“Há favores tão grandes que só podem ser pagos com a ingratidão.”
Alexandre Dumas
Tão logo escrevi sobre a intimidade da gratidão, sugeriu-me o meu amigo Pedro escrever sobre a gratidão da intimidade. Ocorre que não há gratidão na intimidade. A intimidade é a condição sine qua non para a ingratidão, isso sim.
Pode parecer um paradoxo, mas não é. O que acontece é que a intimidade proporciona uma indevida aproximação entre os seres humanos. Essa intimidade permite o confisco do outro, da impolidez à zombaria. A intimidade da gratidão é apanágio dos que se sentem muito em débito. Nada mais. Não me sinto disposto a discorrer sobre essa mazela do homem, a ingratidão da intimidade. Contudo, preservo o título do texto. Eventualmente troco-o ao final. Quem sabe o que me virá à cabeça?
Ligou-me hoje Vanusa, uma antiga paciente. Queria saber do consultório. É uma mulher excepcional. Desenvolveu dois tumores malignos, um em cada mama. Sincrônicos. Foi à careca, emagreceu, mas queria reconstituir o que fosse preciso. Não foi necessário. Não foi uma ressecção radical.
Durante seu drama, uma ameaça à sua vida, ia ao consultório tratar varizes. Eram varizes “estéticas”. Ainda queria preservar a beleza. Era namoradeira. Contava-me suas estripulias, seus casos de amor. Nunca os interrompeu por causa da doença. A morte se lhe achegava e ela clamava à vida. Às vezes, ao fim do dia, após a sessão de quimioterapia, chorava. Baixinho, só ela e sua fé, seu deus, sua força. Encostava os joelhos ao chão, na atitude humilde dos que se vêem fraquejar, a implorar por força, por energia, por não se sabe o que para suportar a provação e – quem sabe - a morte.
Vamos e venhamos – não é todo mundo que morre sabendo que vai morrer. Morre-se após o dia de trabalho. Morre-se na partida de futebol. Morre-se à caminhada na Beira-Mar. Não se morre a morte decretada. A surpresa da morte é o que nos ilude. A morte sem surpresa é pior que a cadeira elétrica. Os da cadeira duram enquanto tramitam os requerimentos, as súplicas, os pedidos de clemência. A morte anunciada após a constatação da doença terminal não permite adiamentos, ou até permite. Mas há de ser uma das grandes controvérsias médicas, religiosas, éticas. O sujeito há de ficar vivo nem que sofra os piores horrores e torturas a que um ser humano tenha direito. É isso vida? Nunca os arautos saberão. Não são eles a sofrer a penitência dos CTI’s.
Mas não era sobre isso que eu queria escrever. O que eu queria dizer é que Vanusa não entendia o consultório fechado. O pior é que não consegui lhe explicar. E fiquei a pensar. E concluí. O consultório fechado é a minha resposta ao que querem que eu faça. Digo “Não!” ao que me querem que faça. Digo “Não!” na atitude, porque as palavras são demasiado pobres e incompreensíveis para expressar toda a minha indignação. Dei um basta nas conversas bobas. Dei um basta nas reclamações. E definitivamente respondi ao teste.
Um amigo certo dia de mim duvidou, dizendo que nunca havia sido testado. Pois bem, amigo: - renunciei às possibilidades mais ousadas, mais ardilosas, mais tentadoras. Quando se faz uma escolha, quem sabe aonde ela o levará? A minha me levou aonde jamais supus. Levou-me a infernos e tormentas que nunca supus existirem. Levou-me à frustração e ao assombro, à decepção e, por fim, à serenidade. Após a reflexão da angústia, a me perguntar e avaliar o que foi feito, em mim não achei culpa. Antes achei em mim perplexidade. E a serenidade de mim se apossou. Paz. Paz de espírito.
E assim de Vanusa me despedi: - o consultório já não me realizava. Ela, em sua pureza e simpatia de sobrevivente – disse que estava maravilhosamente bem e namorando – usou do mais brasileiro de todos os sentimentos, a intimidade da gratidão, para desligar o telefone: - um beijo carinhoso para o seu médico mais querido. Quem pode resistir a esse teste, meu amigo? Que permaneça o título.
Fernando Cavalcanti, 19.02.2010
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