouco, vira "vítima" de sua imprudência.
Até que o nobre e incauto motoqueiro seja colhido em sua vã idéia de ciclista de bicicleta motorizada, ele considerar-se-á um ás das pistas e ruas em suas acrobáticas e cinematográficas manobras. Sua onipotência e sensação de invulnerabilidade lhe sobem da genitália, passando ao longo do baixo ventre e se imiscuindo pelo pescoço até atingir o corpo caloso, donde se espraia universalmente ao córtex, com emissões menores mas não menos importantes ao hipotálamo e hipocampo. Amiúde, tais conexões são interrompidas e abruptamente desfeitas devido ao traumatismo crânio-encefálico do qual acaba por se vitimar. Aprendem tardiamente, porque podem também nunca aprender, que a motocicleta é, de fato, um carro provido de duas rodas, e como tal deveria ser conduzido.
A idéia oposta, a do carro sobre duas rodas, é tão apelativa, tão maravilhosamente apelativa, que é de pronto rejeitada. É, não obstante, a mais pura e singela verdade: - a motocicleta é um carro de duas rodas. E ponto final. Bastaria a disseminação desta simples e apelativa idéia para que o mais troglodita condutor se apercebesse dos riscos exponenciais a que está exposto, e tratasse de cuidar mais carinhosamente de sua inútil vida.
(Mas, por que é mesmo que estou falando tudo isso?)
Chegou mais um dezembro.
O dezembro mais remoto do qual me recordo foi aquele em que surpreendi Papai Noel, metido em ceroula cáqui desbotada, depositando um tratorzinho de brinquedo sob minha rede. Não fiz alvoroço. Esperei imóvel o desenrolar daquela operação para ver quem seria aquele velhinho tão bondoso que viera trazer o presente que eu lhe pedira, em carta manuscrita por minha mãe no mês anterior. Sem sobressaltos e sem alarde, nenhuma decepção em especial, tudo se fez claro: - era o meu jovem pai. A ilusão se desfez sem dor, e a verdade se impôs tão natural como o nascer e o se pôr do sol. Ainda hoje, ele já um homem idoso e não menos firme, custa-me esquecer seu cuidado extremo naquela noite de dezembro tão distante, a plantar debaixo do leito suspenso de seu primogênito o agrado e o prazer de sua infantil e inocente ilusão, a niná-lo em sua pequenez e pureza, para que fosse tão feliz quanto possível; a afugentar para longe do pequerrucho qualquer mal, qualquer rudeza da real vida que em breve viverá, quando vierem os anos de chumbo daquela vida que ajudou a trazer ao mundo, nunca recordando o que falou o rei, ascendente do Salvador, sabe-se lá quantos anos antes, quando disse: -... tenho por feliz aquele que ainda não nasceu e não viu as más obras que se fazem debaixo do sol".
Ainda que longínquo tal dezembro para mim, ainda assisto o vicejar das ilusões; não as das crianças, que essas tudo pensam e tudo vêem, e mesmo o que não existe, mas as dos adultos. Ainda agora, por uma qualquer razão, crêem, ainda que por uma fração de segundo ou uma fração de fé, que vai-se o mundo acabar em data e hora marcada para este dezembro, tão próxima que mal terei tempo de arrematar o texto que ora escrevo. Concluamos com açodamento que o leitor já se esgueira sem interesse a fim de assistir à catástrofe final.
Enquanto neste dezembro muitos próximos estão a ir-se, causando e alastrando dores e rangeres de dentes, muitos estão a regalar-se naquilo que chamamos de "futuro", algo tão imponderável e tão incerto quanto a mais simples mentira qua a nós mesmos falamos quando precisamos de algo a abrandar-nos a alma ante o intangível, e mesmo ante o suposto inexorável fim... Ninguém jamais ousaria explicar tamanho paradoxo, tanto quanto Olbers quando se debruçou sobre aquele que surpreendeu em sua mente ao admirar uma linda noite de primavera, o céu pulverizado de milhões de estrelas, ricas em luzes e cores, e ainda assim escuro como o pez negro... Ah...! Quantas contradições permeiam a vida!...
(Foge-me qualquer lógica à mão que segura a pena... Que o leitor me perdoe a perda de tempo que lhe causei, ainda que a proximidade do Armagedon não lhe mais permita outra ilusão.)