Não sei se sabem que, com certa frequência, faço uso de uma
motocicleta em meu dia-a-dia. Hoje, de saída do hospital, dou de
cara com o Edilson Bandeira. Fez-me a pergunta que sempre me fazem
quando me veem subir na motocicleta: -”Não tens medo de andar de
moto”? Sem demora, respondi-lhe o de sempre: -”Pelo-me de medo”!
E saí a lhe explicar que só há uma chance para o motociclista: -
quando ele teme, quando tem medo. Sim, o medo o protege, ainda que
não garanta sua completa segurança.
Outro dia, já vai quase um mês, encontro ali no mercadinho da
esquina o meu amigo Helder Gondim. Entrei na fila do galeto assado e
o vejo no botequim ao lado, uma long neck na mão. Mais atrás da
mesa onde se engalfinhavam os paus-d'água na rinchavelhada, a
motocicleta enorme, uma dessas esportivas que vai de zero a cem em
cinco segundos. Ao me ver, sorriu e me veio ao encontro.
Encurtemos a história que o leitor já se vê açodado pelo
trânsito que irá enfrentar após ler-me a crônica: - repreendi-o
por subir à motocicleta após ter bebido. E não somente bebera: -
continuava a beber para, em seguida, pilotar a moto. (Ele era,
naquele momento, o pau-d'água dos paus-d'água.) Em resposta, fez
chacota com o medo. O amigo em defesa de sua tese utilizou-se, sem
o saber, de uma máxima do Kiyosaki que diz que você recebe o que
você teme. (Óbvio é que a máxima do Kiyosaki se refere às
pessoas que não se arriscam dentro de uma margem calculada, e jamais
àqueles que sobem bêbados em motocicletas.) Entregaram-me o galeto,
e nos despedimos. Eis, então, que o medo nos salva e, se não nos
salva, nos redime. Dir-se-ia até que o medo deveria,
obrigatoriamente, ser a obsessão de todo motociclista.
(Diria o Nelson que o sujeito nada é sem as suas obsessões e, se
vivo fosse, do alto de seus mais de 102 anos diria que todos somos a
soma de nossas obsessões.)
Por exemplo, o meu amigo João Milton Cunha de Miranda. Até então
conhecia pouquíssimo das obsessões do amigo, até que ele sobe aqui
num avião e desce em Paris. Iniciou-se então em meu amigo todo um
processo, toda uma maquinação, toda uma comiseração irremediável
e inexorável. Daqui, até antes de subir no avião, via Paris como a
perfeição de cidade, o exemplo de distribuição de renda e de
socialismo concreto. Sim, porque não sei se sabem, mas o socialismo
é das maiores utopias dos últimos séculos. Tanto mais passa o
tempo e tanto mais se insiste no socialismo, tanto mais se percebe a
sua inexorabilidade utópica. Mostrou o tempo que o socialismo só é
possível com a supressão da liberdade, o que fere de morte a
natureza humana.
E justamente o que decepcionava o meu amigo João era que pudesse
haver mendigos em Paris. Esteve ele a comentar de furtos e que havia
furtos por lá. Uma pessoa que com ele viajava teria sido furtada
numa ação de um descuidista. Pois a visão dos mendigos e a ciência
de que havia descuidistas em Paris decepcionaram tanto o meu amigo
que ele saiu a bradar aos quatro ventos: -”Há mendigos em Paris!
Há mendigos em Paris”! E também se esgoelava: -”Furtam em
Paris! Furtam em Paris”! Durante toda a sua estadia na Cidade Luz,
João só via mendigos e furtos. Dir-se-ia que os mendigos e furtos
de Paris passaram a ser, naquele momento e daquele momento em diante,
sua mais cristalina e pura obsessão.
De volta de sua experiência parisiense, encontrei-o no calçadão. E, coisa curiosa,
pareceu-me que o amigo não tivera medo em Paris. Sim, porque quando
há medo há arrependimento. Diria, quero crer, sobre a viagem:
-”Nunca mais! Nunca mais”! Mas não. Que disse ele? Disse
serenamente e reticentemente: -”Viajei com uma expectativa muito
elevada...” Posso garantir: - João jamais teve medo em Paris.
Havia uma obsessão sem medo e uma obsessão sem medo é, desde o seu
início, uma obsessão sem lastro, sem razão de ser, sem fundamento,
destituída de sentido. Dir-se-ia – o amigo não se agaste comigo –
uma obsessão doentia.
Pois percebi que ele, além de não ter medo em Paris, também não
tem medo em Fortaleza. Sim, medo em Fortaleza!... No dia 24/03/2013 a
imprensa informou que de 01/01/2014 a 19/03/2014 haviam ocorrido 776
assassinatos na cidade, uma média de quase 10 por dia
(http://mais.uol.com.br/view/pj4p9vzv54s1/fortaleza-tem-media-de-10-assassinatos-por-dia-04024C18376ED8C94326?types=A&).
Em 17 de julho passado um deputado estadual anunciou, do púlpito da
Assembléia Legislativa do Estado, que haviam ocorrido 173
assassinatos em Fortaleza no mês anterior, em plena Copa do Mundo de
Futebol(http://www.al.ce.gov.br/index.php/ordem-do-dia/item/31880-15-07-2014-pe02). O número de assaltos praticados em Fortaleza é
virtualmente desconhecido posto que muitas das vítimas não prestem
queixa na delegacia por puro e simples descrédito nas autoridades, à exceção de
casos em que sobre a vítima repousa o ônus da prova da
agressão a fim de reaver, sem ônus financeiro, documentos levados
junto a bens de valor pelos facínoras. Nada disso parece assustar o
meu amigo. Sua obsessão, repito, eram os furtos e os mendigos de
Paris...
Vejam, por outro lado, o meu amigo Helder Gondim. Também não tem
medo. A possibilidade real de se evaporar sobre duas rodas não lhe
causa o menor calafrio. Brinca com a morte como quem brinca com o
cãozinho filhote ou com o bebê de colo. A possibilidade da filha
órfã não o demove desse arriscado e tolo gracejo. A ausência do
medo constante que o protegeria leva-o a estas manobras ameaçadoras.
Seu estouvamento põe-lhe em risco a vida, a felicidade da mulher, a
segurança da filha. Mas nada disso lhe basta. Sua obsessão é
justamente não ter medo. Disse-me, a língua embolada na boca: -”O
álcool me tira o medo; com ele o passeio é mais gostoso...”
A título de comparação, ano passado estive em Paris. E vi
mendigos. E eles não me assediavam, tampouco me ameaçavam. Em
lugares de maior movimento de turistas sempre havia o aviso “cuidado
com os descuidistas”. Digamos de uma vez por todas: - em outras
capitais e cidades europeias há sempre o aviso “cuidado com os
descuidistas”. Apesar dos avisos, não havia medo. Meu medo, mesmo
quando lá estava, era da motocicleta e de Fortaleza. E pensava no
aviso que estaria espalhado pela cidade quando retornasse: “cuidado
com os assaltantes e com os assassinos”. E outros avisos estariam
apostos nas ruas e avenidas: “cuidado com o fortalezense que
odeia”; “cuidado com o condutor mortal”; “cuidado com o
hospital público”; e, quem sabe, “cuidado com o governo”. Ainda em Paris, pelei-me de medo de Fortaleza.
Concluí sem delongas: - enquanto minha obsessão é o medo, a do
João é o não-medo. Está, neste exato momento, destemidamente
apoiando a velha e conhecida forma de fazer campanha política prévia às eleições de outubro: -
tapinhas nas costas, visitas a bairros e distritos miseráveis, e o
blablablá de sempre...
Quanto a mim, trancafio-me em casa temerosíssimo do resultado
do futuro pleito. Com tantas obsessões a me rondar deduzi, de um ditado popular, o que parece ser a verdade inabalável: - uma só obsessão não faz verão. Não perceberam? A minha terceira é o João.
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