Dizes que sou o indivíduo que mais amigos de infância tem. Pois queres saber? É a mais pura verdade, e ainda sinto aquela vaidade pueril em tê-los. O que é a amizade nesses tempos difíceis? Diria ser algo quase impossível, algo que não tem preço. E bem sei que conheces alguns de meus amigos do tempo das fraldas e da merendeira, o Amorim, o Motta, o Baxim, o Mesquita, o Bacana, e outros, e outros, e outros. São tantos que às vezes não percebo quão rico sou.
O que não sei é se conheces o Chicote. Conheces o Chicote? Isso mesmo: Chicote. Não, não o chamam assim por ser ele um Francisco pequeno, miúdo, raquítico, um Chico anão. Recebeu esse epíteto por ser um sujeito mordacíssimo, quase intolerável. Sua mordacidade atingia a vítima como uma chicotada. Daí o apelido. O tempo só serviu a aperfeiçoá-lo em sua habilidade maior: as chicotadas.
Sujeito inteligente, leitor voraz, cultivou um bigode lustroso que cobria dentes incrivelmente brancos quando de uma de suas comedidas gargalhadas. É mulato, do tipo dado à pândega. Formou-se médico e tornou-se conceituadíssimo entre seus pares e pacientes. Competentíssimo em seu mister, cultiva amizades ecléticas que inclui o vigia do prédio onde mora a figuras do high society. Para falar a verdade, tudo no Chicote é de um ecletismo abissal, as mulheres que conquistou aí incluídas. Na literatura lê rótulo de raticida; na música ouve até o João do Pífaro.
Dirás que supervalorizo o amigo, já que não lhe atribuo defeitos. Ora, o defeito é universal ao passo que a qualidade é individual e única, quando muito, parcamente alastrada. Diria até que sua mordacidade se lhe incrustou como uma virtude singular.
Vamos aos fatos sobre o Chicote.
Certo dia ele sentia-se mal, enfraquecido, cansado. Emagrecia a olhos vistos e um dia de labuta era para ele como os doze trabalhos de Hércules. Diagnóstico: hepatite. Os olhos amarelaram, a urina escureceu, a barriga doía. Prescreveram-lhe repouso, boa alimentação, nenhum medicamento e abstenção do álcool.
Aqui paro para dizer que Chicote e eu éramos dados a uns tragos bem ali no Cais Bar. Não sei se lembram do Cais Bar. Freqüentávamos o Cais Bar como de ordinário, coisa bastante comum entre os fortalezenses aquinhoados com a oportunidade de ter vivido época tão romântica e bucólica. Nem me delongo a fazer tais considerações sob pena de me perder naquela Fortaleza minúscula e apaixonante. Direi apenas que bem ali no Cais Bar íamos Chicote e eu, no tête-à-tête, bebericar e paquerar as meninas.
Com o diagnóstico caiu sobre o amigo uma desolação tocante. Um fígado viral é algo preocupante. E se a coisa fica crônica? Quanto tempo se fica de molho sob a ameaça do vírus indestrutível e à mercê de vida regrada e insossa? Sabia lá o especialista. E eu? Beber sozinho? Um saco! Acreditávamos que tudo se resolveria no devido tempo e que era preciso seguir a prescrição à risca.
Quando o amigo melhorou da indisposição seu médico lhe autorizou a trabalhar e sair, mas as restrições alcoólicas foram mantidas. Assim, íamos ao Cais Bar, mas só eu bebia. Chicote ficava só na soda e na água. Olhava para mim e dizia, triste como um bicho preguiça: -“A vida sem álcool é uma merda.” O médico lhe dissera que não lhe seria permitido beber ainda após seis meses da normalização das enzimas.
O diabo é que passava o tempo e as malditas enzimas continuavam lá em cima. Já dera o tempo de elas caírem e nada. Aquele era um caso diferente. Parecia que o Chicote ia ter uma hepatite crônica, cujo desfecho final é uma cirrose e possivelmente um hepatoma, um câncer de fígado. Que coisa! Seria possível?, era o que nos perguntávamos em silêncio mútuo.
Chicote não queria morrer de véspera e continuava trabalhando e me acompanhando ao Cais Bar, eu na cerveja, ele na soda limonada. Até que chegou o dia em que ele me bate o telefone e fuzila: -“Fiz novos exames. As enzimas normalizaram.” Fomos ao Cais Bar comemorar. Nada de olhos amarelos, urina preta, enzimas altas, vírus presentes. Tudo coisa do passado, recente é verdade, mas passado. Ah, o Chicote queria uma dose do destilado, sem pedra de gelo nenhuma! Veio de lá o Chagas com uma dose dupla, dessas que se derramam pelas beiradas. O amigo nem deixaria passar os seis meses. Entornou de uma lapada só, como se fosse morrer a seguir. Dir-se-ia a cicuta socrática. Lambia os beiços como se acabasse de degustar um crêpe Suzette.
Olhou-me nos olhos e confessou: -“Eu pedia ao Chagas pra derramar metade da soda e completar com vodka. Pensei que ia morrer.” Fiz cara de terror e ele completou: -“Se eu te contasse tu irias me repreender.” Continuei calado como uma múmia. Ele finalizou: -“Matei o vírus com vodka.”
Ele está vivinho da silva até hoje. O Cais Bar já morreu faz tempo.
Fernando Cavalcanti, 03.02.2011