segunda-feira, 18 de maio de 2020

NADA MAIS, NADA MENOS

Outro dia escrevi sobre muros e crianças. Sobre muros que não detinham crianças (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2015/10/criancas.html). Foi sobre o tempo em que éramos tão livres que queríamos invadir os espaços fechados. Pura curiosidade. Pura vida de criança. Aos dias de hoje parece ocorrer o oposto. Ou, melhor dizendo, não ocorre o oposto. Seria o oposto se as crianças de hoje, trancadas em espaços fechados, ousassem romper o que as impede e ganhassem as ruas de pedra, os terrenos baldios, os quintais... Mas, não... Não há mais ruas de pedra, nem terrenos baldios, nem quintais... Só há o medo.
Ainda assim, e por tudo isso, talvez, as crianças chegavam a ser cruéis. Por exemplo, o que podia ser capturado como estereótipo em qualquer um de nós se resumia num ”carinhoso” apelido. Bem... muitas vezes, quase todas, não eram os estereótipos, mas algum traço físico relevante ou extraordinário o que estimulava os coleguinhas a nos apelidar. Afinal de contas, crianças não tiveram tempo para se deixar estereotipar. Ainda. Crianças são vítimas dos caprichos da natureza e da malícia de outras crianças. Sim, isso mesmo. Uma parte elas não é vítima de coisa nenhuma – em tenra idade já demonstram uma malícia que deveria ser preocupante... para a sociedade.
(Estou aqui a ponderar... Falo, não falo; falo, não falo... Decidi: – vou falar. A única coisa que se leva à campa é a tralha do que vai virar pó.)
Certa feita um coleguinha me pôs um apelido muito carinhoso. Alcunhou-me de Cadáver.  Vejam que coisa pavorosa – Cadáver! Muito magrinho e pálido, ele, já na idade da malícia de alguns, via em mim todas as características de um corpo sem vida. Cadáver. (Escrevo com maiúscula porque apelidos são escritos com letra maiúscula. Vejam aquele garoto cuja cabeleira tem cinco fios, amigo da Mônica, personagem do Maurício de Sousa, o Cebolinha. Se escrevo com minúscula corro o risco de alguém pensar que me refiro à planta.) Nas conversas era Cadáver fez isso, Cadáver fez aquilo; Cadáver joga de centroavante, Cadáver fez um gol; e por aí vai...
Tanto não havia estereótipos que mudavam os apelidos caso mudassem os traços físicos. Depois de colocar um aparelho ortodôntico, a coisa mudou – era Boca-Rica; ou Sorriso Metálico. Antes do aparelho, como os dentes se projetassem muito à frente, outro apelido – Elefante. Este último “pegou” menos, já que era enorme o contraste entre meu mirrado físico e o porte do animal. Moreno, um coleguinha que àquela época já parecia mais crescido em malícia que as demais crianças – vejam que Moreno já é um apelido – me veio com a pecha de Gambá. Tudo porque, certo dia, as coleguinhas do bairro colaram-me à testa um pequeno adesivo para “referendar” meu pertencimento aos amiguinhos do bairro e, voltando eu ao colégio marista com outro adesivo semelhante ao dia seguinte, concluiu que eu não havia me banhado. Assim, para ele, eu seria semelhante a um gambá, o bichinho que exala forte odor quando se vê ameaçado e não porque seja imundo. Paciência. As crianças às vezes são cruéis em sua ignorância muitas vezes travestida de inteligência.
Mas, por que é mesmo que estou contando tudo isso? Ah! Lembrei. Foi o seguinte.
Escreveu-me o Sérgio Moura – ou foi o Bacana? – não lembro... para dizer que nossa geração havia fracassado. Ora, imediatamente me lembrei do que o Nelson disse certa vez:
“Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo – a nossa”, disse ele.
Diz o sábio que “o que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do sol”. Será que nosso suposto fracasso significava que essa geração havia feito – ou não feito – algo diferente do que outras fizeram antes e isso teria determinado nosso fracasso? Bem, não parece ser isso, já que diz mais o sábio e estou humildemente inclinado a lhe dar razão:
“Haverá algo de que se possa dizer: ‘Veja! Isto é novo!’? Não! já existiu há muito tempo, bem antes da nossa época”.
Assim, se não se faz nada de novo, se não há nada de novo, se tudo que já foi feito está fadado a se repetir sem nenhuma “inovação” – a tecnologia não muda a essência – então nada de novo fizemos ou deixamos de fazer, o que invalida a hipótese de que fracassamos. E o que fizemos, digo, o que faz repetidamente o bicho-homem? Ora, assassinar, roubar, injuriar, caluniar, humilhar, onerar, adoecer o semelhante – sim! adoecemos os outros! –, litigar, enganar, mentir, trair, apunhalar... e por aí vai. O que deveria ter dito ao Serjão ou ao Bacana, não me lembra bem, é que não, nossa geração não fracassou. Não há nenhum fracasso. O que há o ser humano. Por outro lado, fosse vivo o Nelson lhe escreveria para humildemente lhe dizer, lhe lembrar que não há a época “doente mental”, nenhuma época foi “doente mental”. O que há é o ser humano, repito. E só. Doente mental é o ser humano. Nada mais, nada menos.

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