Outro dia
escrevi sobre muros e crianças. Sobre muros que não detinham crianças (https://umhomemdescarrado.blogspot.com/2015/10/criancas.html). Foi sobre o tempo em que éramos tão livres que queríamos invadir os espaços
fechados. Pura curiosidade. Pura vida de criança. Aos dias de hoje parece
ocorrer o oposto. Ou, melhor dizendo, não ocorre o oposto. Seria o oposto se as
crianças de hoje, trancadas em espaços fechados, ousassem romper o que as
impede e ganhassem as ruas de pedra, os terrenos baldios, os quintais... Mas,
não... Não há mais ruas de pedra, nem terrenos baldios, nem quintais... Só há o
medo.
Ainda
assim, e por tudo isso, talvez, as crianças chegavam a ser cruéis. Por exemplo,
o que podia ser capturado como estereótipo em qualquer um de nós se resumia num
”carinhoso” apelido. Bem... muitas vezes, quase todas, não eram os estereótipos,
mas algum traço físico relevante ou extraordinário o que estimulava os
coleguinhas a nos apelidar. Afinal de contas, crianças não tiveram tempo para
se deixar estereotipar. Ainda. Crianças são vítimas dos caprichos da natureza e
da malícia de outras crianças. Sim, isso mesmo. Uma parte elas não é vítima de
coisa nenhuma – em tenra idade já demonstram uma malícia que deveria ser
preocupante... para a sociedade.
(Estou
aqui a ponderar... Falo, não falo; falo, não falo... Decidi: – vou falar. A única
coisa que se leva à campa é a tralha do que vai virar pó.)
Certa
feita um coleguinha me pôs um apelido muito carinhoso.
Alcunhou-me de Cadáver.
Vejam que coisa pavorosa – Cadáver! Muito magrinho e pálido,
ele, já na idade da malícia de alguns, via em mim todas as características de
um corpo sem vida. Cadáver. (Escrevo com maiúscula porque apelidos são escritos
com letra maiúscula. Vejam aquele garoto cuja cabeleira tem cinco fios, amigo
da Mônica, personagem do Maurício de Sousa, o Cebolinha. Se escrevo com
minúscula corro o risco de alguém pensar que me refiro à planta.) Nas conversas
era Cadáver fez isso, Cadáver fez aquilo; Cadáver joga de centroavante, Cadáver
fez um gol; e por aí vai...
Tanto não
havia estereótipos que mudavam os apelidos caso mudassem os traços físicos.
Depois de colocar um aparelho ortodôntico, a coisa mudou – era Boca-Rica; ou Sorriso Metálico.
Antes do aparelho, como os dentes se projetassem muito à frente, outro apelido
– Elefante. Este último “pegou” menos, já que era enorme o contraste entre meu
mirrado físico e o porte do animal. Moreno, um coleguinha que àquela época já
parecia mais crescido em malícia que as demais crianças – vejam que Moreno já é
um apelido – me veio com a pecha de Gambá. Tudo
porque, certo dia, as coleguinhas do bairro colaram-me à testa um pequeno
adesivo para “referendar” meu pertencimento aos amiguinhos do bairro e,
voltando eu ao colégio marista com outro adesivo semelhante ao dia seguinte,
concluiu que eu não havia me banhado. Assim, para ele, eu seria semelhante a um
gambá, o bichinho que exala forte odor quando se vê ameaçado e não porque seja
imundo. Paciência. As crianças às vezes são cruéis em sua ignorância muitas
vezes travestida de inteligência.
Mas, por
que é mesmo que estou contando tudo isso? Ah! Lembrei. Foi o seguinte.
Escreveu-me
o Sérgio Moura – ou foi o Bacana? – não lembro... para dizer que nossa geração
havia fracassado. Ora, imediatamente me lembrei do que o Nelson disse certa vez:
“Quero
crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo – a nossa”, disse ele.
Diz o
sábio que “o que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há
nada novo debaixo do sol”. Será que nosso suposto fracasso significava que essa
geração havia feito – ou não feito – algo diferente do que outras fizeram antes
e isso teria determinado nosso fracasso? Bem, não parece ser isso, já que diz
mais o sábio e estou humildemente inclinado a lhe dar razão:
“Haverá
algo de que se possa dizer: ‘Veja! Isto é novo!’? Não! já existiu há muito
tempo, bem antes da nossa época”.
Assim, se
não se faz nada de novo, se não há nada de novo, se tudo que já foi feito está
fadado a se repetir sem nenhuma “inovação” – a tecnologia não muda a essência –
então nada de novo fizemos ou deixamos de fazer, o que invalida a hipótese de
que fracassamos. E o que fizemos, digo, o que faz repetidamente o bicho-homem?
Ora, assassinar, roubar, injuriar, caluniar, humilhar, onerar, adoecer o
semelhante – sim! adoecemos os outros! –, litigar, enganar, mentir, trair,
apunhalar... e por aí vai. O que
deveria ter dito ao Serjão ou ao Bacana, não me lembra bem, é que não, nossa
geração não fracassou. Não há nenhum fracasso. O que há o ser humano. Por
outro lado, fosse vivo o Nelson lhe escreveria para humildemente lhe dizer, lhe
lembrar que não há a época “doente mental”, nenhuma época foi “doente mental”.
O que há é o ser humano, repito. E só. Doente mental é o ser humano. Nada mais,
nada menos.
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