quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Garatujas


          Pilotar uma motocicleta na continuamente decadente Fortaleza não pode ser considerada uma tarefa fácil e muito menos monótona. As dificuldades são inúmeras, a começar pelas idéias. É muito difícil combater idéias, ainda que elas representem as mais idiotas opiniões, ainda que representem os mais esdrúxulos conceitos, ainda que exponham os muito maus bofes de seus autores. Idéias sempre hão de encontrar eco, quaisquer que sejam elas. 
          A idéia mais estapafúrdia que impera nas ruas desta cidade é a de que a motocicleta é "apenas" uma bicicleta provida de motor. Por isso se permite a seu condutor pilotar sem equipamento de segurança – notadamente o capacete –, transitar por calçadas e passarelas, ultrapassar outros veículos por onde lhe der na telha, estacionar onde bem entender.  O único momento em que o irresponsável condutor se dá conta de que a motocicleta não é nem de perto uma bicicleta com motor é quando ele lhe imprime alta velocidade e se estraçalha por cima de qualquer outro veículo ou coisa que o valha. Ou quando, numa daquelas manobras que citei há pouco, vira "vítima" de sua imprudência. 
          Até que o nobre e incauto motoqueiro seja colhido em sua vã idéia de ciclista de bicicleta motorizada, ele considerar-se-á um ás das pistas e ruas em suas acrobáticas e cinematográficas manobras. Sua onipotência e sensação de invulnerabilidade lhe sobem da genitália, passando ao longo do baixo ventre e se imiscuindo pelo pescoço até atingir o corpo caloso, donde se espraia universalmente ao córtex, com emissões menores mas não menos importantes ao hipotálamo e hipocampo. Amiúde, tais conexões são interrompidas e abruptamente desfeitas devido ao traumatismo crânio-encefálico do qual acaba por se vitimar. Aprendem tardiamente, porque podem também nunca aprender, que a motocicleta é, de fato, um carro provido de duas rodas, e como tal deveria ser conduzido. 
          A idéia oposta, a do carro sobre duas rodas, é tão apelativa, tão maravilhosamente apelativa, que é de pronto rejeitada. É, não obstante, a mais pura e singela verdade: - a motocicleta é um carro de duas rodas. E ponto final. Bastaria a disseminação desta simples e apelativa idéia para que o mais troglodita condutor se apercebesse dos riscos exponenciais a que está exposto, e tratasse de cuidar mais carinhosamente de sua inútil vida. 
          (Mas, por que é mesmo que estou falando tudo isso?)
          Chegou mais um dezembro. 
          O dezembro mais remoto do qual me recordo foi aquele em que surpreendi Papai Noel, metido em ceroula cáqui desbotada, depositando um tratorzinho de brinquedo sob minha rede. Não fiz alvoroço. Esperei imóvel o desenrolar daquela operação para ver quem seria aquele velhinho tão bondoso que viera trazer o presente que eu lhe pedira, em carta manuscrita por minha mãe no mês anterior. Sem sobressaltos e sem alarde, nenhuma decepção em especial, tudo se fez claro: - era o meu jovem pai. A ilusão se desfez sem dor, e a verdade se impôs tão natural como o nascer e o se pôr do sol. Ainda hoje, ele já um homem idoso e não menos firme, custa-me esquecer seu cuidado extremo naquela noite de dezembro tão distante, a plantar debaixo do leito suspenso de seu primogênito o agrado e o prazer de sua infantil e inocente ilusão, a niná-lo em sua pequenez e pureza, para que fosse tão feliz quanto possível; a afugentar para longe do pequerrucho qualquer mal, qualquer rudeza da real vida que em breve viverá, quando vierem os anos de chumbo daquela vida que ajudou a trazer ao mundo, nunca recordando o que falou o rei, ascendente do Salvador, sabe-se lá quantos anos antes, quando disse: -... tenho por feliz aquele que ainda não nasceu e não viu as más obras que se fazem debaixo do sol". 
          Ainda que longínquo tal dezembro para mim, ainda assisto o vicejar das ilusões; não as das crianças, que essas tudo pensam e tudo vêem, e mesmo o que não existe, mas as dos adultos. Ainda agora, por uma qualquer razão, crêem, ainda que por uma fração de segundo ou uma fração de fé, que vai-se o mundo acabar em data e hora marcada para este dezembro, tão próxima que mal terei tempo de arrematar o texto que ora escrevo. Concluamos com açodamento que o leitor já se esgueira sem interesse a fim de assistir à catástrofe final.
          Enquanto neste dezembro muitos próximos estão a ir-se, causando e alastrando dores e rangeres de dentes, muitos estão a regalar-se naquilo que chamamos de "futuro", algo tão imponderável e tão incerto quanto a mais simples mentira qua a nós mesmos falamos quando precisamos de algo a abrandar-nos a alma ante o intangível, e mesmo ante o suposto inexorável fim... Ninguém jamais ousaria explicar tamanho paradoxo, tanto quanto Olbers quando se debruçou sobre aquele que surpreendeu em sua mente ao admirar uma linda noite de primavera, o céu pulverizado de milhões de estrelas, ricas em luzes e cores, e ainda assim  escuro como o pez negro... Ah...! Quantas contradições permeiam a vida!...
          (Foge-me qualquer lógica à mão que segura a pena... Que o leitor me perdoe a perda de tempo que lhe causei, ainda que a proximidade do Armagedon não lhe mais permita outra ilusão.)

sábado, 15 de dezembro de 2012

Um lar...


          Sempre pensei numa casa como um lar. Ainda que aqui e ali estivessem os enfeites e os toques femininos de sua rainha, uma casa era, e para mim sempre haverá de ser, um lar. 
          Ah!... em quantos lares estive!... A mim me foi permitido adentrar os lares de meus pequenos amigos, assim como eles adentraram o meu. Íamos aos lares dos amigos porque em nosso tempo o lar ia além dos limites de seus muros e portas. Um lar se estendia a outros, e isso seria, para nós hoje, uma brutalidade humilhante. 
          Os lares viviam repletos de gente agregada, não residente, não moradora. Era gente da parentalha que chegava sem avisar; eram amigos que passando por perto se achegavam para uma chávena de café com torradas e dois dedos de prosa; eram os serviçais que mais pareciam familiares distantes mas presentes... Não havia hora, nem momento; toda hora era hora. A mesa estava sempre ali, numa sala exterior, posta e pronta para uma contingente refeição; eram bules, xícaras, pratinhos de sobremesa, toalhas enfeitadas multicoloridas, garrafas térmicas estilosas, cesto de pães guarnecido e encoberto por lencinho branco de bordas trabalhadas a proteger das moscas seu conteúdo; tudo muito asseadinho, cuidadosamente e amorosamente ajeitado. 
          A mesa era grande, um retângulo de madeira de lei preta e compacta, a ocupar a sala aberta para todos os lados, por onde entravam o sol, os ventos de quase verão, a água da chuva que molhava seus cantos...
          Logo atrás o quintal, uns poucos arbustos e a grama bem aparada. Mais a um de seus lados, aquele oposto ao da sala, a tampa de um cacimbão caiada por uma tinta branca barata e desbotada. Muitas vezes um montinho de areia se erguia, quase imperceptível, mais para perto do muro - a "sepultura" de um animalzinho de estimação, um gatinho, carinhosamente cuidado até sua hora final. Sim, o lar servia de última morada aos animais de estimação.
          No verão o lar enchia-se de parentes de outros estados que vinham em pousada, trazendo notícias de outros, fofocas deliciosas que não denegriam, cartas para entregar em mãos ao destinatário e escritas em letras belíssimas e bem desenhadas. E era tanta gente, tantas vozes, tantos dizeres! Crianças, adolescentes, jovens adultos, pessoas maduras, idosos... toda a gente se entretinha nesses momentos tão únicos e tão calorosos...
          No lar estavam o casal e seus filhos, perfeitos em suas humanas imperfeições, aqueles a ensinar e a repreender, estes a serem felizes a não mais poder. A decoração do lar apenas traduzia a paz e a harmonia que lá reinava, o amor que pairava como manto suave e protetor de sua gente...
          
                                                         ***

          Sozinho.
          Faz silêncio. Apenas o barulho do ventilador funcionando preenche esse espaço destituído de decoração e de cuidados. 
          As paredes nuas, cor de gelo, frias como gelo em sua monotonia desgastada, são a única imagem à frente. A mobília é pobre e já envelhece. Objetos sem nexo, sem aura, sem calor repousam sobre anteparos e prateleiras sem viço.
          O espaço é demais para o residente, que passa horas a fio sem uma companhia, sem uma palavra, sem um toque... Tudo tornou-se imponderável na virtualidade de uma vida sem calor. 
          A busca da proteção contra a dor trouxe mais dor, eis a verdade. Na fuga, na extirpação da convivência íntima, no corte profundo do corpo dessa alma, sem o cuidado na dissecção entre o útil e o inútil, tudo foi sacrificado. Como o jardim em que se lança a peçonha que visa destruir a erva daninha e se destroem também as flores, eis a aparência deste lugar... Ele reflete a alma devastada do residente, ou seu desapego por tudo o que possa representar o sofrimento.
          Se somente à morte não há sofrimento, lúcido é deduzir que ali jaz um zumbi que entra e sai, que vai e vem, que respira e ri, que habita... tão-somente habita...
          Em meio ao cenário desolador, uma pintura, um óleo sobre tela, presente de um amigo, daqueles que também habitou um lar um dia. Presa a uma parede que se embrenha ao fundo, a pintura mostra um jardim, sempre um jardim, o único jardim deste lugar... 
          No mais as mudas de roupas, suspensas, inertes, adquiridas para cobrir não do frio, não do calor, antes da dor e do medo. Somente roupas. Nada além de roupas...

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Tudo em vão?


          Outro dia bradei a plenos pulmões: -"Não me elogiem! A qualquer momento posso falhar!"
          Amiúde tenho ouvido falar em decepção. Tantas e tantas pessoas se dizendo decepcionadas, como se elas próprias não fossem a fonte de decepção de outras tantas. Ou isso ou devem julgar-se perfeitas a ponto de nunca falhar. 
          Eu dizia: -"O elogio é a véspera da decepção." Como não o seria? Se somos imperfeitos, falhamos. Se esperamos o amor de alguém supostamente infalível, de alguém que não nos decepcione, que esperamos? Esperamos o impossível, duro admitir.
          Entretanto, há, sim, uma única decepção possível e legítima: - seria aquela em que se surpreende em alguém uma essência desfigurada, corrompida, desvirtuada, mascarada, a esconder malignamente, sob a pele de cordeiro, o lobo voraz e hediondo. A virtude maior para nós humanos não é a perfeição, mas a busca desta. A virtude maior é o tornar-se juiz implacável de si mesmo, quando ouvimos o monstro que habita em nosso âmago rosnar a querer saltar cá fora. 
          Se perdemos de vista nossa falibilidade, julgamos-nos aptos a apedrejar, esquecendo que ali ao lado, bem pertinho, escrevendo ao chão na areia, está o Cristo a nos lembrar que nenhum de nós tem tal autoridade. 
          Outro dia bradei a plenos pulmões, farto das injúrias que me soterravam, espírito revolto por injustiças que se levantavam contra mim (http://fecavalcanti.facilblog.com/Primeiro-blog-b1/Vergonha-sobre-mim-b1-p29.htm): -"Todo canalha é sortudo; e eu não sou diferente." Numa indignada ira fazia, veladamente, o auto-elogio mais descarado de que se tem notícia. Para se ter uma parva idéia de meu descaramento, muitas pessoas que assistiam à cena julgavam-me – pasmem! – um suicida de véu e grinalda. De tanto me imputar graves defeitos, criam piamente em meu elevado grau de desamor próprio. Não perceberam que estava ali a defender-me, a me elogiar, a me enaltecer. Porque quando querem nos levar ao chão, à lona dos derrotados, nossa indignação é o que nos salva; é quando lembramos que temos, sim, valor, ainda que falíveis. Então, na mesma cena deplorei o elogio e enalteci a mim mesmo. 
          Ora, que fazer?.... Que fazer quando alguém que não tem autoridade te quer punir e imputar a ti falhas que não cometeste? Até o Cristo – aquele, sim, perfeito – irou-se quando pretenderam transformar seu templo em casa de comércio. Eu, em minha imensurável imperfeição, saí em defesa de mim mesmo. Não temia suscitar decepções a partir das acusações que me faziam: temia não sobreviver à injustiça que partia de um impuro como eu. 
          Outro dia bradei ainda aos quatro ventos e a plenos e limpos pulmões: -"Não me amem!" Rejeitava os amores lastreados em minha suposta perfeição, fadados ao obsoleto final da amargura e da já tão falada decepção. Pedia encarecidamemte que me poupassem das cobranças triviais e mesquinhas do comércio dos comuns amores. Veladamente pedia, implorava, anelava, exortava ao amor mais sublime e mais puro entre os imperfeitos . Implorava a que alguém me amasse gratuitamente, persistentemente, infinitamente... (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2011/09/nao-me-amem-em-18062009-ainda.html)
          Tudo em vão?... São tão pobres as palavras para dizer o que pretendo que tenho usado as entrelinhas, os espaços entre elas, as vírgulas e pontos para o fazer, porque se as uso tudo parece tão inverossímil que para tal elas não se prestam...
          Tudo em vão?... A empáfia dos que se imputam uma perfeição inexistente a lhes confinar ao isolamento do auto-endeusamento está a lhes distanciar, em tantas e tão inexoráveis decepções, do mundo real onde o amor que sobrevive é o incondicional...
          Tudo em vão?...
         

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Sei lá!


Na rede social uma amiga me saiu com a seguinte pergunta: -"Onde vais passar a virada? " 
          Presumi de imediato, e dado o contexto, que quisesse saber onde eu estarei na noite de 31 de dezembro do corrente. 
          Respondi-lhe sem hesitar: -"Sei lá!" E só após responder me ficou clara uma certa rudeza de minha parte. Assumo: fui rude. Contudo, preciso deixar claro que essa impertinência não seria com minha amiga. Antes, seria com essa nossa prática de "passar a virada". Passamos a virada, na maioria das vezes, em nossa solidão de solitários. Alguém dirá que falo por mim, e direi que, sim, falo por mim. 
          Eis o mea culpa: sou um solitário de carteirinha e papel passado. Sou tão abjetamente solitário que quanto mais se ajuntam as gentes, e quanto mais se aumenta o volume do som, e quanto mais sorriem as máscaras de carne e osso, mais solitário me sinto. Eis porque me encanta o silêncio no qual conversam e se enleiam os cúmplices, uma cena raríssima de se presenciar. Ou talvez nem o seja tanto assim, posto que só eles se percebam e entendam aquela linguagem suave, harmônica e profunda que é o seu silêncio.
          Admito: além de solitário sou um invejoso de marca maior. Essa seria uma profunda lacuna em meu já combalido e claudicante caráter, não fosse por um detalhe: - invejo o intangível, o imponderável, o sublime. Como um pássaro branco que paira e plana sobre um jardim multicor, assim vejo o sublime. Seria isso a representação da figura do silêncio dos cúmplices: - um jardim repleto de flores diversas, a exalar cada uma seu perfume macio e doce, sobre o qual o pássaro impecavelmente branco se debruça, como a se deleitar magnetizado por esse momento tão singular, e por essa mistura de elementos tão puros e simples que a natureza guarda em seu seio. 
          Essa inveja absurda me arrebata em espírito, como se me fosse permitido ver e sentir o que vê e sente a ave, e me fosse permitido ver e sentir o que vêem e sentem as flores... Esse seria o silêncio e o momento mágico dos cúmplices, que tanto invejo...
          Minha rudeza – ninguém se deu conta, visto que não tenho cúmplice a me perceber– foi um sofrido lamento, e que denuncia a angústia com que me angustiam as palavras e seu excesso, porque elas não dizem o principal e o essencial (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2012/12/inviabilidade-de-palavras.html). Apenas o silêncio diz o que não dizem as palavras, faladas ou escritas, ou ainda que murmuradas. 
          Que importa onde se "passa a virada" se os sons, os barulhos, a inflação das palavras e abundância de máscaras permeiam uma profunda solidão? De que me serve esse catártico coquetel se o meu deleite e gozo está num único e interminável olhar a falar "Sim, eu existo!"?

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Inviabilidade de palavras


          Eu queria escrever, mas não posso, não consigo. Queria dizer o que faz meu coração se irar, mas não acho as palavras. Queria dizer da frustração das palavras, quando o diálogo se mostra impossível. Queria externar a vontade do silêncio que fala mais alto que qualquer grito de socorro. 
          Engulo as letras, engulo as frases, vão-se os pontos de exclamação. As interrogações são desnecessárias, e as vírgulas mal se comportam. Uma angústia desnecessária se achega; espanto-a para a lonjura do mar, pra lá da linha do horizonte onde eu não a possa ver, numa noite de lua minguante máxima e céu nublado. 
          A percepção da necessidade de um grito em si já é uma angústia, posto que só o que nos sufoca nos impele ao grito. E se o que nos sufoca são as palavras que não se nos ouvem, de que me serve o maldito grito? O que os ouvidos não recebem de bom grado o coração rejeita feliz. Se as palavras nos sufocam, nos engasgam e impedem a comunicação, que nos resta? a não ser o silêncio de nossa indignação? 
          Quando as palavras são inviáveis, que nos resta?

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

É amor?

         É amor? quando tudo importa exceto o amor?
         É amor? quando o medo tudo supera e tudo vence, e até o amor?
         É amor? quando sua história é calcada aos pés como apenas uma estória?
         É amor? quando o passado importa mais que o presente, e o futuro é uma inviabilidade distorcida?
          É amor? quando os atos e os sacrifícios lhe são cobrados, como se seu ônus fosse um fardo demasiado pesado para suportar?
          É amor? quando a prova de sua existência brota da amargura e da responsabilização?
          É amor? quando sua existência é omitida pelas mesmas razões que lhe trouxeram à existência?
          Será o amor um mito? apenas um mito? Será mito o que me oprime o peito e que sufoco às custas de tudo o que foi a minha vida? 
          É amor? quando nunca se diz: - "Eu te amo!"?
          De nada sei... meu coração apenas chora.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Uma desculpa esfarrapada


          Brasinha é o amigo dos fetiches. Outro dia relatei episódio em que protagonizou a quase realização de uma tara, uma fantasia. Não a levou a cabo por uma simples razão: a namorada passou mal ao vê-lo fantasiado de Brasinha. Daí seu apelido. Para quem é desconhecedor do fato, resumi-lo-ei ao máximo a fim de adentrar na pauta.
          Meu amigo queria um sexo diferente e, para tanto, nutria uma fantasia que o torturava: - queria sexo fantasiado de diabinho, vestido com chifres, máscara, cauda, e tudo o que tinha direito. No motel com a namorada que, desavisada de tudo, o aguardava sob os lençóis no quarto frio e seco, vestia no toalete a indumentária própria do ser maligno. Dali a pouco, na escuridão do cafofo, aproxima-se da mulher que, vendo aquela presepada, é acometida de dispnéias e precordialgias ferozes. Acabaram na emergência d'algum hospital da cidade, ela quase morta do susto.
           Pois sucedeu o que seria de esperar a um mancebo dado a esses arroubos incontroláveis e inconfessáveis: - contraiu núpcias. De tão velho que era, sua solteirice já incomodava a alguns familiares e amigos mais distantes. Chamavam-no "rapaz velho", que por estas paragens abrevia-se por pura preguiça na expressão "rapai véi". Meu querido Brasinha era um "rapai véi". 
          Não sei se era o caso, mas quero crer que meu amigo esperava no casamento realizar todas as suas indizíveis peripécias sexuais. É lógico se acreditar que a mulher seria sua parceira em tais aventuras, e um alívio geral tomou conta de todos os que se achavam de alguma forma apreensivos com tão prolongada solteirice. 
          O que ocorreu, entretanto, leva-nos a concluir que a senhora Brasinha jamais tomou ciência dos desejos do marido; não dos desejos que se enumeram abaixo dos limites de uma curva de Gauss. Por isso Brasinha via-se impelido a procurar fora do lar o que já determinara lá ser impossível achar. 
          Certo dia, a mulher pejada de sete meses, logrou marcar encontro com uma dona cuja origem permanece a mim desconhecida. Brasinha, como todo elemento dado à caça do esporte sexual, tinha lá, é bem possível, as fontes donde brotam as pequenas que se permitem alinhar com tal jogo, de modo que, o que importa para nós que aqui estamos a relatar o drama, é que se conheça o desfecho do projeto de meu amigo.
          Também não me foi dado a conhecer as razões que levavam sua mulher a estar, nos últimos tempos, a segui-lo aonde quer que fosse. É bem provável que ela já sentisse ou percebesse o que lhe reservava aquele marido de aparência séria e compenetrada, formal e respeitador, um cínico de marca maior.
           Foi à saída de um grande shopping da cidade. Estava dentro do carro com a referida dona, uma mulher de aparência duvidosa, parado ao estacionamento esperando sabe-se lá o quê. Ao que parecia, esperavam o melhor momento para dali saírem em segurança no rumo d'algum tugúrio onde pudessem ficar à vontade. 
          Eis que, repentinamente, a um dos lados a mulher, ao outro a sogra, vê-se cercado e apupado por todos os piores adjetivos de que se tem notícia. A sogra, percebendo o crescente desvario da filha, contornou o veículo para segurá-la antes que fizesse uma besteira, ela gritando a plenos e limpos pulmões: -"Ai, meu pai! que vou parir esse menino aqui mesmo!" E emendava: -"É muita decepção! É muita decepção!" Foi preciso que ele subisse os vidros para não ser atingido por todos os socos e tapas que a buchuda desferia em sua direção. A mãe, há pouco contribuindo ao coro de impropérios ao femeeiro genro, tudo fazia a arrastar dali a filha, já arrependendo-se de a ter acoitado em semelhante e tresloucada missão. 
           Não me recorda agora como o episódio findou, mas o que se sabe é que a mulher passou os dois últimos meses de gestação em casa de seus pais. E se voltou à convivência do fulano nem mesmo sei eu. 
           Outro dia ele me bateu o telefone portátil a intimar-me a "beber o mijo" do pequerrucho. Não fui por receio de me rir ao lembrar da cena descrita acima. Além disso, estava louco para conhecer a fantasia de diabinho que o amigo guarda n'algum baú de seu sótão. Se trouxesse à baila mais essa perversão, seria de lá expulso sumariamente. Optei por uma desculpa esfarrapada. 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Opiniosos e opiniões: a sutil diferença


          Ainda agora – estou horrorizado – me espanta e me entristece o que acabo de ver e saber. 
          Primeiramente, soube de uma espécie de arrastão no centro da cidade; pouco depois, alguns minutos apenas, vi, na rede social, outro. Era um arrastão "verbal", um arrastão do deboche, um arrastão do menosprezo. O do Centro, pelo que soube, foi um arrastão da violência, desses que até então somente bandidos praticavam.  
          Refiro-me, ao que parece, a um fato ocorrido; ao que parece, um fato ocorrido há pouco; ao que parece, um fato ocorrido n'algum campo de futebol desta decadente cidade. Repeti "ao que parece" várias vezes porque posso estar completamente equivocado – o que me parece pouco provável, ainda que seja um telespectador bissexto dos noticiários televisivos. O que me parece é que o Fortaleza Esporte Clube, time de futebol da capital, perdeu, dentro de seus próprios muros, uma partida imperdível, o que o faz permanecer na terceira divisão do campeonato brasileiro de futebol. Eis o fato-pivô de toda a loucura.
          Diria, em resumo, que espalhou-se na cidade se Fortaleza, e em seu espaço virtual, uma onda de violência e uma onda de alegria debochada. A violência foi proporcionada por frustrados torcedores do Fortaleza; a alegria debochada e virtual foi alimentada por torcedores do arquirrival time do Ceará. Devo ressaltar que apenas presumo que a alegria tenha sido virtual. Ela bem pode ter sido real e, agora, acabo de lembrar-me da passagem de carros tocando buzinas e motores roncantes e barulhentos, provavelmente torcedores do Ceará felicíssimos com o fracasso tricolor. 
          Não dou conta da violência sem rosto; ela me indigna da mesma maneira fria que indignou Rubem Braga – ou terá sido o Rubem Alves?. O homem solitário tende à virtude completa, ao passo que sua associação tende a torná-lo monstro mascarado. Quem quer que tenha participado dos atos de vandalismo, ela, esta pessoa, não existe. Ela não é uma pessoa. Ela é uma turba, uma súcia, uma malta. Assim como na guerra não há o assassino, na choldra não há identidade, não há o José, o Francisco, o Manoel... Ainda que na atualidade se pretenda a gravação que revele as faces, os atos, as culpas e inocências, ainda estamos vivendo a era do canalha sem rosto. Ele tem família, filhos, paga as contas e vai ao trabalho. 
          O mesmo não se pode dizer do gozador virtual. Aqui faço uma pausa para explicar que a gozação sempre existiu no esporte, qualquer esporte, e principalmente no futebol. Antigamente se gozava o perdedor; os torcedores do arquirrival sempre que podiam gozavam seus adversários com uma boa dose de humor inteligente e, arrisco dizer, apaziguador. (Lembra-me a época em que o Corinthians passou vinte e tantos anos sem ganhar um mísero campeonato. Os próprios corintianos gozavam-se entre si, e o Jô Soares até criou um quadro do torcedor alvinegro que chorava dizendo: -"Corinthians!... esse time só me dá alegria..."!) 
          Não foi o que vi hoje à rede social. O que lá vi hoje foi a vontade de morte, a morte do outro, a morte simbólica e a morte real, aquela que proporciona a aniquilação e o sumiço. Sei, sei, alguém dirá que exagero, que não é bem assim, que não é nada disso. Dir-se-á; mas o que se diz, se diz; não há como ter certeza da completa semântica de uma frase, de um muxoxo, de uma entonação. 
          Pois eu digo que, sim, o que se queria hoje era a uma espécie de vingança; o que se queria e se bradava era o prazer mórbido na derrota alheia, coisa que antigamente não existia. Antigamente se torcia por um time de futebol, e ponto final. Hoje não. Ficou bastante claro, na rede social, que o torcedor, hoje, torce para a frente e para trás; ele torce não somente pelo time que ama, mas também torce com toda a força de seu ódio para que o time rival vá de mal a pior. Hoje não basta amar; também é premente odiar. 
          O pior foi ver amados e queridos amigos destilar seu sinistro prazer; homens esclarecidos, honrados, íntegros, pais de família, profissionais sérios e competentes fazendo o coro que denunciava seu sentimento menor. Sei, sei; alguém novamente dirá que exagero, que nada entendi, que estou a esticar a baladeira, etc. etc. Pois vos garanto: nada está mais distante da verdade. O que vi está visto e também estampado na rede social. Quem quiser poderá constatar o que afirmo. É fato, e contra fatos não há argumentos. 
          Vê-se, então, que há o vândalo sem rosto nas ruas e o com fuças bem à mostra na rede social, fazendo absoluta questão de ser visto, identificado, e qualificado. Não teme nem temerá essa crítica porquanto, em sua opinião, o tolo sou eu mesmo e não ele. Sou eu quem está perdendo a emoção dos estádios, das torcidas, do gol pró e do contra, enfim, tudo o suposto de bom que tem esse admirável e apaixonante esporte que é o futebol. 
          A conclusão a que chego, não a primeira vez, mas já a segunda (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2011/02/torco-por-quem-ganha.html), é que o futebol se aviltou dentro e fora do gramado. Contra a minha opinião – que duvido seja apenas uma opinião – estarão todos os "guerreiros" da tarde-noite de ontem, os reais e os virtuais, todos uníssonos a bradar apupos e xingamentos também contra mim e minha opinião. Esta baseia-se em fatos; a deles não, já que sua paixão os cegou faz tempo. Eles não têm opinião – são opiniosos.  
          Não dou a mínima; cada qual com seu cada qual.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Encruzilhada


          Nunca estive tão necessitado da poesia do meu efêmero e intenso amigo Chico Passeata. Não falo de toda a sua poesia, que essa a história um dia há de lhe pagar o devido tributo. Falo da poesia que escreveu ao dia em que fortuitamente o encontrei; falo da poesia que escreveu ali, ao meu lado, bem perto de mim, naquele que seria o último dia que o veria com vida; falo da poesia que o vi parir e transbordar do poeta como a lava que o vulcão expele em convulsões truculentas como cólicas que suscitam sofrimento inabrandável... Escreveu ele, à mesa ao lado, sem que eu ainda houvesse me dado conta de sua presença (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2011/08/menos-um-poeta.html):
          “...eis o dilema:
           (com)parar,
           ou (con)seguir.”
          Nunca estive tão vítima da essência poética de meu saudoso e efêmero amigo: "...eis o dilema:..." Essa é a poesia da qual estou necessitado; essa, a mesma de nem sei mais quando, ainda me sussurra: "...eis o dilema..."; e me instiga: (...)parar, ou (...)seguir."? 
          Que faço? Não sei. Há pouco sabia; agora já não sei... Por isso a poesia do Chico fala por mim; por isso o amigo, ao me chamar a atenção para a sua presença num leve toque às costas, parecia profetizar de mim, de meu destino, de meu breve futuro: "(...)parar, ou (...)seguir."?
          Lembra-me o dia em que procurava a letra do Chico em meio a meus livros e rascunhos, e papéis, e borrões; em meio à bagunça de tudo, anelava sentir entre as mãos a matéria original que o amigo, ao que parecia, escrevera para mim, especialmente para mim... seguramente uma pretensão tola de minha parte (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2011/08/tormenta-e-o-poema.html). 
          Ah... tudo em vão... Guardei tão bem guardada a jóia que quis o meu desatino punir-me exemplarmente: não a achei. Ainda hoje não a acho. Sei que ali está, envolta em minhas memórias, em meus devaneios, em escritos bissextos e jurássicos, do tempo em que minhas tormentas mentais apenas iniciavam, formavam-se ao longe como procelas vindouras a se anunciarem precocemente. 
          E até hoje nem sei porque deitei ao papel o que escrevi outro dia, coisa sem rumo e sem nexo (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2012/02/ilusao-de-amor_08.html), uma quase poesia que suscitou noutro amigo, outro poeta, a idéia de que eu seria o poeta que escrevia prosas... Ledo engano... tola pretensão, mais uma, desta feita não minha. 
          E agora a belíssima poesia do Chico que, quero tanto acreditar, escreveu especialmente para mim... Sinto agora, passados vários meses, a poesia para mim, uma encruzilhada, dois caminhos, dois destinos, dois rumos... Eu, que dei uma volta na vida, que vivi uma e posso outra viver, me deparo com a decisão: inicio outra ou não? faço outro destino? escrevo outra história? 
          Ainda que a vida, a nova vida, me espicace a vontade de si mesma, que tem ela de novo para mim que não já tenha visto? Que novos resultados me propõe? se eu mesmo sou ou tornei-me a incógnita que julgam, que observam, que testam, da qual duvidam, que temem, que rejeitam e da qual se envergonham? Tornei-me, involuntariamente, um ponto de interrogação, um buraco negro, um algo a ser evitado... 
         Ainda que já tenha vivido uma vida e nela já tenha morrido, posto que na morte vão-se inexoravelmente as eventuais pendências e dívidas, insistem em me julgar sobre o que nela realizei ou deixei de realizar. Fui marcado com a marca dos condenados, o 666 da besta, a cicatriz dos aguilhoados. Tornei-me um natimorto de minha nova vida... 
         Vem então o Chico e me admoesta: 
         “...eis o dilema:
         (com)parar,
         ou (con)seguir.”
          Seguir é o que escolho; custe o que custar. De uma forma ou de outra.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

De poste em poste


Nelson Rodrigues, pela boca de uma de suas personagens, presumidamente conhecedora de suas colossais galhas, dizia : -"Meu marido não respeita nem poste!" Assim, para os leitores mais vorazes do jornalista, escritor e dramaturgo se apresentava pela primeira vez a figura do poste vítima de maridos safados e infiéis.
           Hoje mesmo compartilhei à rede social um vídeo em que aparecem o Chico Buarque e o Tom Jobim tocando, de autoria do Tom e Vinicius de Moraes, a música "Sem Você": "...você é o que resiste/ao desespero e à solidão/nada existe/o tempo é triste/sem você".  De fato, o lamento é de um romantismo refinado e belo, próprio dos que estão a nutrir por alguém uma dessas paixões que dilaceram as fibras da alma. Por isso, não foi de surpreender que um querido amigo fizesse, ainda lá mesmo na rede social, o comentário sobre o que lhe pareceria o óbvio; disse ele: -"Estás apaixonado?"  Eu, sem usar de qualquer referência disponível à mão, respondi-lhe: -"Com essa música dá pra se apaixonar até por um poste". 
          Que fique claro: quis fazer, de certa forma, uma analogia entre o poste apaixonável e o poste amante. É fácil perceber que ambos são seres/objetos desprezíveis, ainda que o apaixonável apenas se o torne por conta da belíssima música da dupla genial. Assim, continua sendo desprezível o poste apaixonável. Poste é poste e o máximo de virtude que há de possuir seja talvez seu desenho a instigar pensamentos freudianos. Fora isso só se presta mesmo a segurar fios de alta tensão e luzes de rua, e servir de latrina a cachorros vira-latas. 
          Muito tempo se passou até que o pobre poste fosse novamente denunciado pejorativamente. Foi ao começo do ano corrente, quero crer. A prefeita desta decadente cidade, a senhora Luizianne Lins, declarou, não sei se a jornalistas, não sei se na inauguração de uma de suas escolas, que seria capaz de eleger até um poste sem luz para prefeito da cidade. Do alto de sua arrogância, de sua empáfia, de seu pedantismo, a ilustre alcaide, acreditando gozar de elevada popularidade, tinha absoluta certeza de sua competência para lograr tal êxito. Observe-se que seu poste era ainda mais inútil porquanto a luz que de si pendia simplesmente não pendia, não existia, e seria este mesmo que pretendia eleger.
          Eis então que, passados alguns meses da promessa aterradora, a nobre gestora dos negócios municipais se mostrou incapaz de lhe levar a cabo. Bem, é verdade que não era bem um poste o cidadão que pretendia eleger, mas muito se assemelhava a um, posto que fosse alto e houvesse passado despercebido no jogo político de nossa cidade por um lapso de tempo maior que o ideal. Era, até poucos meses atrás, uma dessas personalidades que se assemelham a figurante de filme pornô – ninguém lhe dava a mínima atenção. Ninguém o via. 
           Assim, chega-se ao final da história da utilização de postes para propósitos diferentes daqueles a que são destinados. A verdade é que ninguém come poste, nem por ele se apaixona, mesmo quando se põe a tocar melodia enternecedora, como a do Vinicius e do Tom. Por extensão, deve-se presumir e deduzir que postes também não servem para prefeito, como ficou muito claro à contagem dos votos da eleição em Fortaleza. 
          E mais. Se a senhora prefeita ainda quiser inaugurar algo durante os dois meses que lhe faltam à frente do executivo municipal, um alerta seria conveniente: corra a toque de caixa, dona prefeita! Como ela mesma disse, "a gente inaugura não é pra conseguir voto, mas pra mostrar o que estamos fazendo, senão ninguém vai saber". Se não há mais votos pelos quais brigar e se inaugurações de obras públicas não se prestam a isso, é chegada uma excelente oportunidade para pôr em prática esse propósito puro e destituído de qualquer interesse. 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Pintinho e Leonelzão


SERÁ que alguém lembrará de meu amigo Pinto, o homem mais liso à face da Terra ao final de cada mês? Aos que não lembram, passo a recordá-los.
            Outro dia, já há algum tempo, o encontrei no hospital. Vinha ele sorumbático, macambúzio, pra baixo mesmo e, vocês sabem, um Pinto pra baixo é das piores visões que se tem na vida. Corriam os últimos dias de um mês qualquer, não me lembra agorinha qual. Pouco importa esse detalhe, uma vez que o que lhe ocorre a um mês ocorre também ao outro: a pindaíba recalcitrante e recidivante. Se o virássemos de ponta-cabeça à essa época, nenhuma pataca lhe cairia dos bolsos. Eis o Pinto que alguns de meus leitores não conhecem.
            Pois a lembrança do Pinto me espicaçava o juízo enquanto escarafunchava a lista dos vereadores eleitos para compor a Câmara Municipal de Fortaleza na próxima legislatura. O que lá vi não me chegou a estarrecer, embora os motivos fossem mais que visíveis, o principal deles a reeleição do senhor Leonelzinho Alencar. Este senhor, todo fortalezense sabe, protagonizou recentemente o episódio mais hilário de que se tem notícia na crônica política desta decadente cidade. Diga-se de passagem, dizemos hilário para não dizermos trágico, que hoje não estou para depressões inúteis nem tristezas capitais.
            Que fez este senhor?, já e ainda edil desta mesma câmara para a qual foi reeleito? Conseguiu para sua mulher uma inscrição no Bolsa Família, programa de distribuição de renda do governo federal, tido por muitos como o mais vultoso e engenhoso plano de compra de votos jamais concebido. (Não sou quem diz; dizem-no os outros.) A denúncia contra o insigne vereador foi feita por um de seus pares, a senhora Toinha Rocha, “adversária” política do senhor Leonelzinho Alencar no amplo curral eleitoral do bairro de Messejana.
            O episódio extravasou os muros da casa legislativa municipal, que aliás nem deveriam se erguer, e chegou ao curral de ambos na forma de uma enxurrada de balas disparadas contra certa propriedade da vereadora, localizada lá, na zona comum de influência de ambos. Assim, a coisa toda se assemelhava à mais abjeta politicalha. As suspeitas do atentado tupiniquim recaíram, evidentemente, sobre o senhor Alencar, que desde então jura de pés juntos que nada teve com o fato nem com a inscrição do nome de sua jovem senhora no programa Bolsa Família.
            O fato é que a senhora Alencar sacou dos cofres públicos a irrisória quantia de duzentos e poucos reais, ainda que sua renda familiar beirasse os dez mil.
            Nada disso, como se já sabe, impediu o ilustre edil de receber uma outra enxurrada, diferente daquela recebida pela vereadora: uma enxurrada de votos – quantos foram mesmo? –, tendo sido, se não me engano, o quarto candidato mais votado para a câmara da municipalidade. (Lembrei! Foram exatos 14.486 votos.)
            O que pensava eu enquanto debulhava a sadia lista? Pensava justamente no Pinto, meu amigo de muitos carnavais. Nutro por ele um carinho tão intenso e tão especial que houve tempo em que era para mim uma necessidade acrescentar-lhe ao nome um diminutivo qualquer que denotasse e denunciasse todo esse meu bem-querer.
Cogitava chamá-lo de “Pintinho”, mas logo me pareceu uma afetação tão esdrúxula que desisti incontinenti. Também aventei uma abreviação de seu nome, tão comum aos dias de hoje, algo como “Pin”, mas novamente declinei da idéia por pior ainda. Seu primeiro nome tornava impraticável qualquer tentativa de acarinhá-lo, de modo que mais uma vez declinei. Assim, cheguei à conclusão fatal e irremediável: Pinto não admitia diminutivos nem abreviativos. Se quisesse lhe tratar com carinho, teria que buscar uma outra hipótese.
Vendo aquela lista e os mais de catorze mil votos de Leonel Alencar, pensava que o rapaz devia lá ter suas qualidades e um certo carisma. Essas pessoas não davam a mínima para o comportamento nada correto do vereador. Poder-se-ia até concluir que, de fato, aprovavam sua conduta. Daí alguém, um amigo talvez, saído dessa turma enorme ou não, ter querido como eu demonstrar apreço por sua pessoa e tê-lo mimado com o “Leonelzinho” tal como é conhecido.
O diabo é que, para mim, o Pinto merecia muito mais, sem dúvida. Sobre o senhor Alencar, em que pese sua cara de menino travesso e puro, pesam acusações que, em minha humílima opinião, inviabilizariam qualquer tentativa neste sentido. Ele mereceria mais e talvez um aumentativo: Leonelzão. Ou Alencarzão. Ou ainda Leonelzão Alencarzão. Uma referência a seu curral eleitoral aposta a seu nome também seria uma possibilidade plausível: Leonelzão da Messejana.
Dirá alguém que tais apostos não fariam jus ao aparentemente doce homem. Nada há em sua superfície que justifique o “zão” sufixalmente colocado, e não deixará de ter razão quem assim argumentar, como já dissemos poucas linhas atrás. É sabido que muitas vezes os apelidos nos servem à ânsia de denegrir ou burlar a imagem de sua vítima. Outras vezes, como no caso de meu amigo Pinto, eles nos vêm saciar o desejo constante do carinho a quem estimamos, a traduzir nosso apreço a um caráter que nos pareça irretocável.
Pensava: quem teria aposto o diminutivo ao nome do edil cuja face parecia cobrir-se com a máscara do fora da lei? Há de ter sido alguém que o ama, com certeza. Sendo um familiar até se explica; sendo um amigo algo estará errado.
Diz Cícero falando da amizade que esta só seria possível entre os virtuosos de caráter, entre os bons, entre os honestos. Eu bem poderia alcunhar meu amigo de “Pintinho”. Já o vereador... 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Esperança, minha única certeza


            Duvidar dá trabalho. E tudo que dá trabalho tendemos, a priori, a rejeitar. Como estamos demasiado ocupados em nossos ordinários afazeres, levando nossas vidas tediosas em busca de não se sabe bem o quê, largamos todas as dúvidas que diariamente nos assaltam ao longo da estrada da vida.
Disse o saudoso Airton Monte outro dia, numa de suas crônicas intitulada Hoje e amanhã: “Minha consentida solidão, hoje, é o melhor de mim. Será? Nada tenho a dar ou receber. Hoje, porque as releguei ao olvido, não me acorram dúvidas nem dívidas. Tudo em mim infantilmente, talvez, virou certeza de esperança. O dia de sonhar acordado é hoje. Unicamente hoje. Hoje. Amanhã, não sei.” Se pudesse diria ao Airton que amanhã seguramente lhe recidivarão as dúvidas, e também as dívidas.
            Assim, que fazer ante a dúvida que se não vai? Resposta: fazer como o insigne cronista, que desligou os telefones, a TV e seu radinho de pilha, e jogou ao lixo jornais e revistas do dia; ou arregaçar as mangas e se pôr ao trabalho da busca do esclarecimento. Eis aí o trabalho inevitável. Ou ele ou a dúvida. Como tudo na vida, mais uma escolha a escolher.
            Atente-se que não estamos a falar da tola e abjeta dúvida, aquela que assalta somente o pobre espírito. Esta é a birrenta, levantada apenas a serviço da troça, da pilhéria e do deboche. Falta-lhe na essência a questão vital; falta-lhe no âmago a pureza da outra, a legítima, a autêntica.
            Mas o que queria o Airton àquele dia? Queria sonhar acordado; e punha ênfase em seu desejo: Hoje. Unicamente hoje. Do amanhã não seria capaz de dar notícia. Sua certeza de esperança preenchia sua solidão unicamente hoje. Para tanto, desconectou-se, abstraiu-se, subtraiu-se da vida e do meio. E rejeitava as dúvidas hoje, unicamente hoje.
            Ah...! o poeta da prosa havia de ser apanhado e capturado em dúvidas atrozes!... Dir-se-ia ser ele, todo ele, um oceano de questionamentos e incertezas cotidianas aliviadas hoje, somente hoje, como que a dar-lhe um sossego do balouçar das enormes vagas daquele infindável mar...
            Com efeito, percebe-se que duvidar dá trabalho; tanto trabalho que o poeta saiu a confessar sua premente necessidade de sonhar acordado; talvez sonhar com um mundo onde somente habitassem as certezas. Sabia que não é bem assim. Por isso impunha, ao mesmo tempo em que prometia – unicamente hoje.
            Não aventou a possibilidade de interromper o viver, de se deixar paralisar, por quaisquer dúvidas. É possível que, em querendo tão-somente um descanso, uma pausa, o fizesse a fim de seguir vivendo ao tom das incertezas diárias. Sim, há de ter concluído o poeta – é imperioso seguir. É vital expor-se aos riscos, sob pena de se deixar imobilizar por medos e pavores adquiridos alhures e há tempos.
            Talvez dissesse o poeta dos conflitos travados entre o coração e a justa e implacável razão, embate voraz e perene enquanto dura nossa exígua perenidade, esta própria tão duvidosa quanto o resto.
            Eu, improbo que sou aos olhos de muitos quando a deslindar meus sentimentos, fiz-me cúmplice do poeta maior; pretendi dizer com as suas as minhas palavras; anelei, desejei ardentemente ser poeta e expressar em semelhante lirismo quão cansado também estou das incertezas, causa de todos os males entendidos de meu discurso.
            E, contudo, descanso. Por uma hora que seja ao dia-a-dia, recomponho em mim mesmo as certezas de minhas intermináveis esperanças... 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Não queremos nem um nem outro


          Meus mais antigos leitores, se os tiver, sabem que sou um homem que adora frases. Uma frase nem sempre é uma frase, e é notório que há frases e frases. Pois gosto daquelas, das frases que são verdadeiras frases. É bem possível que alguém salte de lá e me indague como sei quando uma frase é aquela frase, e direi que nada mais simples. Uma frase é uma frase, para mim e em minha humílima opinião, quando fica a ressoar em minha mente, como se emitisse eco infinito e constante; durmo e acordo com ela, como se fora uma obsessão musical. 
          É fácil aos queridos leitores perceber que não estou a emitir juízo de valor àquelas frases e que, portanto, elas podem transmitir boas ou más idéias, positivas ou negativas emanações, estimulantes ou desanimadores prognósticos. Diria até que por isso mesmo elas me obcecam; elas constatam e denunciam os limites extremos de qualquer coisa – pode ser que delatem um coração altruísta ao limite ou que exponham uma cretinice sem tamanho, para ficar apenas em dois exemplos.
          Outro dia um amigo, para minha mais completa e recente decepção, disse a seguinte frase: -"Não existe a verdade; o que existe é a interpretação".  E seguiu explicando que vários filósofos já cantaram e decantaram tal idéia, esquecendo-se de citar pelo menos um destes. Direi mais. Direi em que contexto a disse: - a propósito do julgamento dos mensaleiros do PT.
          O Procurador da República, Doutor Manoel Pastana, tem publicado em seu site, cujo endereço é www.manoelpastana.com.br, vários artigos em que aborda os fatos jurídicos do referido julgamento. Cita leis que foram infringidas, denuncia as provas materiais contra quais e tais réus, explica como os procuradores que fizeram a denúncia construíram uma peça frágil em conteúdo probatório para livrar a cara do ex-presidente Lula, denuncia a existência de um grupo de procuradores que age dentro do Ministério Público Federal como criminosos de colarinho branco a defender os interesses petistas, e por aí vai. Doutor Pastana dá nome a todos os bois, sem uma mísera exceção. 
          O caso é que meu amigo, apaixonado pelo lulo-petismo e inconformado com as evidências,  não tendo mais argumentos para debater sobre inocência e culpa no julgamento, fez o que faz todo petista quando flagrado em penosa situação: - jogou a culpa na inexistência do fato. Como todo fato é uma verdade incontestável e absoluta, esticou a baladeira e decretou a morte desta. As assinaturas do ex-presidente da República editando Medidas Provisórias e decretando leis para fornir o caixa do esquema, por exemplo, são simples e inocentes atos de um grande líder em prol de seu povo e de seu país, mesmo que tais medidas provocassem o faturamento recorde (3 bilhões de reais) de um obscuro banco privado que emprestava dinheiro "sem garantias" ao PT, o BMG, possuidor de apenas 10 agências, maior do que o faturamento da Caixa Econômica Federal com suas 2000 agências no ano em questão. Como não existe a verdade, fica tudo aí a mercê da interpretação de cada cidadão. 
          Disse ainda mais o meu amigo. Taxou o Procurador que revela todo o esquema lesa-pátria de "caluniador". De fato, concluí, no ribombar das frases de meu amigo, que o Doutor Pastana é um caluniador de marca maior e de primeira grandeza. É um caluniador de que o Brasil está muitíssimo necessitado: – é um caluniador de bandidos. E assim, ficamos meu amigo e eu em paz, já que em pelo menos alguma coisa acordamos. 
          As frases de meu diletíssimo amigo só não me atormentaram mais porque outras frases me interromperam o processo de tortura. Tudo porque fui cair na besteira de abrir o jornal O Povo, cada vez mais suspeito de relação incestuosa com os poderes constituídos, e ler a reportagem da bela jornalista Kamila Fernandes. Diz a manchete o seguinte: "Eleitor (em Fortaleza) decide manter grupo hegemônico". Conta o pai dos burros – e aí me incluo, nos burros, porque sou um deles – que hegemônico é o que tem a supremacia, que por sua vez significa ou o que tem a superioridade, ou o que tem o poder e a autoridade. Evidentemente a jornalista se referiu ao grupo que detém o poder. Se dissermos de outra forma a manchete ficaria "Eleitor decide manter no poder grupo que já detém o poder". (Sei que não soam bem as repetições, mas aqui ela serve a enfatizar o óbvio.)
          Entretanto, o que a manchete não diz dizem os números, ou por outra, os números insinuam que a manchete mente. Mente porque o eleitor, e entenda-se por eleitor a superioridade, a supremacia e a hegemonia numérica, não decidiu manter no poder o grupo que está no poder. Ao contrário, a maioria (quase 55%) ou 743951 eleitores escolheram outro candidato que não o do grupo que ora ocupa o poder, ou anularam seu voto, ou votaram em branco. Estes últimos totalizaram 103009 votos. Se para o grupo do poder foram 610002 votos, temos que estes senhores receberam menos da metade dos votos ( pouco mais de 46%). Então, se alguém "decidiu" manter no poder os que já nele estão, não terá sido o pobre e desprotegido eleitor.
          Assim, se a Kamila Fernandes novamente afirma, no desenvolver a matéria, que "o fortalezense resolveu levar para o segundo turno das eleições os dois grupos que já detêm a hegemonia política da capital e do governo do estado", o meu amigo que assassinou a verdade diria que há aqui uma oportunidade a várias interpretações, e eu mais uma vez com ele concordaria em gênero, número e grau. A leitura que se pode fazer, com legitimidade e pertinência, e que teima em expor as podres entranhas de nosso modo de eleger, é a de que o sistema eleitoral vigente não traduz os anseios do eleitor, não contempla sua vontade. Vê-se que ele não capta o que os eleitores não querem. Ora, se a maioria dos eleitores não quer o grupo hegemônico, como justamente ele vai exercer o poder? Há aí algo de muito errado ou equivocado, para ser mais brando. 
          Seria possível introduzir nesse sistema eleitoral que vige um dispositivo tão significativo como este, o de evitar levar ao segundo turno duas forças cuja soma de votos é menor que a metade dos votos válidos? Ou isso ou a criação de um novo sistema, sendo este mais representativo da vontade popular. 
         Fico me perguntando se ao invés de dez tivéssemos doze candidatos; e se ao invés de doze tivéssemos vinte; e se ao invés de vinte tivéssemos trinta... A eleição para prefeito assemelhar-se-ia à eleição para vereador. É provável que a soma de votos dos dois candidatos mais votados fosse progressivamente menor e ainda assim, nesse sistema, seriam esses a disputar no segundo turno. Tudo isso demonstra uma combinação aterradoramente pouco representativa de nosso sistema político ainda mais exacerbada por nosso sistema eleitoral. O resultado é que "elegemos" governantes que nenhum compromisso têm com a sociedade. Isso tem-se tornado cada vez mais evidente.
          Voltando à reportagem de Kamila Fernandes, diz ela lá na frente o seguinte, após ter dito o que teria resolvido o eleitor quando acabamos de demonstrar que o coitado nada resolveu: "Juntos, os candidatos que não conseguiram ir para o segundo turno tiveram 51,22% dos votos, o que demonstra que uma grande parte do eleitorado não gostaria de ver nem a continuidade da atual administração, nem a entrada do grupo do governador no poder do município". Aqui ela comete um equívoco: a soma dos votos dos outros candidatos totaliza 47,34% dos votos válidos; esse percentual sobe para 54,95% quando aí incluímos os votos em branco e nulos. Em suma, contradiz o que afirmara ao início da matéria.
          Há mais. Não é apenas uma grande parte do eleitorado que não quer para prefeito nem o candidato da atual prefeita nem o candidato do senhor governador: - é a maioria absoluta dele. Pelo atual sistema um desses senhores vai administrar a cidade. Mais de um entre dois eleitores não os quer como prefeito. Vejam que nossos buracos são fichinha diante do buraco que vem por aí. 

domingo, 7 de outubro de 2012

Personae non gratae


          Vejam os queridos leitores, seguramente entediados de minha interminável lengalenga, como na vida tudo depende do tempo e do lugar. Absoluto mesmo só a velocidade da luz, segundo o senhor Albert. O que é aqui, é possível que não o seja mais ali; o que está perto, é possível que numa fração de segundo esteja numa lonjura inimaginável; e assim descobrimos que nossos sentidos são incapazes de detectar uma realidade cada vez mais presumidamente evidente.
          O caso é que ontem fui ali, à Casa do Frango, degustar uma comida japonesa. Não sei o que diriam os entendidos nas misturas de sabores, mas aprecio uma cerveja Heineken durante a refeição da comida oriental. A mim ela me parece uma combinação perfeita. 
          Todos sabem, hoje é dia de eleições, e vigora a lei seca. Por isso resolvi adquirir por antecipação algumas Heineken para o caso de desejá-las ao dia de hoje. Desço ao mercadinho da própria Casa do Frango e descubro o inusitado: a cerveja no mercadinho cá embaixo é quase 50% mais barata que a mesma cerveja lá em cima no Sushibar. 
          Concluí que, à próxima vez, pedirei ao garçon que me sirva das cervejas cá debaixo. Ele certamente engendrará mil e uma justificativas para uma diferença tão significativa e eu acabarei por ceder. Há querelas onde não se deve querelar. Nada há que me obrigue a pagar mais caro quando posso pagar mais em conta. Se pago, pago porque quero, porque escolhi pagar. E estamos conversados. 
           Pior é quando se é obrigado, como hoje. Sou obrigado a votar. Se não o fosse, ainda assim votaria. Há, dentre os dez, apenas um ou dois candidatos que seriam bons prefeitos para essa decadente cidade, se eleitos fossem. Mas a injustiça do pleito favorece os candidatos das hostes do poder político e financeiro, numa clara inclinação da eleição desde quando se inicia a campanha. 
          Assim, tudo o que é desigual em se tratando de regras só pode produzir um resultado que traduz tudo, menos quem é o melhor. A consequência é que, no caso de Fortaleza, ao final da campanha a eleição demonstrou uma polarização. Os candidatos "oficiais" irão, ao que tudo indica, ao segundo turno, e seria nesse momento que o eleitor consciente teria o direito de não ir à urna e abster-se.
          (Eu disse "polarização" mas ela não há, de fato. Os candidatos oficiais são farinha do mesmo saco; estão brigando pelo poder municipal apenas para demonstrar sua força e, claro!, usufruir das benesses que a alta corte proporciona. Não dão a mínima para o povo.) E como mentem! Como prometem o que não podem cumprir! Dizem pura e simplesmente o que o eleitor quer ouvir, exceção feita ao eleitor consciente. 
          E só agora percebo que usei por duas vezes a expressão "eleitor consciente", ficando a me perguntar o que seria essa espécie de gente, se é que os há. Eleitor consciente é o que conhece a verdade; seria uma boa definição. Eleitor consciente é o que não se vende ou não vende o seu voto; idem. Com a lei da ficha limpa poder-se-ia também defini-lo como aquele que não vota em candidato ficha suja; vem bem a calhar.
          Mas a definição que me parece a mais visceral seria: eleitor consciente é o que não é apaixonado. Todos sabem, e os que não sabem fiquem sabendo: - apaixonado é aquele fulminado por uma paixão. (Dirão os mais afoitos que estou a tergiversar, mas invoco-lhes a calma e a paciência.) 
          Ah, a paixão... Diz o pai dos burros sobre a paixão: perturbação do ânimo; grande inclinação ou predileção; amor ardente; e a que me parece a grande definição de  paixão quando aplicada ao eleitor - parcialidade. (http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=Paixão)
          A fim de fisgar alguns apaixonados fiz ontem na rede social uma mini-experiência. Postei lá a mentira que corre solta Brasil afora dando conta de que a respeitada revista Forbes teria divulgado num de seus volumes a informação de que o senhor Luís Inácio Lula da Silva teria entrado na lista das pessoas mais ricas do mundo. Rapidamente vieram pessoas contradizer a facilmente demonstrável mentira. Basta ir à pagina virtual da revista para confirmar a falsidade da informação. A falsa verdade fora postada na rede social por pessoas que notoriamente nutrem uma aversão por este senhor, uma forma de paixão às avessas. 
          Ao mesmo tempo corre solto na rede social um texto do senhor Doutor Manoel Pastana, Procurador da República, onde explica com detalhes a farsa que os procuradores tuiuiús, alinhados com as esquerdas, montaram para o julgamento do mensalão (http://www.manoelpastana.com.br/index.php/noticias/694-lula-dirceu-e-os-tuiuius-a-realidade-oculta-do-mensalao-titulo-1.html). O texto, necessariamente longo pela riqueza de detalhes e de citações de leis e trechos de depoimentos de testemunhas e réus no processo, é claro feito água pura e cristalina e só revela uma paixão do autor, já que estamos a falar em paixão: - a que se cumpram as leis e os ritos legais do país. 
          Pois qual foi minha surpresa quando um amigo, comentando a mentira da lista atribuída  à Forbes, diz: "Fernando Cavalcanti, essa lista tem tanta credibilidade quanto os artigos do Manuel Pestana." O amigo ainda escreveu incorretamente o nome do corajoso Procurador, que anda por aí escoltado por policiais federais por ser ameaçado e jurado de morte. 
         Mas há pior. O amigo é ilustrado e sensível médico, apreciador das artes e homem de bem; é homem sério, compenetrado com seu mister de aliviar a dor do ser humano que sofre; é homem honesto; é homem de alma branca, enfim. 
          Não conheço pessoalmente o Doutor Pastana, mas seus artigos transbordam a alma do homem de bem, combatente, zeloso, corajoso e amante das leis, das boas leis; seus artigos transpiram contundência, lucidez e visceralidade, não poupando poderosos que tentam infringir a lei; põe à pena seus nomes e afirma categórico que não calará pois que não teme a morte. Como duvidar de um homem que põe sua vida em jogo para defender a justiça e as leis de sua pátria? Como menosprezar as valiosas informações do Doutor Pastana, contidas em seu artigo?, informações  que até mesmo nossa imprensa marrom nos nega em sua eterna pusilanimidade e conluio com os homens de poder do momento? Por que razões o meu querido amigo e homem de bem se contrapõe a outro homem de bem?
          Só há uma explicação: - a paixão. O amado amigo age como os apaixonados que publicaram a mentira que usei para demostrar o que me propunha. Ele e aqueles não são movidos pela imparcialidade da verdade; estão a movê-los suas predileções e inclinações identitárias. Foram fisgados pela tendência que temos a cultuar personalidades per si, não importa o que elas façam, o que elas digam. Cultuam o personagem, a persona, o homem. Calcaram a pés as idéias, os ideais, a moral, a verdade, mesmo sendo boas pessoas como meu amigo.
          Os que plantaram a mentira na intenção de denegrir a imagem do criminoso Lula – há provas disso – estão a agir como os policiais norte-americanos que plantaram provas contra o senhor O. J. Simpson no caso do assassinato da ex-sua então mulher Nicole Brown e seu amigo Ronald Goldman ocorrido, me parece, em 1994. Não havia necessidade. O criminoso seria condenado sem a mentira, tanto que mais tarde ele cometeu vários outros delitos graves e está a cumprir 33 anos de cadeia. 
          Eis, portanto, o que ocorre mesmo ao homem de bem quando imerso no banho dos mediadores químicos da paixão. Nada quer ver, nada quer ouvir, nada quer sentir. Seu prazer é amar a persona, ainda que lhe seja non grata. 

O Procurador Doutor Manoel Pastana é contactável no endereço contato@manoelpastana.com.br
          

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