terça-feira, 2 de setembro de 2014

UMA SÓ OBSESSÃO NÃO FAZ VERÃO

          Não sei se sabem que, com certa frequência, faço uso de uma motocicleta em meu dia-a-dia. Hoje, de saída do hospital, dou de cara com o Edilson Bandeira. Fez-me a pergunta que sempre me fazem quando me veem subir na motocicleta: -”Não tens medo de andar de moto”? Sem demora, respondi-lhe o de sempre: -”Pelo-me de medo”! E saí a lhe explicar que só há uma chance para o motociclista: - quando ele teme, quando tem medo. Sim, o medo o protege, ainda que não garanta sua completa segurança.
          Outro dia, já vai quase um mês, encontro ali no mercadinho da esquina o meu amigo Helder Gondim. Entrei na fila do galeto assado e o vejo no botequim ao lado, uma long neck na mão. Mais atrás da mesa onde se engalfinhavam os paus-d'água na rinchavelhada, a motocicleta enorme, uma dessas esportivas que vai de zero a cem em cinco segundos. Ao me ver, sorriu e me veio ao encontro.
          Encurtemos a história que o leitor já se vê açodado pelo trânsito que irá enfrentar após ler-me a crônica: - repreendi-o por subir à motocicleta após ter bebido. E não somente bebera: - continuava a beber para, em seguida, pilotar a moto. (Ele era, naquele momento, o pau-d'água dos paus-d'água.) Em resposta, fez chacota com o medo. O amigo em defesa de sua tese utilizou-se, sem o saber, de uma máxima do Kiyosaki que diz que você recebe o que você teme. (Óbvio é que a máxima do Kiyosaki se refere às pessoas que não se arriscam dentro de uma margem calculada, e jamais àqueles que sobem bêbados em motocicletas.) Entregaram-me o galeto, e nos despedimos. Eis, então, que o medo nos salva e, se não nos salva, nos redime. Dir-se-ia até que o medo deveria, obrigatoriamente, ser a obsessão de todo motociclista.
            (Diria o Nelson que o sujeito nada é sem as suas obsessões e, se vivo fosse, do alto de seus mais de 102 anos diria que todos somos a soma de nossas obsessões.)
          Por exemplo, o meu amigo João Milton Cunha de Miranda. Até então conhecia pouquíssimo das obsessões do amigo, até que ele sobe aqui num avião e desce em Paris. Iniciou-se então em meu amigo todo um processo, toda uma maquinação, toda uma comiseração irremediável e inexorável. Daqui, até antes de subir no avião, via Paris como a perfeição de cidade, o exemplo de distribuição de renda e de socialismo concreto. Sim, porque não sei se sabem, mas o socialismo é das maiores utopias dos últimos séculos. Tanto mais passa o tempo e tanto mais se insiste no socialismo, tanto mais se percebe a sua inexorabilidade utópica. Mostrou o tempo que o socialismo só é possível com a supressão da liberdade, o que fere de morte a natureza humana.
          E justamente o que decepcionava o meu amigo João era que pudesse haver mendigos em Paris. Esteve ele a comentar de furtos e que havia furtos por lá. Uma pessoa que com ele viajava teria sido furtada numa ação de um descuidista. Pois a visão dos mendigos e a ciência de que havia descuidistas em Paris decepcionaram tanto o meu amigo que ele saiu a bradar aos quatro ventos: -”Há mendigos em Paris! Há mendigos em Paris”! E também se esgoelava: -”Furtam em Paris! Furtam em Paris”! Durante toda a sua estadia na Cidade Luz, João só via mendigos e furtos. Dir-se-ia que os mendigos e furtos de Paris passaram a ser, naquele momento e daquele momento em diante, sua mais cristalina e pura obsessão.
          De volta de sua experiência parisiense, encontrei-o no calçadão. E, coisa curiosa, pareceu-me que o amigo não tivera medo em Paris. Sim, porque quando há medo há arrependimento. Diria, quero crer, sobre a viagem: -”Nunca mais! Nunca mais”! Mas não. Que disse ele? Disse serenamente e reticentemente: -”Viajei com uma expectativa muito elevada...” Posso garantir: - João jamais teve medo em Paris. Havia uma obsessão sem medo e uma obsessão sem medo é, desde o seu início, uma obsessão sem lastro, sem razão de ser, sem fundamento, destituída de sentido. Dir-se-ia – o amigo não se agaste comigo – uma obsessão doentia.
          Pois percebi que ele, além de não ter medo em Paris, também não tem medo em Fortaleza. Sim, medo em Fortaleza!... No dia 24/03/2013 a imprensa informou que de 01/01/2014 a 19/03/2014 haviam ocorrido 776 assassinatos na cidade, uma média de quase 10 por dia (http://mais.uol.com.br/view/pj4p9vzv54s1/fortaleza-tem-media-de-10-assassinatos-por-dia-04024C18376ED8C94326?types=A&). Em 17 de julho passado um deputado estadual anunciou, do púlpito da Assembléia Legislativa do Estado, que haviam ocorrido 173 assassinatos em Fortaleza no mês anterior, em plena Copa do Mundo de Futebol(http://www.al.ce.gov.br/index.php/ordem-do-dia/item/31880-15-07-2014-pe02). O número de assaltos praticados em Fortaleza é virtualmente desconhecido posto que muitas das vítimas não prestem queixa na delegacia por puro e simples descrédito nas autoridades, à exceção de casos em que sobre a vítima repousa o ônus da prova da agressão a fim de reaver, sem ônus financeiro, documentos levados junto a bens de valor pelos facínoras. Nada disso parece assustar o meu amigo. Sua obsessão, repito, eram os furtos e os mendigos de Paris...
          Vejam, por outro lado, o meu amigo Helder Gondim. Também não tem medo. A possibilidade real de se evaporar sobre duas rodas não lhe causa o menor calafrio. Brinca com a morte como quem brinca com o cãozinho filhote ou com o bebê de colo. A possibilidade da filha órfã não o demove desse arriscado e tolo gracejo. A ausência do medo constante que o protegeria leva-o a estas manobras ameaçadoras. Seu estouvamento põe-lhe em risco a vida, a felicidade da mulher, a segurança da filha. Mas nada disso lhe basta. Sua obsessão é justamente não ter medo. Disse-me, a língua embolada na boca: -”O álcool me tira o medo; com ele o passeio é mais gostoso...”
          A título de comparação, ano passado estive em Paris. E vi mendigos. E eles não me assediavam, tampouco me ameaçavam. Em lugares de maior movimento de turistas sempre havia o aviso “cuidado com os descuidistas”. Digamos de uma vez por todas: - em outras capitais e cidades europeias há sempre o aviso “cuidado com os descuidistas”. Apesar dos avisos, não havia medo. Meu medo, mesmo quando lá estava, era da motocicleta e de Fortaleza. E pensava no aviso que estaria espalhado pela cidade quando retornasse: “cuidado com os assaltantes e com os assassinos”. E outros avisos estariam apostos nas ruas e avenidas: “cuidado com o fortalezense que odeia”; “cuidado com o condutor mortal”; “cuidado com o hospital público”; e, quem sabe, “cuidado com o governo”. Ainda em Paris, pelei-me de medo de Fortaleza.
          Concluí sem delongas: - enquanto minha obsessão é o medo, a do João é o não-medo. Está, neste exato momento, destemidamente apoiando a velha e conhecida forma de fazer campanha política prévia às eleições de outubro: - tapinhas nas costas, visitas a bairros e distritos miseráveis, e o blablablá de sempre...
       Quanto a mim, trancafio-me em casa temerosíssimo do resultado do futuro pleito. Com tantas obsessões a me rondar deduzi, de um ditado popular, o que parece ser a verdade inabalável: - uma só obsessão não faz verão. Não perceberam? A minha terceira é o João.     

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