O
país está cheio de gente boa. Sim, basta olhar em torno ou abrir
bem os ouvidos. Ouço toda hora: fulano é gente boa; sicrano é
pedra 90; beltrano é show de bola... e por aí vai. Em suma, somos
um país de gente boa. Nunca vi tanta gente boa junta. Somos o maior
ajuntamento de gente boa do mundo.
Hoje
de manhã, pilotando minha moto indo pro hospital, faço a seguinte
reflexão. Perguntava-me a mim mesmo como é possível que, abrigando
tanta gente boa, esse seja um país que tanto odeia. E nem falo dos
nossos mais de 50 mil assassinatos anuais. Como estava no trânsito,
sentia o trânsito. E o que sentia era justamente a agressividade do
trânsito. Sentia o ódio no trânsito. O trânsito era, naquele
momento, um ódio só.
De
carro ou de moto, no trânsito desta cidade o sujeito sofre todas as
agressões possíveis e imaginárias. Diria até mais. Diria que, não
bastassem as inúmeras, cotidianas e horárias infrações às leis,
às vezes – imperioso e vergonhoso admitir –, necessárias por
conta da insegurança geral que ronda o cidadão comum, até mesmo
nosso pedestre agride o condutor e, ele próprio, o pedestre,
infringe regras básicas. Vejam o interessante: – o sujeito acha
que, porque é pedestre, tem sempre razão. Esse comportamento
recente por parte do pedestre faz parte de um comportamento mais
geral, qual seja, o sujeito acha que, por ser "mais fraco",
tudo pode. Não importa o que diga a lei, o "mais fraco",
no Brasil, acha que sempre terá razão. A prova é que, se for
atropelado ao andar em plena pista de rolagem, sentir-se-á cheio de
razão ainda que estivesse fora da faixa de pedestre. A coisa é mais
ou menos por aí.
Outro
dia vinha eu na moto, voltando do hospital, quando vejo a jovem que
acompanhava uma senhora idosa tentando atravessar a pista. Não se
utilizava da faixa de pedestre; simplesmente queria atravessar em
meio ao trânsito implacável e feroz. Cheguei a pensar: –"Há
de ser a sogra"... A jovem, em sua consciência de "mais
fraca" – ela e a senhora idosa –, sentia-se repleta de razão
e queria porque queria que os carros e caminhões parassem a fim de
que elas pudessem alcançar a calçada oposta. A pobre senhora, de
tão idosa, não parecia perceber os riscos a que era exposta por sua
irresponsável acompanhante. Um dos carros parou, mas a maioria não
se deu o trabalho. E seria bem provável que um eventual atropelador
fosse, de fato, considerado culpado. As leis, por aqui, só funcionam
para punir o "mais forte".
Falando
assim parece que estou delirando, que estou dizendo uma asneira sem
tamanho. Alguém há de repreender-me e, esgoelando-se, tentará
corrigir-me dizendo: –"A lei protege o mais forte, imbecil"!
Afinal, dizem, sempre foi assim. Ou não?
Ah...!
Bons tempos aqueles...! Bons tempos aqueles!... Foram-se os tempos em
que a lei protegia o "mais forte"... Hoje ela protege o
"mais fraco". Vejam, por exemplo, o caso da jovem que
forçava a passagem pela pista tentando atravessá-la com a senhora
idosa. Caso fossem atropeladas, o condutor teria uma dor de cabeça
tremenda com a lei. Sendo "mais fraco" o pedestre, ninguém
procuraria saber se ele está errado. De cara. Afinal de contas, o
pedestre tem sempre razão. Estar ou não na faixa teria nunhuma importância. A
participação de uma senhora idosa no "acidente", ainda
que involuntária, excluiria qualquer possibilidade de leitura dos
códigos. Como é possível o sujeito atropelar uma pobre e indefesa
senhora e não ter a culpa? Uma senhora idosa é, e sempre será,
inocente. Cadeia no condutor que atropela o pedestre! (O diabo é
que, hoje, nem o "fraco" nem o "forte" vai para a
cadeia.)
Só
agora, com tantas aspas a enfeitar-me a crônica, percebo minha
ambiguidade sobre quem seriam os "mais fortes" e os "mais
fracos". Definamos, portanto, quem seriam esses senhores. Mas
antes confesso que, pilotando a moto pela manhã, pensava também
noutro viés do "país de gente boa".
Todos
sabem que o brasileiro é conhecido por ser um "solidário"
nato. (Aviso de antemão: – as aspas deste texto vieram para
ficar.) Basta que os morros desabem sobre os casebres que nunca
deveriam estar ali porque a lei os proíbe e que as enchentes
destruam as casas construídas em áreas de risco para que se
manifeste o "brasileiro solidário". Milhares de objetos de
primeira necessidade e milhares de reais serão doados para atender
as necessidades do povo desabrigado. É um evento quase anual. Se não
acontecer há de ser porque a estiagem não permitiu. Estamos
justamente adentrando a estação chuvosa e até agora nenhum
desabrigado, nenhum alagamento, nenhum transbordamento. Desejando
ardentemente estar equivocado, há de ser uma questão de tempo e do
tempo. Ainda que existam as leis que visam proibir a construção em
áreas sujeitas a riscos, elas não surtem efeitos porque quem
resolve morar nessas áreas é o "mais fraco" e, como
dissemos, nada é mais forte do que o "mais fraco" aos dias
de hoje. Assim, é ponto pacífico: – o brasileiro é solidário
até debaixo d'água. Literalmente. Diferente do mineiro, um espécime
de brasileiro que, segundo o Otto Lara Resende só é solidário no
câncer, o brasileiro em geral adora ser solidário com a desgraça
de seus conterrâneos.
E,
afinal, quem é o "mais fraco" em toda essa história? Há
várias possibilidades. De cara pensei que o "mais fraco"
seria o pobre, aquele que tem poucos recursos financeiros. O diabo é
que o governo tirou da pobreza, por decreto, um monte de gente que,
para efeitos de seus feitos, não mais é pobre, mas que, para a
realidade dos fatos, continua terminando o mês sem um tostão na
carteira. O pobre no Brasil é uma alucinação, um espectro do
passado a assombrar o governo.
Depois
pensei que o "mais fraco" seria o marginal, o criminoso
declarado, o assassino, o traficante de drogas ilícitas, que, quando
preso, vai cumprir pena em prisão que mais parece um calabouço
medieval. Mas de imediato concluí que o difícil é esse povo ir
preso e, se for, mais difícil ainda é lá permanecer já que os
indultos e frouxidões aí estão para livrá-lo. Isso sem falar que
a alguns a prisão é o céu, já que lá ficando recebem pensão do
governo para sustentar os filhos.
Em
seguida imaginei que o "mais fraco" é o menor abandonado,
o menino de rua que vive debaixo de viadutos e pontes, sem ter o que
comer e vestir, largado ao relento da noite e ao calor do dia, sem
escola para frequentar e sem família para abrigá-lo; mas logo vi
que não, que hoje o menor tem a proteção do Estado, tem o Estatuto
que o livra de todos os males e o protege de todas as ameaças e
perigos, de modo que tem
tudo, dispõe de tudo, é
feliz e sadio....
Já
estava me vendo sem opções quando imaginei que o "mais fraco"
é o idoso que, depois de passar a vida pagando elevados impostos, o
governo acabou
por presenteá-lo
com um outro Estatuto que o protege do preconceito e maus tratos,
além de livrá-lo de filas e das roletas do transporte público,
embora ainda lhe pague uma aposentadoria humilhante e aviltante,
enquanto lhe oferece serviços de saúde onde ficam mais doentes e
acabem por morrer.
Assim,
cheguei a meu destino sem descobrir quem seria o “mais fraco”
nessa estória, admitindo a possibilidade de que este pudesse ser eu
e os a mim semelhantes, mas aí já seria advogar em causa própria
e, além do mais, não gosto de ser “mais fraco” em coisa
nenhuma, de modo que estacionei, desliguei a moto e fui trabalhar.
Qualquer dia desses, num lampejo de inspiração, lograrei vislumbrar
quem é o
“mais fraco”. Afinal, ele há de ser muito gente boa...
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