quinta-feira, 19 de outubro de 2017

NOVO EM FOLHA

                    Estava pálido. A tez cérea da face, encimada pelas cãs cuidadosamente penteadas para trás, davam-lhe um aspecto sofrido. Sentado à mesa, assinava a folha de presença, a folha de ponto. O que havia lhe ocorrido semana passada ganhou os corredores, salas e andares do hospital – um infarto quase mortal. Seu drama ganhou o fio do telefone sem fio do boca-a-boca e, todos sabem, ao ouvido final estará tudo travestido dos efeitos múltiplos dos enfeites e adornos de cada um à medida que a história avança. Dele ouvi o relato cabal, incontestável e definitivo adornado apenas pelo sofrimento e medo do homem que se vê, súbito, à beira do que, pensava, seria seus últimos momentos de vida. Foi assim.
                Estava no hospital para uma operação. Seriam 6 da noite. A sala de operação, repleta da gente da sala de operação, tinha mais gente do que de costume. Transitava-se para lá e para cá, tentando-se compor o cenário para o ato. O falatório quase ensurdecia e ele, sentado a um canto, sentia-se mal. Doía-lhe a cabeça e, se não me engano, já lhe doía também o peito. Juntou o que pôde de forças e ergueu a voz. Pediu silêncio, um minuto de silêncio pelo paciente deitado à mesa. Fora vítima de morte encefálica. Só vivia porque respirava por aparelhos. Dali a pouco tirar-lhe-iam os órgãos, que seriam doados a outros. O silêncio que se fez em seguida não lhe calou a dor precordial.
Ligou para um colega. Pediu que se apressasse, que viesse logo. Queria que o substituísse na operação. Sabia que em seu peito a doença coronária lhe sufocava o miocárdio. A dor subia da boca do estômago por trás do esterno em direção ao pescoço. A intensidade crescia. Alguém percebeu que algo havia com ele. “O senhor está bem, doutor”?, perguntaram. Mentiu. Respondeu que era apenas uma enxaqueca, ainda que, com efeito, doesse também a cabeça. O colega que o substituiria estava do outro lado da cidade.
  Esperava sua chegada utilizando-se de tanato-devaneios. Sentia que a morte se aproximava. Ora orava, ora se compungia em culpas. Sentia-se em dívida com Deus, e Lhe implorava Seu perdão. Agradecia-Lhe a oportunidade de poder ter ajudado a tantos com sua missão de médico. Morreria, mas morreria com a esperança do perdão do Senhor.
A coisa estava evoluindo, sentia claramente. Dentro de um hospital e não lhe ocorria denunciar-se a si mesmo: –“Pessoal, estou tendo um infarto”!, deveria ter clamado. Mas, não – permaneceu omisso quanto ao que lhe ocorria. Sabia que, uma vez descoberta sua condição crítica, o procedimento que estava para começar talvez fosse suspenso para que lhe prestassem cuidados. O paciente na mesa apresentava instabilidade hemodinâmica. Se viesse a falecer, todos os órgãos para doação seriam perdidos e os receptores prejudicados.
Dali a um tempo chega o cirurgião que iria substituí-lo. A justificativa para a substituição seria a enxaqueca. Estava definitivamente descartada a confissão de seu estado.  
Além disso, queria o hospital adequado, outro, não aquele. Saiu da sala cirúrgica e veio sentar-se ao chão, no repouso. A dor crescia em intensidade e se espraiava para o pescoço e a mandíbula. Suava copiosamente. Outro alguém adentrou o quarto e percebeu que não estava bem. Mentiu novamente. Discretamente, jogou ao lixo os comprimidos que alguém lhe dera, minutos antes, para a suposta enxaqueca. Sabia que de nada adiantariam em seu caso.   
Precisava chegar ao outro hospital. Vestiu-se, sabe-se lá como, e desceu em busca do carro no estacionamento. Dentro do veículo a dor o sufocava. “Por que não morro sem essa dor”?, pensava. Lembra-se de ter descido e ter-se sentado ao chão, no asfalto, para vomitar ao lado do carro. O manto da escuridão da noite vencia a iluminação precária do lugar. Viu um colega, outro médico, passar a certa distância em direção à entrada do hospital. Gritava, chamando-o, mas ele não ouvia, não escutava. Por um instante pareceu-lhe que o outro voltava o olhar em sua direção, mas virou-se e seguiu em frente. É provável que não o tenha enxergado. A luz bruxuleante do lugar prenunciava a escuridão completa do evento final.
De alguma forma, conseguiu dirigir o carro em direção ao hospital onde, julgava, teria uma chance de sobreviver. E conseguiu.
No CTI, após o procedimento que lhe salvou a vida, recebia visitas de colegas, outros médicos. Queriam solidarizar com ele, porem-se à disposição. A infusão vigorosa de líquidos para proteger-lhe os rins da carga de contraste ministrada acabavam por lhe encher com frequência a bexiga. Queria urinar, mas se envergonhava de o fazer diante de outros, e mesmo de pedir para se irem. Era preciso pedir que saíssem à guisa de o deixarem repousar, tudo já previamente combinado com o pessoal da enfermagem. Só assim urinava.
Relatou-me tudo isso e muito mais enquanto desenhava assinaturas na folha de ponto, menos de uma semana depois de tudo. “Imaginei o sofrimento de nossos pacientes nesses corredores, sem privacidade, sem lugar reservado às suas necessidades. Como fazem xixi? Como fazem cocô? Como trocam de roupa?”, disse ele olhando-me nos olhos com a pureza e a indignação do grande médico que é. Contemplei-o por alguns minutos, as lágrimas instigando-me os olhos, imperceptíveis. Ele estava ali, sentado, como se nada houvesse acontecido, não fosse sua nítida palidez a denunciar a consequência de tudo: perda de sangue durante os exames e tratamento. Fora isso, ele está novo em folha.  



(Ao dia seguinte ao primeiro procedimento, foi realizado, com sucesso, novo procedimento para desobstrução de outras artérias que se mostravam gravemente afetadas no primeiro, mas que não foram as responsáveis pelo evento presente.)

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