Sua pureza começava no nome: Angélica.
Era ascensorista no hospital. Vivia subindo e descendo com a gente de toda estirpe. De tão simpática, era querida. Era pura e humilde, não menos educada. Seu salário de miséria não a intimidava nem lhe baixava a auto-estima – vivia de bom humor. A lida com a gente diversa a ensinava a missão maior: servir. E com que prazer o fazia!
Certo dia, sozinho com ela na cabine, pediu-me, reservadamente, um favor. Seria uma coisa muito discreta, muito íntima, queria meu completo sigilo. Percebi de sua parte um sentimento de culpa por algo que estava para fazer, e tratei de tranqüilizá-la quanto à minha incompetência para juiz. Prontifiquei-me a ajudá-la com toda minha discrição. Só então contou-me o caso desde o início.
Há cerca de um mês ela conduzia em seu elevador um ícone médico do Ceará. Como diria o meu amigo Glauco Kleming, um pica-grossa. Em que pese seus títulos e notável saber médico, é um sujeito dado às galhofas, e sua simpatia o exime da soberba comum neste tipo. De tão dado a se trocar com as pessoas, ele não fez a menor cerimônia em pedir a Angélica cinco reais emprestados para fazer um lanche na cantina. Saíra de casa açodado, nem tivera tempo para uma média. A operação começara cedo. Estava faminto.
Naquele dia, por uma dessas coincidências que só o destino concebe, a pobre moça tinha apenas, e justamente, uma nota de cinco reais em seu bolso, sobejos de seu magro salário do mês que ainda tardava para terminar. Mesmo assim, e com o coração nadando em prazer por poder ajudar tão ilustre figura, meteu a mão no bolso e de lá tirou a nota amarrotada, passando-a ao engravatado esculápio. Ainda que entregasse todas as suas últimas economias, o resto do dia foi de uma alegria só – matara a fome do doutor pica-grossa! Seu senso de servir prevalecia. Além do mais, receberia o dinheiro de volta em breve, amanhã quem sabe.
O doutor de jaleco branco impecável pagou Angélica quinze dias depois – deu-lhe um cheque cruzado, no valor de cinco reais. Toda contente, a jovem foi à agência bancária que funciona dentro do hospital só para tomar ciência de que cheques cruzados não se prestam ao desconto na boca do caixa – teria de depositá-lo na conta.
“Que conta, doutor Fernando? Não tenho conta, não!”, confessou-me quase chorando. Com rendimentos tão curtos, não possuía conta bancária. Saiu, então, a explicar-me o que queria de mim: - que eu falasse com o devedor pica-grossa e trocasse com ele o cheque.
Cobrei-lhe o cheque com multa e juros de mora, e ainda incluí cem por cento de juros no custo do dinheiro de Angélica. Afinal, seu dinheiro é muitíssimo caro e emprestá-lo ao doutor pica-grossa se mostrou uma operação arriscada. E nada cobrei por esse serviço. Ela merecia muito mais.
Fernando Cavalcanti, 01.01.2010
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