terça-feira, 31 de janeiro de 2017

DOENÇA GRAVE SÓ DÓI NO FIM

          As macas estão enfileiradas de cada lado, uma a uma, coladas entre si. Os corredores formam um L ou, melhor, dois L's colados um ao outro por lados opostos. Terá o quê?, seus 60 a 70 metros de comprimento o maior, ao passo que os menores terão seus 20 ou 30 metros. As macas se embrenham por dentro do edifício da Emergência, já reformado sei lá quantas vezes, mas jamais ampliado. O secretário boquirroto, irmão do senhor governador, puxou da caneta tão logo assumiu e tirou todo mundo de lá. Foram enviados como produtos indesejados para outras unidades de saúde, nem sempre de acordo com a capacidade de resolução requerida para cada caso. Além disso, anexou-se parte do hall de entrada do novo edifício, ao lado deste onde funciona a Emergência. Cresceram paredes, lá puseram leitos e o transformaram numa enfermaria. Antes os pacientes ficavam lá, neste hall, como ficam os dos corredores: – expostos, vestidos ou não, com suas feridas cobertas por curativos na maior parte do tempo, mas nem sempre. Há sempre o risco de que alguém vomite ou tenha acessos de tosse em cima de seu vizinho de maca. Se é de morrer, não se morre sozinho. Há uma plateia fixa que testemunha qualquer morte. O desenho arquitetônico original foi, assim, modificado por essa "contingência". Tudo obra da caneta do senhor secretário.
          Nos corredores há, ao lado de cada maca, o suporte de soro correspondente e uma ou duas cadeiras para os acompanhantes, um filho, o neto, a esposa, o marido.., e que servem também como cabide para roupas ou bancada para uma mochila ou diminuta mala. Às vezes, o que faz companhia é só a vizinha muito chegada, já que na família todos trabalham e ninguém pode parar a vida para ficar ali com seu ente "querido". Ou o doente mora no interior e não dispõe de alguém na capital para lhe dar essa assistência tão desejada e tão necessária. Em qualquer das hipóteses, pouco importa. O doente que está ali, está internado por necessidade. Sua doença requer tratamento em ambiente hospitalar. Não é possível tratá-la em casa com remedinho caseiro, um chá de boldo ou coisa que o valha. 
          Abro um parêntese para falar da vaga do hospital dos corredores lotados. A vaga? Não existe a palavra "vaga" no dicionário do hospital. Um leito fica vago por pouquíssimo tempo, questão de segundos, o tempo necessário para comunicar ao centro de regulação que alguém morreu. Quando a alta é antecipada ou prevista, a ocupação do lugar é um continuum, ou seja, já há ali alguém mesmo que ainda não se tenha deitado ao colchão. Outro dia, um alienado brasileiro – não se enganem: há um número extremamente elevado de alienados brasileiros – ligou para o telefone portátil de um médico funcionário do hospital. Queria o inusitado. O que queria demonstrava, por si só, sua abissal ignorância sobre o que ocorre em seu país. E o que queria? Queria uma vaga. Sim, uma vaga para um parente seu. Na cabeça do brasileiro, a pessoa adoece, liga para um médico do serviço público e este, numa calma de monge budista, arranja o leito na enfermaria que o doente ou sua família desejam. Se duvidar, vai querer ficar não na enfermaria, mas no apartamento, numa suíte do hospital, com direito a TV, condicionador de ar e até uma vista para as dunas. Vê-se com isso que a ignorância mata.
          São doenças graves que não doem. Sim, boa parte, uma grande parte das doenças do corredor não dói. O doente, morando no interior ou na capital, tendo ou não uma mínima educação, julga a dor como o sintoma. Sem dor não há doença, segundo sua firme e tola convicção. Para ele toda doença há de doer. "Num sinto nada, doutor", diz ele, ou ela, como se isso o livrasse do mau prognóstico, como se isso fosse um critério de benignidade e sinal inequívoco de que irá para casa em poucos dias. 
          Foi justamente por não sentir nada, dor nenhuma, coisa nenhuma, que não se empenhou tanto quanto deveria em tratar sua pressão alta e seu diabetes. Fumava desde a adolescência, já se vão cinquenta anos. No posto de saúde próximo a sua casa às vezes tinha médico, às vezes não tinha. Os cubanos vieram, mas depois se foram. Muitos faziam prescrições absurdas, que denunciavam uma formação profissional defeituosa. O médico brasileiro também atende por lá, mas acabam pedindo demissão. Além disso, o que poderiam fazer se os remédios faltavam e não conseguiam tratar os doentes? Nas eleições municipais, por coincidência, tudo para. Os médicos se demitem, os remédios acabam... É como se nos meses que a antecedem tudo parasse de funcionar... Haveria nisso algum propósito? Não se sabe, mas o corredor está lá, lotado deles, dos vitimados dessas paradas intermitentes e frequentes dos agentes da medicina preventiva e primária.
          O caso de dona fulana me impressionou além da conta. Era um dos casos mais comuns do corredor. Era o que os médicos chamam de pé diabético. Aconteceu o seguinte. Dona fulana fumava e tinha diabetes há muitos anos. Eis que uma ferida lhe brotou no pé, assim do nada, assim sem razão de ser. Levaram-na para o hospital, para a Emergência. A consulta estava marcada para dali a três ou quatro meses. Tanto demorou que apareceu o tal ferimento. De lá não voltou. Urgia internar-se. Era coisa séria. Faltava-lhe sangue nas pernas. Estava no hospital certo, apropriado para lidar com seu caso. 
          O diabo foi a visita do ministro. Sim, veio de Brasília o ministro visitar o hospital, averiguar suas instalações, seus problemas, conhecer a instituição. Os corredores estavam apinhados de gente: doentes do fígado, casos de apoplexia, de câncer, e no meio deles dona fulana. O secretário precisava agir rápido, tirar todo aquele povo dos corredores, dar algum destino a eles. Num passe de mágica – novamente a caneta –foram todos transferidos para hospitais particulares menores, conveniados, incapazes de lidar com os graves problemas de saúde daquele corredor de hospital grande. Veio o ministro, fez a visita. A imprensa filmou, televisionou, fotografou, entrevistou. Tudo muito limpo, muito encerado, os corredores ecoavam os sons da trupe que seguia a comitiva. Nem pareciam aqueles passadouros sujos, repletos da gente pobre e doente de seu dia-a-dia. 
          Dias depois, aos poucos, os corredores voltaram a se encher da gente doente de doença grave, entre eles dona fulana, mandada de volta do pequeno hospital para o qual fora banida a fim de não decepcionar o ministro. 
          Ah...mas o pé de dona Fulana já não era o mesmo. No intervalo entre a visita da autoridade máxima e o banimento de dona fulana, sua doença avançou e piorou. Com efeito, seu pé estava em petição de miséria, não tinha mais jeito. A gangrena lhe atingira a ossatura, os tendões, os nervos, os músculos... Não havia mais pé. Cortar-lhe fora o membro  era o único tratamento que lhe restava para salvar-lhe a vida.
         O ministro voltara a seu confortável gabinete, satisfeito por conhecer hospital exemplar, enquanto dona fulana voltou para casa quase 60 dias depois de sua chegada ao corredor. Já não era bípede. Estava presa indefinidamente a uma cadeira de rodas. Quem sabe o prefeito de sua cidade não lhe providencia uma em troca do voto da família nas próximas eleições? Nem na alma lhes doeu passar por tudo isso. As doenças mais graves não doem de fato. Só no fim.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

O IMUTÁVEL ÔNUS DO CRIME

          Foi com indignação e horror que li a matéria no blog do senhor Fernando Ribeiro (http://www.blogdofernandoribeiro.com.br/index.php/9-categorias/1599-pcc-e-comando-vermelho-estao-prontos-para-deflagrar-guerra-pelo-trafico-em-fortaleza#sthash.D1YrlDwy.dpuf) dando conta da proibição, por parte do governador do Estado, a que policiais civis e militares não dessem entrevistas admitindo a existência de uma "paz" selada entre as várias facções criminosas do tráfico de drogas da cidade de Fortaleza. O "pacto" entre eles vem a bem de seu "negócio".
    Hoje, confirmando o que disse o blogueiro, o marrom periódico "O Povo" (http://mobile.opovo.com.br/app/opovo/dom/2016/01/30/noticiasjornaldom,3569037/faccoes-em-tregua-uma-paz-as-avessas.shtml) anuncia que o burburinho do acordo entre os criminosos tomou conta da cidade e traz o relato de alguns policiais militares confirmando o fato. O detalhe que salta aos olhos na reportagem é a solicitação dos policiais que se manifestaram para não serem identificados.
          Ora, o reconhecimento da existência de grandes organizações criminosas em nossa cidade já nos deixa perplexos e indignados e sua associação em uma organização ainda maior, mais complexa e poderosa, temerosos; agora, a ordem da maior autoridade do Estado para que a população não tome conhecimento do risco a que está exposta é simplesmente tenebrosa e nojenta. Prevendo a negação das autoridades quanto a essa proibição, vem bem a calhar o pedido dos policiais, na matéria do "O Povo", a que não tenham suas identidades reveladas levantando elevadas suspeitas de que a ordem do senhor governador seja a mais pura, singela e tenebrosa realidade.
          Vejam os escassos e raros leitores que estamos numa enrascada. Os policiais estão com medo! Estão com medo de serem retaliados por seus superiores e, quem sabe, pelos próprios bandidos. Vivemos sob a égide de um código penal incompetente, inócuo, leniente e, em última análise, serviçal do crime. Com penas leves, patéticas, risíveis à luz da função de fazer justiça à vítima, nosso código penal é uma piada. Se um policial não se sente seguro porque seus chefes estão a proteger os criminosos, o que dizer de nós que nem uma arma é permitido empunharmos?
          Eu estava para apôr aspas em todo o trecho acima, de seu início ao fim do parágrafo anterior, e explico: – vão-se lá meses que o escrevi, precisamente à época dos fatos narrados. Passou o tempo e até hoje não se sabe da verdade sobre tudo isso. De fato, fará, amanhã, 1 ano da fatídica e vergonhosa matéria. O que houve de lá para cá que possa nos aplacar a angústia? O que se fez daquele momento para hoje em termos de combate ao crime neste país e nesta terrível cidade? Seja quanto ao crime organizado ou ao desorganizado mesmo, o que nos importa?
          Dizem os tratados que o ser humano normal nasce e cresce com um inato sentimento de princípios morais, uma espécie de vontade do bem. Mesmo que venha ao mundo em condições precárias, há no ser humano normal a semente do bem e a vontade de fazer o bem. Dizem também os mesmos tratados que aqueles que foram submetidos a maus tratos e que acabam por sofrer danos ao cérebro podem desenvolver defeitos do caráter de gravidade variável que podem resultar em comportamentos antissociais mais ou menos intensos. Outros já nascem desprovidos de tais dotes devido a defeitos genéticos e passam a apresentar desde a mais tenra infância sinais de comportamento antissocial, com ausência de alteridade, de afetividade e de compaixão em graus variáveis.
          O que quer que se possa aventar como causa, e sem já lançar sobre tais indivíduos a pecha da culpa, o efeito do comportamento dessas pessoas é sabidamente devastador. O crime é sua sina, a cadeia o seu destino. Isso nas nações onde o problema foi encarado de frente. Culpa é um termo jurídico que vem depois de um inquérito e um julgamento.
          Ora, cresce o conhecimento sobre esses indivíduos. Ao início os chamaram de psicopatas ou sociopatas. Hoje há outros nomes para designá-los, mas suas características não mudaram. O psicólogo polonês Andrew Lobaczewski deles tratou quando descreve como se organizam para tomar o poder de uma nação. Suponho que, da mesma forma, também se utilizam das mesmas "técnicas" para fundar e gerir organizações criminosas, ou mesmo para se manterem livres individualmente o tempo que puderem na  sociedade dos homens normais, praticando seus golpes ou cometendo crimes mais brutais.
          Infelizmente, para essas pessoas não há um tratamento que reverta seus graves distúrbios mentais, restando como única alternativa seu isolamento da sociedade. Enquanto cresce o conhecimento sobre tudo isso, patinamos em discussões inúteis e improdutivas sobre como lidar com o crime. Queremos inventar a roda. Queremos debater enquanto milhares sucumbem. Queremos...queremos não sabemos o quê.
          Será que ali, nas cúpulas do poder, não haverá uma súcia de tipos como estes? encastelada a gerir e a fazer leis? a suscitar seus paramoralismos que servem a confundir os desavisados? Eis que em 1 ano se fez um silêncio quase completo sobre a matéria acima. Acomodaram-se os agentes dessa trama? Acordaram-se entre si de fato? O que não me sai da cabeça são as palavras do Capitão Nascimento: –"O 'sistema' é foda... Ainda vai morrer muita gente inocente". O país inteiro viu a ficção que imitou a vida real e ninguém fez nada. 

QUEM NÃO É FEIO BONITO TAMBÉM NÃO É

EIS que encontro ali, nos corredores do Hospital Geral de Fortaleza, o meu querido amigo Chico Cartier. 
                Um momento. Percebo a tempo que não convém chamar o amigo pelo apelido, ainda que esse apelido em nada o comprometa, em nada o desqualifique, em nada o diminua. Pelo contrário. Ele foi assim apelidado porque se envaideceu deveras depois da compra de um relógio de pulso da marca famosa – passava o tempo a levantar o braço para ver as horas. 
                Vá lá. Chico Cartier é corredor assíduo na Beira-Mar. É daqueles cuja atividade física tornou-se sua mais benigna obsessão. Assim, ao vê-lo fui logo querendo saber: –“E o Cooper?” Ele, sorrindo, respondeu: –“Sempre. Tenho medo de morrer...” Ou seja, o homem corre porque teme a morte. Presume que a atividade física extenuante lhe traga a longevidade pretendida. 
                O leitor, que é essencialmente um órfão de fisionomias e sempre deseja, mesmo que esteja a ler o autor descritivo, deseja ardentemente que fosse possível uma fotografia do personagem, imagina-lo-á da forma mais vaga possível. Por isso a descrição, ainda que detalhada e minuciosamente esmiuçada, nunca se equiparará à imagem. Diz lá a ciência da neurolinguística que a maioria de nós é visual. Convenhamos – o leitor há de ser perdoado. 
                Assim, digamos que o meu amigo Chico Cartier guarda uma semelhança brutal com o Keith Richards. Sim, é uma semelhança que impressiona, com uma diferença – o Keith Richards é feio, ao passo que o Chico não é. Não me queiram que saia a explicar esse aparente paradoxo. Direi apenas que a distância entre a beleza e a fealdade há de ser um minúsculo e quase imperceptível detalhe que, atuando no conjunto, tudo muda. Vejam que não estou a afirmar que é bonito o Chico. Se a distância entre esses dois extremos é mínima, que dirá entre um deles e um estado intermediário. Em suma, o guitarrista é feio, ao passo que o Chico não é. E estamos conversados.
                Devo dizer que não é desde sempre essa semelhança. Ela como que foi se acentuando com o passar dos anos. Chego a pensar que tenha sido, em parte, a acentuação das linhas de expressão do amigo, ou o fato de ele ter deixado a cabeleira pouco densa crescer. O fato incontestável é a tal semelhança. Outro fato incontestável é a feiura do Keith Richards. Fiquemos assim para não complicar conceitos e definições. 
                Mas... e o medo do amigo? Ora, antes de mais nada digamos que o medo de morrer é perfeitamente normal. O vivente quer permanecer, como se já viesse à existência carregando consigo uma vontade inelutável, um desejo congênito de eternidade. Seria isso uma programação do Criador? essa vontade de vida eterna? Schopenhauer atribuiu ao instinto, como a fome. Quiçá... Não vê talvez o meu amigo que há estudos recentes que demonstram que há atividades físicas que, se praticadas em sua idade, resultam em efeito oposto, isto é, envelhecimento acelerado e morte precoce. O diabo é que a verdade científica de hoje é a mentira loquaz de amanhã. 
               E assim me despedi do Chico, pensando cá com meus botões se ele já não parece mais velho por conta de suas desidratantes e intermináveis carreiras, ou se tudo isso não seria a evolução do inexorável levada às nossas superficiais e tolas análises ante ao colossal conhecimento que nos falta. 
               E o suicida? O que dizer do suicida? Bem... Já afirmei certa vez: – o pior suicida é o que não morre. Os bem sucedidos são outros quinhentos.

sábado, 14 de janeiro de 2017

NEM O PESSOA, NEM O BORGES

“Navegar é preciso; viver não é preciso” (Pompeu, general romano, séc. I A.C.)

Tempos atrás contei aqui como Lucídia, a mulher, amou não o homem, mas o que ele era e, mais do que o que ele era, amou o homem que viria a ser (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2014/04/geracao-y.html). Sim, claro ficou depois que ela não amava o homem Edísio, mas a pose que ele seria ao se tornar um neurocirurgião. Amava um status, uma posição, uma função nobre a ser exercida pelo marido. No momento em que ele desistiu, morreu o amor de Lucídia. Para ela, Edísio não existia, simplesmente não existia.   Ela havia construído em sua mente todo um cenário, toda uma realidade congelada e engessada. Frustrada a certeza da não materialização dessa realidade, o homem passou a ser, para ela, um estorvo, um obstáculo, um peso a ser descartado. E assim foi.
Ah... como sofrem os que tentam engessar a vida! os que pensam a realidade como o resultado futuro de suas equações milimetricamente montadas, esquecendo-se de que a vida não segue uma trajetória linear e perfeitamente previsível...! Pensam e calculam a vida como uma equação matemática de variáveis simples e limitadas, sem levar em conta a imponderabilidade de tudo e suas contingências. Como sobreviver emocionalmente diante desse fato absolutamente incompreensível chamado vida? Tentar compreendê-lo é, por si só, um exercício inútil e fadado ao fracasso.  Que se faz da vida?, há de perguntar o leitor. A vida simplesmente vive-se sabendo-se que o viver é uma infinitude de incertezas e indefinições constantes, peremptórias e inexoráveis. Esperar o máximo do resultado aleatório de nossas equações é no mínimo estúpido, além de pouco sábio.
Fui impelido a essas reflexões por presenciar amiúde tal pretensão de alguns. Sim, há cada vez mais gente tentando calcular a vida a partir de racionalizações incompatíveis com o fenômeno da vida. O fenômeno vida não é uma viagem a Marte onde tudo pode ser submetido a cálculos matemáticos complicados, apesar da distância enorme, das ameaças constantes e de uma série ilimitada de imprevistos que acabam ficando de fora de uma lista interminável de previstos. É quase certo e bastante possível que, apesar de tudo isso, chegue-se lá e se desça à superfície do planeta no local e hora inicialmente estipulados. O mesmo, repito, não se pode dizer da vida.
Essas pessoas amiúde perdem chances, instantes, janelas de felicidade. Sim, porque segundo o Jorge Luís Borges em seu poema que, de fato, não é seu e, sim, da norte-americana Nadine Stair, “se eu pudesse voltar a viver trataria somente de ter bons momentos; porque se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos”. O custo de oportunidade daqueles que se pautam numa falsa matemática do viver é elevadíssimo. Inclui a subtração das contingências mais sublimes, dos fulgores mais brilhantes, das boas mais arraigadas e duradouras emoções da vida.
Sim, as emoções duradouras... Alguém dirá ser isso uma contradição, as emoções duradouras. Como sentir emoções duradouras em ambiente de persistentes e inarredáveis surpresas, muitas delas indesejáveis e também recalcitrantes? Resposta: apenas sentindo, deixando-se sentir; mantendo-as vivas e, diria até, fazendo delas uma obsessão pessoal. O que pretende calcular a vida quer rejeitá-las, reprimi-las e sufocá-las, o que acaba por tornar essas pessoas ocas como uma bola de algodão. Tentar compreender o incompreensível é inútil, convém repetir. Além de frustrante.
           Não sei como está Lucídia. Não sei se vive feliz com seu novo modelo de amor. Posso apenas especular que há de ter saído em busca de outro alguém que coubesse em sua fôrma. É muito possível que tenha encontrado. Sempre há quem se candidate a ser modelo para alguém. Estará feliz? Quem sabe... a felicidade é algo fugidio. Talvez para essas pessoas o sentimento de felicidade seja apenas esse. Por dentro, seu universo emocional há de ser muito semelhante ao de qualquer um. Afinal, somos todos susceptíveis às inseguranças do viver, ainda que rejeitemos muito do que faz sofrer.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

TINHA QUE SER UM MÚSICO...

Há coisas que se vê todo dia e a elas não se dá a devida importância. E mais que importância, muitas delas estão ali a servir de ensinamento, de lição, como se a vida abrisse seu livro e nos convidasse a lê-lo gratuitamente sem pagarmos a ela o elevadíssimo preço da experiência. Por exemplo, o meu querido amigo Péricles Campelo, líder da banda Locomotiva. 
          Há alguns anos, com o firme propósito de criar um blog onde deitasse minhas entrevistas com as virtuoses das cordas desta cidade, recebi-o em minha casa para um bate-papo. Conversamos durante cerca de duas horas, pouco mais, pouco menos. Eis que, lá pelas tantas, o Péricles me sai com a seguinte pérola: "Felicidade, pra mim, é você acordar todo dia e pensar 'Pôxa, hoje eu vou fazer o que eu gosto'"! No dia seguinte escrevi um texto onde expus toda a minha inveja – inveja branca, diga-se – do amigo (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2012/02/sobre-pocilgas-e-aviltamento-pessoal.html). 
          Vejam, pois, que já lá se vão mais de quatro anos deste encontro e só agora me ocorre a completude da frase do Péricles. E mais do que a inteireza dela, o que ela realmente significa do ponto de vista prático vai além, muito além de uma simples quimera. Explico.
          O Péricles é músico, toca violão, guitarra e baixo. E como está o Péricles sempre que o vejo, sempre que o encontro? Está com um sorriso que vai de orelha a orelha. E outras estrelas desta terra, que fazem o mesmo que ele, estão sempre com um sorriso que vai de orelha a orelha: o Mimi Rocha, o Rafael Andrade, o Lú de Souza... Vejam, por exemplo, e pra não dizerem por aí que esqueço o pessoal da velha guarda, o Nonato Luís. Já viram alguma virtuose das cordas mais simpático e sorridente do que ele? Duvido! Há um que quer empatar com o Nonato em sua simpatia contagiante: o meu querido amigo e professor Wanderley Freitas. Há, claro, alguns mais comedidos, como o Fabinho da banda Moby Dick, o Tarcísio Sardinha e o Moacir Bedê. Mesmo em seu comedimento, quase uma timidez por causa de sua virtuose humilhante, exalam sobre nós sua empatia que, quero crer, deve-se ao fato de acordarem dia sim e outro também para fazer o que gostam: – música, a arte que amam.
          Assim, só agora a frase do Péricles aliada à lembrança do sorriso desses caras me fez compreender o real significado da mensagem que ele me passou. Relendo meu texto, diria que o que lá eu disse, no que se refere à minha "inveja", deve ser superlativado e elevado à décima potência. A virtuose artística há de elevar o artista a prazeres indizíveis e inexprimíveis a reles mortais. Nós, os reles mortais, também amamos a música. (O sujeito que não a ama há de sofrer de grave distúrbio da personalidade e da afetividade.) Enleados, experimentamos o que esse pessoal produz de mais sublime, e com que amor! e com que alegria! e com que felicidade! Eles são assim, sorridentes, porque gastam seu tempo a emocionar, a encantar... de modo que a música é capaz, tem esse poder de unir e de trazer paz. (Lembra-me o dia em que meu já falecido amigo Marcos Sampaio me contou, ele que era estudioso das coisas de Deus, que a música surgiu nos Céus, onde habita o Altíssimo e Seu séquito.)
          Dirá alguém que o que faço há de ser, também, pela nobreza do ato, algo digno de causar as sensações mais inefáveis e indescritíveis em qualquer ser humano que o faça e direi que, sim, é verdade. Ocorre, porém, que a medicina, como arte, tem sido vilipendiada a tal ponto que o conceito que se tem tido de seus praticantes é o pior possível. E não é pra menos. Senão vejamos.
          Outro dia o Dr. Frank Veith, professor de cirurgia da Universidade de Nova York e da Cleveland Clinic, em comentário sobre o futuro da Cirurgia Vascular no Medscape, enfatizou os desafios negativos ou obstáculos que o médico norte-americano tem encontrado na prática diária (http://www.medscape.com/viewarticle/867710): "Um desses desafios é um sistema de saúde imperfeito onde sofremos todo tipo de regulação e proibições e onde o cuidado de nossos pacientes está mais nas mãos dos administradores hospitalares e companhias de seguro de saúde do que nas mãos dos médicos." Não fosse apenas isso, ressaltou um problema mais sério ainda – uma crise ética sem precedentes, todos os envolvidos mais preocupados com seus dólares que com os doentes, incluídos aí médicos sem escrúpulos que "fazem procedimentos desnecessários ou atuam em campos fora de sua especialidade" apenas para lucrar, submetendo pacientes a riscos e tratamentos invasivos e caros que não estão indicados. Tudo isso nos Estados Unidos da América, onde a lei é rígida e a medicina é de ponta. É lícito pensar o cenário ser pior onde o caos viceja e pulsa? Sabe-se lá... 
          Dirá alguém que tudo está à mercê da corrupção e que tudo é passivo de se corromper. Pura verdade. Tudo isso causa em nós que buscamos uma prática humilde, exercida dentro dos mais elevados princípios científicos e humanísticos, uma tristeza enorme. Ainda que individualmente cada um de nós possa se julgar recompensado em cenário particular por se conduzir dentro da correção e do amor ao ser humano que sofre, como classe o impacto de tais evidências é desolador. O crime é ainda maior quando cometido por quem se espera o mais elevado grau de lisura e comprometimento. 
          Pois foi justamente Tom, o Jobim, quem resumiu tudinho num único verso cantado e decantado mundo afora:
"Os olhos já não podem ver
Coisas que só o coração pode entender
Fundamental é mesmo amor
É impossível ser feliz sozinho".
         Tinha que ser um músico...

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

HAMBÚRGUER E CACHORRO-QUENTE

"Que coisa adolescente, James Dean"... (Belchior)

Eis que não houve, na última quinta, o clube do Bolinha. A quem não se lembra, relembro que o clube é um espaço reservado exclusivamente para meninos. Disse espaço e corrijo – é um momento reservado exclusivamente aos meninos. (Quem quiser mais detalhes que pergunte às Luluzinhas.)
                Pois os meninos avisaram com antecedência: não poderiam comparecer. (Os “meninos” são os cinquentões.) Foi nesse cenário que o amado Fábio Motta me incitou a acompanhá-lo ali, em certo barzinho, em duas ou três cervejas. Aceitei incontinenti. Não podia me dar ao luxo de perder a oportunidade de estar com tão fugidio amigo.
                Era uma hamburgueria, um lugar intensamente frequentado por adolescentes. E assim me vi, sem maiores considerações, num bar adolescente a convite do Meninotti, digo, do Fábio Motta.
                Vejam que abundam em nosso anedotário particular as muitas histórias do Meninotti Motta, as últimas dando conta de sua regressão comportamental. Perguntará alguém estupefato: – como assim, regressão comportamental? Explico.
                Não se sabe exatamente há quanto tempo o nosso Fábio de Oliveira Motta acordou certo dia e decidiu: – “quero ser menino outra vez”. Daquele momento em diante, como numa mágica de Sininho, tudo mudou. Seus ternos mais finos foram arrumados num fundo de baú e suas gravatas foram doadas a um brechó. As poucas cuecas que ainda guardava foram cedidas aos filhos da lavadeira. Em pouco mais de quinze dias o guarda-roupas era outro. Quem o abrisse diria ser o de um garoto de seus dezessete, dezoito anos. Eis renascido outro Fábio Motta, um obsessivo e obcecado Peter Pan.
Óbvio é que outras coisas aconteceram até culminar na constatação da mudança irreversível – o homem agora comia hambúrguer e cachorro-quente. Antes era churrasco de carnes nobres e até panelada, sarrabulho e sarapatel. É bem verdade que toma lá umas cervejas, mas... e daí? Não as tomam também os adolescentes? Mesmo aí há uma alteração radical. Afinal, o nosso Motta, até seu último dia como adulto, apreciava o chamado “álcool duro”, isto é, uísque sem gelo. E se lhe punha uma pedrinha seria apenas para enganar a torcida. Numa noite bebia uma garrafa inteira. Coisa de gente grande, de gente adulta. O adolescente em que se tornou bebe apenas cerveja. E se lhe perguntamos sobre o uísque, responde que está levando uma vida saudável, que dorme cedo e levanta cedo para... surfar. Sim, o Motta voltou a ser surfista, esporte que praticou durante toda a adolescência. Como o fôlego já não é o mesmo de há 40 anos, faz aulas de apneia.
Vejam que não saiam por aí a dizer que faço apologia ao alcoolismo. Não é o caso, acreditem. Meu único propósito é expor as diferenças entre um Fábio Motta e outro Fábio Motta. Um seria o clássico, o outro o moderno ou, mais precisamente, o saudoso. O tipo adolescente permanece intacto desde James Dean.
O que me pergunto até agora é: – que acontecimento precipitara o novo e improvável Fábio Motta? Eu disse que “certo dia” o homem acordou e decidiu. Mas... que dia teria sido esse? O que aconteceu àquele dia ou à véspera? Sininho teria tantos poderes? Seria um amor que se perdeu na frustração da inviabilidade? Seria a descoberta em si mesmo do homem só, e sempre só, invariavelmente só? Seria tudo uma espécie de crise da meia-idade? a insegurança que abate aquele que se vê cara a cara com a velhice e com o apartamento de todos ou quase todos os laços vitais e essenciais? Ou seria apenas mais um chiste de meu amigo a se somar a tantos outros?
Passou-me pela cabeça uma doença, sim, um mal irreversível e inexorável, desses que deformam o indivíduo a ponto de tornar-lhe irreconhecível ou incapaz, e que lhe impusesse o momento único de voltar a ser o que amou ser um dia. Por último considerei a maldita, algo mortal, sentença do inelutável momento... Para felicidade de todos que muito o amam, não parece ser este o caso. Ele exala a saúde humilhante dos de excelentes genes. É espécime dos que vivem cem ou mais anos, tudo culpa do Agapito e de dona Mirtes, seus amorosos e zelosos pais, longevos e vivazes.
Quanto a nós e nossa investigação, tudo tem sido em vão... Ao que tudo indica, seremos obrigados a conviver com o “Meninotti” Motta por sabe-se lá quanto tempo, o tempo que durar sua incursão adolescente. Será dureza ensinar a esse menino tudo outra vez. É tudo o que posso dizer agora. Oportunamente volto com novidades. 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

UM ESQUECIDO BLOG

Há tempos não leio meu próprio blog e confesso – me esqueci completamente que tenho um blog. Os amigos mais chegados dirão que estou a fazer pilhéria, que isso não tem o menor fundamento etc. etc. O fato é que está ele lá. É só conferir. Há quanto tempo não lhe acrescento uma frase, uma vírgula, um ponto de exclamação? Diria até que bem merecia que lhe ocupasse hoje uma página inteira com um enorme ponto de interrogação. Sim, porque há uma questão aqui. E grave, diga-se de passagem. Por que, em nome de todos os santos, esqueci-me de meu blog?
                Haverá alguém a argumentar que tenho republicado antigos textos à rede social, e direi que, sim, é verdade. Entretanto, devo dizer que o fiz com a automaticidade de um robô. É possível que a atitude tenha sido consequência de um tipo de ato falho ou coisa que o valha. Contudo, nada disso apaga o fato incontestável – a última página do blog permanece lá, sem acréscimos, sem atualizações. Aos dias de hoje tal “atitude virtual” há de levantar nefandas suspeitas sobre o destino do autor. Vejam, por exemplo, a rede social. Em cem anos estará repleta de perfis defuntos. O sujeito tem lá a sua página e, súbito, morre. Dali em diante cessa-lhe também a vida virtual. É possível que o mesmo não ocorra se morrer apenas na virtualidade, mas as suspeitas serão inevitáveis, repito. Assim, antes de mais nada, afirmo categoricamente: estou vivinho da silva.
(Há amigos que jamais nasceram para a vida das redes sociais. São nonatos virtuais. Jamais deram as caras em qualquer “sala” virtual. Estão livres das exposições alheias e resguardados de suas próprias. Nem todo mundo quer ver a nudez dos outros; nem todo mundo cede ao ímpeto de propagar-se a si mesmo arrojadamente e inescrupulosamente.)
Percebo agora que não era nada disso o que eu queria falar. Voltemos ao assunto do blog, e volto à pergunta – por que me esqueci dele? Penso, penso, penso... e concluo sem delongas – não faço a menor ideia. Sim, não faço a menor ideia do porquê desta amnésia particular. Não me fez falta sua ausência. Dele não senti saudades. É provável que também ele não tenha se dado conta de meu sumiço. Paciência. Pior que isso – os leitores, o mínimo que pude angariar, não perceberam. Como eu disse, há aqui uma grave questão.
Pior está o Temer com o pepino da “crise penitenciária” brasileira. Ora! Não há crise penitenciária! Há, isso sim, uma gravíssima crise na segurança pública que se arrasta há décadas e ninguém, nenhum governante, teve coragem de a encarar por puro populismo. O Temer, com sua baixíssima popularidade, tem todas as credenciais para dar o pontapé inicial. É mais ou menos óbvio que sua atuação tem limites aqui. Com um Código Penal imprestável e um sistema judiciário mais imprestável ainda, não há muito o que Temer possa fazer, mesmo do alto de sua elevadíssima impopularidade, de quase 90%.
Bem se vê como o destino nos ensina as lições mais inesperadas da vida. Aprendemos recentemente que a pior qualidade que um político pode ter é a alta popularidade. Quem diria...! Quanto mais elevada a popularidade de um governante, menos ele fará, menos será capaz de fazer. Ao sujeito muito popular falta a coragem de fazer o que deve ser feito, donde se conclui que governar é um exercício de fomentar o ódio presente a fim de, talvez, quem sabe, colher o amor futuro. Ou pelo menos o respeito futuro. Acima de tudo, temos aprendido que governar exige responsabilidade, equilíbrio e senso de alteridade. O povo, as massas, os ajuntamentos são ignorantes, irresponsáveis e cruéis. Demanda do governante a que satisfaça seus instintos mais primitivos e a que tome as decisões mais inconsequentes e insensatas, o que reforça a necessidade imperiosa da impopularidade governamental. Não nos esqueçamos: as massas se esgoelavam e gritavam exalando ódio e babando pelo canto da boca – “Crucifica-o! Crucifica-o!”
          Minha grave questão, repito, é o blog. Eu disse que tenho um blog esquecido. Na verdade, tenho três. O mais recentemente esquecido torna-se agora objeto dessas reflexões, uma vez que nele concentro minhas impudicas e reprováveis reflexões, ou onde deposito umas poucas histórias do dia-a-dia. Os outros? Quem porventura der com eles à busca de um assunto qualquer, há de imaginar que o autor já é morto e que seus ossos há muito jazem secos numa campa quente e úmida... 

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