O amigo Gaudêncio me escreveu para dizer que seu prazer ao ler meus
textos era o de quem bebe um bom vinho. Digamos... um Chianti de três mil
reais. (Olha que o real tá valendo uma merreca...) Fez, entretanto, uma
ressalva para o que escrevi mais recentemente em https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2020/05/nada-mais-nada-menos.html. O momento, para ele,
é de impaciência. Segundo ele mesmo, está “impaciente com ‘palavrórios’”. Por
isso o referido texto lhe suscitou o sabor de uma... Sukita. Aos
que não sabem, a Sukita foi um refrigerante muito apreciado
não me lembra exatamente em que tempo, até os dias de hoje, creio... De
qualquer forma, a Sukita é doce, dulcíssima, do tipo que acalma o que anseia
por um prazer que sossegue os nervos, como parece ser o caso de meu amado
amigo. O que esqueci de indagar ao amigo foi o porquê dessa impaciência. Terá
sido a prolongada permanência em domicílio? Parece-lhe o futuro deveras
obscuro com a história da pandemia? Não importa. O fato é que o homem está lá,
impaciente a não mais poder. Mas há pior e, repito, há pior nessa história –
acusou-me de ser o culpado por sua parageusia, como se fosse eu o culpado de
sua aversão ao “palavrório”... A quem culpar se o sabor de um bom vinho se
deixa ultrapassar pelo sabor de uma reles Sukita? Ora, bolas... De volta, a
título de vendetta, lhe diagnostiquei
uma coronavirose chinesa implacável! Ora, bolas...
Como sujeito curioso que sou, saí a me indagar e a querer saber – que diachos
seria um palavrório? Uma oportunidade de ampliar o vocabulário da
língua madre jamais deve ser perdida. Assim, fui aqui no pater
asini pesquisar e eis que encontro o seguinte sobre palavrório:
conversa para enganar ou convencer; lábia; discurso inútil ou aborrecido;
palavreado... Ao me deparar com tais sinônimos, tomei-me assaltado por
divertido horror. E por quê?
Sei lá... eu estava para justificar, ou explicar o que já está explicado lá no
texto. Mas, desisti. Sim, desisti. Dirá o resto da gente algo mais sobre
o palavrório. Afinal, já externei inúmeras vezes a impressão de que
quem escreve põe a cara a tapa.
A vida, a aventura da vida só vale a pena quando se arrisca a própria
pele. O planeta está cheio de pessoas que tomam decisões cujas consequências
maiores não recairão sobre elas. Em outras palavras, pessoas que tomam decisões
cujas consequências funestas recairão sobre terceiros, sobre populações
inteiras, às vezes, muitas vezes, milhões de pessoas. Aproveitam-se da
vulnerabilidade das massas, de sua comodidade, de sua opção pela
irresponsabilidade. A responsabilidade, ou seja, a capacidade e opção por responder
à altura às demandas mais urgentes e importantes da vida em sociedade
implica num massacrante, brutal, corajoso e irremediável comprometimento com
nossos maiores e mais essenciais princípios e, doloroso dizer, poucos estão
dispostos a tal missão. Ou, ainda, muitos não dão a mínima para essa história de
princípios.
Só agora percebo que estou a devanear, a misturar alhos com bugalhos e o
amado Gaudêncio há de achar que estou me agastando com ele, o que não é o caso.
Concluí que a Sukita do amigo há de ser o Chianti de outrem. Se a impaciência
chegou para alguém, a lição estará na contracapa do livro da vida.
O que é que eu queria mesmo dizer? Ah! Lembrei! Ou, por outra, o que lembrei
com a história da impaciência do amigo foi a conversa que tive com um outro
querido amigo, empresário de sucesso, conhecedor da e ativo na estirpe
empresarial deste famigerado Estado do Ceará. O amigo circula entre gente de
peso, gente que emprega milhares de pessoas, gente a quem não faltam recursos.
Eu, na conversa, queria saber – por que essa gente, esses poderosos que têm
recursos, se abstêm de seu poder quando estão aptos a montar uma equipe de
peso, de qualidade? pesquisadores da área de saúde, epidemiologistas e
infectologistas que façam uma análise séria do que está a ocorrer propondo, com
responsabilidade, alternativas para o enfrentamento da pandemia sem prejuízos
de vidas, mas que, simultaneamente preserve o viço social e as relações de
trabalho? cujos dados possam ser contrapostos ao governo do estado, portador de
infindáveis conflitos de interesses, e demonstrar que estão ativos e
vigilantes? Por que, meu amigo, – lhe indaguei – essa gente, com base nos
pareceres abalizados desses cientistas, não disponibiliza um sistema de
informações independente, um jornal, uma revista, livres de conflitos de
interesse, diferente da famigerada imprensa cujos interesses são sobejamente
conhecidos, com total dependência dos anúncios do governo, e divulga de forma
lícita, independente, correta, ética, como diria alguém, informações para a
sociedade que contradigam o que está a dizer a autoridade repleta dos referidos
conflitos de interesse ? Enfim, por que esta elite não se descola do governo?
Por que se alinham com a desgraça pública? Por quê? Por quê? Por quê?, eis o
que me pergunto obstinadamente.
O amigo, acabrunhado com minha insistência, respondeu, com a vergonha estampada
na voz – "porque não querem contrariar o senhor
governador...”
Nada poderia descrever meu horror diante de tão contundente resposta. Nas
palavras da elite empresarial do Estado estava tudo explicado. E não
querem contrariá-lo porque, em suas mentes, o poder vem de cima e não de
baixo... porque o poder não vem deles, mas da autoridade lá colocada por um
sistema “democrático” em que o povo vota. Eles, que não se consideram parte do
povo, não querem se indispor... vai que precisam de algo no futuro, algo que só
a autoridade máxima resolve...
Ora, se o empresariado,
reunido em instituições que defendem seus interesses, tem em sua mente que o
governo vem de cima e não de baixo, que dirá o periférico habitante desta
miserável cidade, desse miserável estado. Se este empresariado se presta a
reprimir no próprio seio de suas associações seu potencial de voz e de atuação
social, que dirá o pobre e periférico "cidadão" desta combalida
cidade, deste combalido estado. Com esta atitude e, pior, com este pensamento
decretam a absoluta subserviência da sociedade ao que faz o poder que já nem
digo "público" e muito menos "privado", mas ao poder
absoluto do governador, falsamente referendado por um legislativo já
conhecidamente subserviente em tempos "normais".
Concluí com imenso pesar que não há saída para nós, cidadãos
supostamente "pensantes". Se as ruas se tornaram inacessíveis para
estes cidadãos diante das intermináveis canetadas do senhor governador
travestidas de boas intenções para com a saúde pública, não há nem mesmo
esperança nas redes sociais. Sim, porque tudo que corre na rede são intenções e
informações. A vida pública sempre se resolveu e sempre se resolverá nas ruas e
avenidas ora vazias. Os soldados declararam seu temor à morte e à guerra.
Negam- se a ir ao campo de batalha. E um soldado que teme a morte não é um
soldado — é um covarde.