Amorim a
conheceu n'algum desses lugares de relacionamento virtual. Lá se exibem fotografias
em ângulos convenientes e résumés
suspeitos. Em tese.
Nenhuma suposição pode ser estendida a tudo e a todos de modo
a que não haja exceções. No caso daquela pequena havia a suspeita de se tratar
de um desvio da regra.
Era belíssima;
magra, fausse maigre, uma magreza
repleta de músculos femininos a tornear a pele alva e sedosa, cuja penugem
delicada e dourada realçava sua brancura estonteante. Tudo nela era fibonácico,
em proporções perfeitas e meticulosas. Era esguia de alto a baixo. O rosto
desenhava-se por traços fortes: a linha de implantação dos cabelos tornava a
fronte, quase quadrilátera e plana, suave e harmônica; lábios carnudos e
pletóricos encimavam o conjunto triangular da parte inferior da face; ao se
abrirem os lábios, lindos dentes palidamente amarelos e fortes se deixavam ver
em sorrisos abertos e francos, cheios de vitalidade e força; o nariz adunco
sobre aquela coleção de perfeitas e nobres estruturas arrematava a composição
daquele viságe venusiano. Os
cabelos loiros ela os tinha em quantidade e tamanho, semiondulados e repartidos
em duas metades iguais ao alto da cabeça.
Tudo isso ele
pôde apreciar nas fotografias que ela mesma se permitiu expor. Seria impossível
imaginar que tamanha beleza virtual não se confirmasse na realidade da vida.
Dali a poucos
dias ele o confirmou: era, de fato, uma linda mulher.
Ela escrevera
no item "Procuro" o seguinte: "cuidados..." Assim mesmo,
sucintamente e reticentemente. Amorim se perguntava o que seria que viria após
as reticências hesitantes e incertas. Deixou-lhe uma mensagem bem a propósito;
escreveu: "eu cuido", e completou com as mesmas e lucubratórias
reticências. Dias depois veio a resposta da pequena. Respondeu com uma
pergunta; queria saber: "julga-se capaz?" Acordaram um encontro não
sei onde, e conversaram um pouco, não muito. Amorim saiu com a leve mas nítida
impressão de que ela não se agradara de sua pessoa. Fosse porque fosse um homem
um pouco mais baixo que ela, fosse porque a conversa não se prolongasse o
bastante, o fato é que sentiu mau presságio. Um detalhe teria lhe chamado a
atenção – ela fizera questão de tentar intimidá-lo e constrangê-lo de alguma
forma, usando para tal a pilhéria desarrazoada e imprópria entre quase
desconhecidos. Tentando sempre demonstrar simpatia e desprendimento acabou por
lhe deixar a certeza de sua inconveniência e destempero. Em suma, Amorim de lá
saiu sentindo sutil desconforto. Se a pequena sentia o mesmo em relação a ele, jamais o saberá.
Não se sentia
frustrado pelas óbvias razões da conquista possivelmente malograda, nem por uma suposta
rejeição. O que o incomodava era a percepção de um sentimento de enorme esforço para
lavar a cabo uma mera conversação. Com efeito, havia ali algo inusitado. Em que pesasse a formosura, algo
nela lhe desagradava imensamente. Ele sentia como se lhe tivesse deitado um
peso às costas, talvez ela própria, caso viessem ao flerte ou à amizade. Ele,
um sujeito de têmpera leve e alvissareira, iniciava a sentir n’alma algo de
repugnante sobre aquela jovem e bela mulher. Perguntava-se o que seria, e nem
de longe atinava.
O que começou
mal piorou ainda mais em poucos dias. A má impressão de Amorim sobre suas
inconvenientes colocações e chistes só crescia. Ele passou a confrontá-la com
seu mesmo tipo de facécia, o que acabou por demonstrar que para ela havia
apenas uma via para as chacotas de mau gosto – de lá para cá. Ela tinha
permissão a dizer o que quisesse e bem entendesse; ele não. Se o fizesse ela o
repreendia acusando-o de indelicado e grosseiro, sem se aperceber de suas próprias
e primevas impudicícias e negligências.
Sobre nada
substancial conversaram. Nenhum assunto agradável houve entre eles e era precisamente
isso o que o incomodava cada vez mais. Nunca se habituara a amizades sem
conteúdo. Com ela havia sempre uma farpa escondida sob o falso sorriso, sob a
falsa pilhéria, sob o falso prazer do encontro fortuito. Perguntava-se por que
cargas d'água ela ainda lhe dirigia a palavra. O jovem se sentia descaracterizar.
Dizia o que não queria por ouvir o que não gostava. Sentia-se uma carta em seu
baralho fútil e maçante. Queria fugir, nunca mais lhe falar, nunca mais vê-la.
Queria dela
sumir. Quem dá importância ao que pensam os outros? Os muito jovens, os muito verdes; não
ele. A ela, principalmente a ela, permitiria pensar o que bem entendesse. A
pequena gastava seu tempo a tentar lhe passar uma mensagem misteriosa sobre si
mesma: -"Sou diferente de tudo o que você já viu na vida!" E
cobria-se, durante o pouco que conversavam, em manto negro e impenetrável. De
si nada falava, nenhuma emoção exprimia, e na única vez que o fez pareceu a
Amorim que se tratava de um desdém, mais um. Gastava esse pouco tempo em risotas
e quebra-cabeças infantiloides, destinados a lhe passar a idéia de pessoa
fleumática e segura. Mal sabia ela que a atitude surtia no espírito do rapaz o
efeito oposto. Para ele, entre outras pretensões, ela estava a testá-lo, e de
alguma forma sentia que ela de tudo fazia para aborrecê-lo na intenção de
experimentar sua tolerância. Pior: tudo sem a menor razão, sem o mínimo
e razoável propósito. A superficialidade que ela impunha seria sua proteção ou desgraçadamente a sua essência. Prolongando-a sempre só o levava a pensar na segunda hipótese.
Um dia, dali a
pouco, como no romance de Wilde, aquela bela pintura de carne e suas linhas
harmoniosas, em sua mente e a seus olhos, se entrecortavam entre si como
garatujas hediondas que agora desenhavam uma caricatura brutal. Basil Hallward
odiaria tingir semelhante criatura sobre seu écran como o fez, o coração
repleto de paixão e alegria, com Dorian Gray. Celeremente sua imagem se tornava
grotesca e bruxuleante e, como na pintura de Hallward, degenerava e se
decompunha como um cadáver velho e monstruoso, a acompanhar o decaimento das potenciais
virtudes e traços de caráter do indivíduo real.
Na tela
mental do rapaz tudo se esvaiu, enquanto os ventos de seu autêntico espírito lhe
tangiam os pensamentos...
Nenhum comentário:
Postar um comentário