As macas estão enfileiradas de cada lado, uma a uma, coladas entre si. Os corredores formam um L ou, melhor, dois L's colados um ao outro por lados opostos. Terá o quê?, seus 60 a 70 metros de comprimento o maior, ao passo que os menores terão seus 20 ou 30 metros. As macas se embrenham por dentro do edifício da Emergência, já reformado sei lá quantas vezes, mas jamais ampliado. O secretário boquirroto, irmão do senhor governador, puxou da caneta tão logo assumiu e tirou todo mundo de lá. Foram enviados como produtos indesejados para outras unidades de saúde, nem sempre de acordo com a capacidade de resolução requerida para cada caso. Além disso, anexou-se parte do hall de entrada do novo edifício, ao lado deste onde funciona a Emergência. Cresceram paredes, lá puseram leitos e o transformaram numa enfermaria. Antes os pacientes ficavam lá, neste hall, como ficam os dos corredores: – expostos, vestidos ou não, com suas feridas cobertas por curativos na maior parte do tempo, mas nem sempre. Há sempre o risco de que alguém vomite ou tenha acessos de tosse em cima de seu vizinho de maca. Se é de morrer, não se morre sozinho. Há uma plateia fixa que testemunha qualquer morte. O desenho arquitetônico original foi, assim, modificado por essa "contingência". Tudo obra da caneta do senhor secretário.
Nos corredores há, ao lado de cada maca, o suporte de soro correspondente e uma ou duas cadeiras para os acompanhantes, um filho, o neto, a esposa, o marido.., e que servem também como cabide para roupas ou bancada para uma mochila ou diminuta mala. Às vezes, o que faz companhia é só a vizinha muito chegada, já que na família todos trabalham e ninguém pode parar a vida para ficar ali com seu ente "querido". Ou o doente mora no interior e não dispõe de alguém na capital para lhe dar essa assistência tão desejada e tão necessária. Em qualquer das hipóteses, pouco importa. O doente que está ali, está internado por necessidade. Sua doença requer tratamento em ambiente hospitalar. Não é possível tratá-la em casa com remedinho caseiro, um chá de boldo ou coisa que o valha.
Abro um parêntese para falar da vaga do hospital dos corredores lotados. A vaga? Não existe a palavra "vaga" no dicionário do hospital. Um leito fica vago por pouquíssimo tempo, questão de segundos, o tempo necessário para comunicar ao centro de regulação que alguém morreu. Quando a alta é antecipada ou prevista, a ocupação do lugar é um continuum, ou seja, já há ali alguém mesmo que ainda não se tenha deitado ao colchão. Outro dia, um alienado brasileiro – não se enganem: há um número extremamente elevado de alienados brasileiros – ligou para o telefone portátil de um médico funcionário do hospital. Queria o inusitado. O que queria demonstrava, por si só, sua abissal ignorância sobre o que ocorre em seu país. E o que queria? Queria uma vaga. Sim, uma vaga para um parente seu. Na cabeça do brasileiro, a pessoa adoece, liga para um médico do serviço público e este, numa calma de monge budista, arranja o leito na enfermaria que o doente ou sua família desejam. Se duvidar, vai querer ficar não na enfermaria, mas no apartamento, numa suíte do hospital, com direito a TV, condicionador de ar e até uma vista para as dunas. Vê-se com isso que a ignorância mata.
São doenças graves que não doem. Sim, boa parte, uma grande parte das doenças do corredor não dói. O doente, morando no interior ou na capital, tendo ou não uma mínima educação, julga a dor como o sintoma. Sem dor não há doença, segundo sua firme e tola convicção. Para ele toda doença há de doer. "Num sinto nada, doutor", diz ele, ou ela, como se isso o livrasse do mau prognóstico, como se isso fosse um critério de benignidade e sinal inequívoco de que irá para casa em poucos dias.
Foi justamente por não sentir nada, dor nenhuma, coisa nenhuma, que não se empenhou tanto quanto deveria em tratar sua pressão alta e seu diabetes. Fumava desde a adolescência, já se vão cinquenta anos. No posto de saúde próximo a sua casa às vezes tinha médico, às vezes não tinha. Os cubanos vieram, mas depois se foram. Muitos faziam prescrições absurdas, que denunciavam uma formação profissional defeituosa. O médico brasileiro também atende por lá, mas acabam pedindo demissão. Além disso, o que poderiam fazer se os remédios faltavam e não conseguiam tratar os doentes? Nas eleições municipais, por coincidência, tudo para. Os médicos se demitem, os remédios acabam... É como se nos meses que a antecedem tudo parasse de funcionar... Haveria nisso algum propósito? Não se sabe, mas o corredor está lá, lotado deles, dos vitimados dessas paradas intermitentes e frequentes dos agentes da medicina preventiva e primária.
O caso de dona fulana me impressionou além da conta. Era um dos casos mais comuns do corredor. Era o que os médicos chamam de pé diabético. Aconteceu o seguinte. Dona fulana fumava e tinha diabetes há muitos anos. Eis que uma ferida lhe brotou no pé, assim do nada, assim sem razão de ser. Levaram-na para o hospital, para a Emergência. A consulta estava marcada para dali a três ou quatro meses. Tanto demorou que apareceu o tal ferimento. De lá não voltou. Urgia internar-se. Era coisa séria. Faltava-lhe sangue nas pernas. Estava no hospital certo, apropriado para lidar com seu caso.
O diabo foi a visita do ministro. Sim, veio de Brasília o ministro visitar o hospital, averiguar suas instalações, seus problemas, conhecer a instituição. Os corredores estavam apinhados de gente: doentes do fígado, casos de apoplexia, de câncer, e no meio deles dona fulana. O secretário precisava agir rápido, tirar todo aquele povo dos corredores, dar algum destino a eles. Num passe de mágica – novamente a caneta –foram todos transferidos para hospitais particulares menores, conveniados, incapazes de lidar com os graves problemas de saúde daquele corredor de hospital grande. Veio o ministro, fez a visita. A imprensa filmou, televisionou, fotografou, entrevistou. Tudo muito limpo, muito encerado, os corredores ecoavam os sons da trupe que seguia a comitiva. Nem pareciam aqueles passadouros sujos, repletos da gente pobre e doente de seu dia-a-dia.
Dias depois, aos poucos, os corredores voltaram a se encher da gente doente de doença grave, entre eles dona fulana, mandada de volta do pequeno hospital para o qual fora banida a fim de não decepcionar o ministro.
Ah...mas o pé de dona Fulana já não era o mesmo. No intervalo entre a visita da autoridade máxima e o banimento de dona fulana, sua doença avançou e piorou. Com efeito, seu pé estava em petição de miséria, não tinha mais jeito. A gangrena lhe atingira a ossatura, os tendões, os nervos, os músculos... Não havia mais pé. Cortar-lhe fora o membro era o único tratamento que lhe restava para salvar-lhe a vida.
O ministro voltara a seu confortável gabinete, satisfeito por conhecer hospital exemplar, enquanto dona fulana voltou para casa quase 60 dias depois de sua chegada ao corredor. Já não era bípede. Estava presa indefinidamente a uma cadeira de rodas. Quem sabe o prefeito de sua cidade não lhe providencia uma em troca do voto da família nas próximas eleições? Nem na alma lhes doeu passar por tudo isso. As doenças mais graves não doem de fato. Só no fim.