quarta-feira, 9 de agosto de 2023

CABAÇO DE FILHA

            Meu amigo Amorim estava um misto de irônico e melancólico, alegre e mordaz, gordo e magro. Sim, apesar de estar imensamente gordo, era um misto com a magreza. Seu ventre abaulado insistia em esconder toda sua magreza. E ele, por sua vez, procurava disfarçar sua frustração. Súbito, passou a falar abertamente sobre o que o atormentava.

            Não se conformava com o noivado da filha. O noivo era garoto bom, estudioso e, ao que parecia, de boa índole. Estudava engenharia e dali a poucos meses, formado, estaria pronto a constituir família. Mas Amorim não se conformava. Sentia-se derrotado. Não se entendia o porquê. Nem ele sabia explicar. Só sentia. Era um poço de sentimentos, de sensações.

            A jovem não estava inadvertidamente grávida. O casamento estava sendo planejado, estudado, calculado. Que diabo incomodava o Amorim? Lembrava a festa em que fora com toda a família e, com eles, o noivo. Via-o abraçar e beijar a filha e pensava: -“Esse filho da puta vai comer a minha menina...!” Isso o deixava louco, mas nada podia fazer. O que fazer? Nada podia fazer. Eram noivos. Mas ele iria comê-la, que diachos! Era o defloramento autorizado, institucionalizado, permitido aos olhos de todos. Amorim estava de mãos atadas. Era notória a obsessão. Estava cego e inconsolável. A filha comida o levava à loucura e ao delírio. Relacionava-se bem com o futuro genro, mas... “esse filho da puta vai comer a minha filha!” As regras e normas diziam que ele nada devia fazer. A filha seria comida respeitosamente. Assim funcionam as coisas, ora essa!

            Os amigos que com ele estavam tentaram lhe dizer tudo isso, mas ele não dava a mínima. Achei que estava louco, mas dei o desconto. Nunca ouvira de um pai tais confidências. Por isso levei na gozação. Pensam que se chateou com isso? Não deu a menor importância! “Esses bostas não entendem, não é a pele deles! Ou melhor, a filha.”

            O dono do carro estacionado à nossa frente deu a partida no motor. O veículo estava imundo. Uma poeira barrenta o cobria. Amorim, mordaz, perguntou se o bicho estivera enterrado. Todos caíram na gargalhada. Depois voltou ao assunto da filha prestes a perder o cabaço. Fomos saindo um a um, aos poucos, e ele ficou com aquele olhar de lunático, perdido em si mesmo. Não via a filha mulher, mas a criança.

02.01.2010

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