quarta-feira, 20 de maio de 2020

SOBRE O SOLDADO QUE TEME A MORTE

O amigo Gaudêncio me escreveu para dizer que seu prazer ao ler meus textos era o de quem bebe um bom vinho. Digamos... um Chianti de três mil reais. (Olha que o real tá valendo uma merreca...) Fez, entretanto, uma ressalva para o que escrevi mais recentemente em  https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2020/05/nada-mais-nada-menos.html. O momento, para ele, é de impaciência. Segundo ele mesmo, está “impaciente com ‘palavrórios’”. Por isso o referido texto lhe suscitou o sabor de uma... Sukita. Aos que não sabem, a Sukita foi um refrigerante muito apreciado não me lembra exatamente em que tempo, até os dias de hoje, creio... De qualquer forma, a Sukita é doce, dulcíssima, do tipo que acalma o que anseia por um prazer que sossegue os nervos, como parece ser o caso de meu amado amigo. O que esqueci de indagar ao amigo foi o porquê dessa impaciência. Terá sido a prolongada permanência em domicílio?  Parece-lhe o futuro deveras obscuro com a história da pandemia? Não importa. O fato é que o homem está lá, impaciente a não mais poder. Mas há pior e, repito, há pior nessa história – acusou-me de ser o culpado por sua parageusia, como se fosse eu o culpado de sua aversão ao “palavrório”... A quem culpar se o sabor de um bom vinho se deixa ultrapassar pelo sabor de uma reles Sukita? Ora, bolas... De volta, a título de vendetta, lhe diagnostiquei uma coronavirose chinesa implacável! Ora, bolas...
                Como sujeito curioso que sou, saí a me indagar e a querer saber – que diachos seria um palavrório? Uma oportunidade de ampliar o vocabulário da língua madre jamais deve ser perdida. Assim, fui aqui no pater asini pesquisar e eis que encontro o seguinte sobre palavrório: conversa para enganar ou convencer; lábia; discurso inútil ou aborrecido; palavreado... Ao me deparar com tais sinônimos, tomei-me assaltado por divertido horror. E por quê?
                Sei lá... eu estava para justificar, ou explicar o que já está explicado lá no texto. Mas, desisti. Sim, desisti. Dirá o resto da gente algo mais sobre o palavrório. Afinal, já externei inúmeras vezes a impressão de que quem escreve põe a cara a tapa.
A vida, a aventura da vida só vale a pena quando se arrisca a própria pele. O planeta está cheio de pessoas que tomam decisões cujas consequências maiores não recairão sobre elas. Em outras palavras, pessoas que tomam decisões cujas consequências funestas recairão sobre terceiros, sobre populações inteiras, às vezes, muitas vezes, milhões de pessoas. Aproveitam-se da vulnerabilidade das massas, de sua comodidade, de sua opção pela irresponsabilidade. A responsabilidade, ou seja, a capacidade e opção por responder à altura às demandas mais urgentes e importantes da vida em sociedade implica num massacrante, brutal, corajoso e irremediável comprometimento com nossos maiores e mais essenciais princípios e, doloroso dizer, poucos estão dispostos a tal missão. Ou, ainda, muitos não dão a mínima para essa história de princípios.
                 Só agora percebo que estou a devanear, a misturar alhos com bugalhos e o amado Gaudêncio há de achar que estou me agastando com ele, o que não é o caso. Concluí que a Sukita do amigo há de ser o Chianti de outrem. Se a impaciência chegou para alguém, a lição estará na contracapa do livro da vida.
                O que é que eu queria mesmo dizer? Ah! Lembrei! Ou, por outra, o que lembrei com a história da impaciência do amigo foi a conversa que tive com um outro querido amigo, empresário de sucesso, conhecedor da e ativo na estirpe empresarial deste famigerado Estado do Ceará. O amigo circula entre gente de peso, gente que emprega milhares de pessoas, gente a quem não faltam recursos. Eu, na conversa, queria saber – por que essa gente, esses poderosos que têm recursos, se abstêm de seu poder quando estão aptos a montar uma equipe de peso, de qualidade? pesquisadores da área de saúde, epidemiologistas e infectologistas que façam uma análise séria do que está a ocorrer propondo, com responsabilidade, alternativas para o enfrentamento da pandemia sem prejuízos de vidas, mas que, simultaneamente preserve o viço social e as relações de trabalho? cujos dados possam ser contrapostos ao governo do estado, portador de infindáveis conflitos de interesses, e demonstrar que estão ativos e vigilantes? Por que, meu amigo, – lhe indaguei – essa gente, com base nos pareceres abalizados desses cientistas, não disponibiliza um sistema de informações independente, um jornal, uma revista, livres de conflitos de interesse, diferente da famigerada imprensa cujos interesses são sobejamente conhecidos, com total dependência dos anúncios do governo, e divulga de forma lícita, independente, correta, ética, como diria alguém, informações para a sociedade que contradigam o que está a dizer a autoridade repleta dos referidos conflitos de interesse ? Enfim, por que esta elite não se descola do governo? Por que se alinham com a desgraça pública? Por quê? Por quê? Por quê?, eis o que me pergunto obstinadamente.
                O amigo, acabrunhado com minha insistência, respondeu, com a vergonha estampada na voz – "porque não querem contrariar o senhor governador...”
                Nada poderia descrever meu horror diante de tão contundente resposta. Nas palavras da elite empresarial do Estado estava tudo explicado.  E não querem contrariá-lo porque, em suas mentes, o poder vem de cima e não de baixo... porque o poder não vem deles, mas da autoridade lá colocada por um sistema “democrático” em que o povo vota. Eles, que não se consideram parte do povo, não querem se indispor... vai que precisam de algo no futuro, algo que só a autoridade máxima resolve... 
                Ora, se o empresariado, reunido em instituições que defendem seus interesses, tem em sua mente que o governo vem de cima e não de baixo, que dirá o periférico habitante desta miserável cidade, desse miserável estado. Se este empresariado se presta a reprimir no próprio seio de suas associações seu potencial de voz e de atuação social, que dirá o pobre e periférico "cidadão" desta combalida cidade, deste combalido estado. Com esta atitude e, pior, com este pensamento decretam a absoluta subserviência da sociedade ao que faz o poder que já nem digo "público" e muito menos "privado", mas ao poder absoluto do governador, falsamente referendado por um legislativo já conhecidamente subserviente em tempos "normais".
Concluí com imenso pesar que não há saída para nós, cidadãos supostamente "pensantes". Se as ruas se tornaram inacessíveis para estes cidadãos diante das intermináveis canetadas do senhor governador travestidas de boas intenções para com a saúde pública, não há nem mesmo esperança nas redes sociais. Sim, porque tudo que corre na rede são intenções e informações. A vida pública sempre se resolveu e sempre se resolverá nas ruas e avenidas ora vazias. Os soldados declararam seu temor à morte e à guerra. Negam- se a ir ao campo de batalha. E um soldado que teme a morte não é um soldado — é um covarde.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

NADA MAIS, NADA MENOS

Outro dia escrevi sobre muros e crianças. Sobre muros que não detinham crianças (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2015/10/criancas.html). Foi sobre o tempo em que éramos tão livres que queríamos invadir os espaços fechados. Pura curiosidade. Pura vida de criança. Aos dias de hoje parece ocorrer o oposto. Ou, melhor dizendo, não ocorre o oposto. Seria o oposto se as crianças de hoje, trancadas em espaços fechados, ousassem romper o que as impede e ganhassem as ruas de pedra, os terrenos baldios, os quintais... Mas, não... Não há mais ruas de pedra, nem terrenos baldios, nem quintais... Só há o medo.
Ainda assim, e por tudo isso, talvez, as crianças chegavam a ser cruéis. Por exemplo, o que podia ser capturado como estereótipo em qualquer um de nós se resumia num ”carinhoso” apelido. Bem... muitas vezes, quase todas, não eram os estereótipos, mas algum traço físico relevante ou extraordinário o que estimulava os coleguinhas a nos apelidar. Afinal de contas, crianças não tiveram tempo para se deixar estereotipar. Ainda. Crianças são vítimas dos caprichos da natureza e da malícia de outras crianças. Sim, isso mesmo. Uma parte elas não é vítima de coisa nenhuma – em tenra idade já demonstram uma malícia que deveria ser preocupante... para a sociedade.
(Estou aqui a ponderar... Falo, não falo; falo, não falo... Decidi: – vou falar. A única coisa que se leva à campa é a tralha do que vai virar pó.)
Certa feita um coleguinha me pôs um apelido muito carinhoso. Alcunhou-me de Cadáver.  Vejam que coisa pavorosa – Cadáver! Muito magrinho e pálido, ele, já na idade da malícia de alguns, via em mim todas as características de um corpo sem vida. Cadáver. (Escrevo com maiúscula porque apelidos são escritos com letra maiúscula. Vejam aquele garoto cuja cabeleira tem cinco fios, amigo da Mônica, personagem do Maurício de Sousa, o Cebolinha. Se escrevo com minúscula corro o risco de alguém pensar que me refiro à planta.) Nas conversas era Cadáver fez isso, Cadáver fez aquilo; Cadáver joga de centroavante, Cadáver fez um gol; e por aí vai...
Tanto não havia estereótipos que mudavam os apelidos caso mudassem os traços físicos. Depois de colocar um aparelho ortodôntico, a coisa mudou – era Boca-Rica; ou Sorriso Metálico. Antes do aparelho, como os dentes se projetassem muito à frente, outro apelido – Elefante. Este último “pegou” menos, já que era enorme o contraste entre meu mirrado físico e o porte do animal. Moreno, um coleguinha que àquela época já parecia mais crescido em malícia que as demais crianças – vejam que Moreno já é um apelido – me veio com a pecha de Gambá. Tudo porque, certo dia, as coleguinhas do bairro colaram-me à testa um pequeno adesivo para “referendar” meu pertencimento aos amiguinhos do bairro e, voltando eu ao colégio marista com outro adesivo semelhante ao dia seguinte, concluiu que eu não havia me banhado. Assim, para ele, eu seria semelhante a um gambá, o bichinho que exala forte odor quando se vê ameaçado e não porque seja imundo. Paciência. As crianças às vezes são cruéis em sua ignorância muitas vezes travestida de inteligência.
Mas, por que é mesmo que estou contando tudo isso? Ah! Lembrei. Foi o seguinte.
Escreveu-me o Sérgio Moura – ou foi o Bacana? – não lembro... para dizer que nossa geração havia fracassado. Ora, imediatamente me lembrei do que o Nelson disse certa vez:
“Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo – a nossa”, disse ele.
Diz o sábio que “o que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol”. Será que nosso suposto fracasso significava que essa geração havia feito – ou não feito – algo diferente do que outras fizeram antes e isso teria determinado nosso fracasso? Bem, não parece ser isso, já que diz mais o sábio e estou humildemente inclinado a lhe dar razão:
“Haverá algo de que se possa dizer: ‘Veja! Isto é novo!’? Não! já existiu há muito tempo, bem antes da nossa época”.
Assim, se não se faz nada de novo, se não há nada de novo, se tudo que já foi feito está fadado a se repetir sem nenhuma “inovação” – a tecnologia não muda a essência – então nada de novo fizemos ou deixamos de fazer, o que invalida a hipótese de que fracassamos. E o que fizemos, digo, o que faz repetidamente o bicho-homem? Ora, assassinar, roubar, injuriar, caluniar, humilhar, onerar, adoecer o semelhante – sim! adoecemos os outros! –, litigar, enganar, mentir, trair, apunhalar... e por aí vai. O que deveria ter dito ao Serjão ou ao Bacana, não me lembra bem, é que não, nossa geração não fracassou. Não há nenhum fracasso. O que há o ser humano. Por outro lado, fosse vivo o Nelson lhe escreveria para humildemente lhe dizer, lhe lembrar que não há a época “doente mental”, nenhuma época foi “doente mental”. O que há é o ser humano, repito. E só. Doente mental é o ser humano. Nada mais, nada menos.

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...