Muros são estruturas que limitam. Nasci já à época dos muros.
Mesmo nos idos ’60, lá estavam eles a separar. Ainda que os homens desta cidade não se matassem como hoje, nem os abismos entre eles fossem tão profundos e largos como hoje, existiam os muros para nos repelir. Com o tempo eles se multiplicaram, ganharam altura. Ficamos ainda mais desconhecidos, mais temerosos. É o progresso, diziam.
Nós, as crianças, nos divertíamos neles subindo e pulando para a zona proibida. Era um desafio de crianças. Escalar e pular o muro que nos impedia de ser crianças nos excitava ao extremo. Não nos conformávamos com os muros, com os portões, com as grades. Queríamos, em calções e pés descalços, ganhar o mundo, as casas, os terrenos baldios, as piscinas dos vizinhos, a goiabeira do quintal alheio. (Era no tempo dos quintais). Não havia limites para nós, crianças imortais e destemidas.
Correr com todas as forças, a plenos e limpos pulmões, por quanto tempo fosse necessário, nos impelia com coragem às mais perigosas e palpitantes missões. Caso empreender fuga sob a mais nítida ameaça fosse uma necessidade imperiosa, o fazíamos com um sorriso aberto e uma força imensa e não extenuante. Não tínhamos limites. Éramos deuses, cheios de vontade de vida.
Crescemos.
Os muros também cresceram. Cresceu nosso medo. Nossa vontade de vida arrefeceu. Com efeito, não decresceu a vontade de vida; arrefeceu, sim, nossa coragem, nossa energia. A vida, a mesma que nos excitara a vontade de si, passou a nos golpear incessantemente. À medida que crescíamos perdíamos as formas de criança e nosso aspecto se tornou ameaçador para alguém. Descobrimos, então, que o que fazíamos impunemente, porquanto nossa pureza nos fazia inimputáveis, não nos era mais possível fazer. Ainda que guardássemos bem à vista na alma, não se conseguia vislumbrar em nós nossa ludicidade, a criança que ainda existia em nós.
Então, morremos. Tornamo-nos outro alguém. Nem vale a pena enveredar por constatações tão chocantes e tristes. Voltemos às crianças que éramos.
Não; façamos melhor – descrevamos o processo de descrescimento. O descrescimento é um conjunto de decisões que dão o revertério. Não é um fenômeno biológico. É uma trama urdida nas ferventes confusões da alma, após um cansaço enorme, alguma sabedoria e doses cavalares de resignação. Descrescer não é parar de crescer; é uma espécie de purgação, de limpeza. É olhar os muros e não se intimidar com sua altura, com os limites impostos. É voltar a ser uma criança por decisão própria, com as enormes vantagens da inexorável sabedoria. É ser uma criança grande, um crianção.
Se o homem nasce, cresce, se reproduz e morre, só me restava morrer. Sim, é a única coisa que me restava. Não conformado, resolvi descrescer. De quebra havia ainda a possibilidade de meu renascimento. Como não há no Aurélio o verbo descrescer, talvez fosse mais certo usar o verbo recrescer, este, sim, existente.
O que quero dizer é que resolvi recrescer, e para tanto, renasci. Comecei a renascer quando resolvi me desmontar. O desmonte foi uma morte, sem dúvida. Reparem, então, que estão diante de alguém que já morreu.
Foi simples. Certo dia, uma linda manhã de sol, acordei triste, pesado, a cabeça doendo, sem tesão. Olhei pela janela e vi o vai-e-vem da cidade, as pessoas correndo, o trânsito movimentado – ainda não era como hoje – o céu tão azul que parecia um jardim de uma cor só. Pensei: -“Morri.” E ali mesmo, com a janela aberta para o mundo, deixei de existir. O diabo é que, se se morre em vida, não há outra saída que não o renascimento. Só morre em vida quem quer ainda muito viver. E, no mesmo instante, ali mesmo, com a janela escancarada para o jardim de uma cor só, renasci. Foi mesmo muito simples.
Desde então voltei a pular muros. Hoje é bem mais difícil; pode-se ser alvejado com uma bala certeira. Ainda assim pulo uma enormidade deles. Entro e saio do vizinho num piscar de olhos. As casas são poucas aos dias de hoje, de modo que os quintais com goiabeiras, sirigüelas e limoeiros são uma coisa rara; mas ainda os encontro vez ou outra. Outro dia quase me morde um enorme pastor alemão sentinela.
O que muito me faz falta é a companhia de outras crianças renascidas como eu. Brinco sozinho o tempo inteiro porque não há amiguinhos com quem brincar. Sinto-me, de fato, muito só neste mundo. Ainda me resta a esperança de que encontrarei alguém morto, renascido, em recrescimento. Anelo encontrá-lo em breve.
Fernando Cavalcanti, 01.07.2010
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