Pareceu a alguém
que estaria eu a acusar uma categoria de gente quando bradei: -“Raparigas,
uni-vos!” Tanto é assim que alguém retorquiu: -“Raparigueiros, defendei-vos!”
Confesso: foi alguém da casta masculina, um amigo anônimo por assim dizer. Infiro
que se sentiu ameaçado com meu vocativo; viu-se repentinamente acossado por uma
súcia de raparigas. Terá lá suas razões.
E
fez bem o amigo em também invocar os tais raparigueiros. Antes de seguir
adiante convém esclarecer o que sejam esses tais. Numa frase os defino: são
aqueles contumazes na atividade de raparigar, os tais solteiros dos quais vos
falei. Para não faltar com a verdade e que não me imputem o defeito de pateta,
repito o que disse: o verdadeiro raparigueiro é o celibatário. Tenho desse tipo
dois exemplos, para mim inolvidáveis: o Holanda e o Zé Cabana.
O
Holanda seria o clássico raparigueiro porquanto jamais uniu-se a uma dama em
casamento ou amásio. Do alto de seus quase 51 perdura-lhe até hoje a solteirice
desmedida. Não fosse sua precoce adesão ao esporte da raparigagem, havia de se
lhe arranjar coragem a repudiar o conteúdo das más línguas. Ou não!... Holanda
era societário de vários e vários e vários bordéis. Era tão sócio, mas tão sócio!,
que as putas já nem lhe cobravam. De umas se tornava amigo, de outras amante
preferido e ainda de outras comparsa em farras e pilhérias. Diria até, e sem
desejar enxovalhar o caráter de meu amigo, que se tornou um natural cafetan, já que enchia os alcoices de
amigos que lá conduzia a bebericar e festejar tais os que vão a uma tasca com a
mulher e os filhos.
Zé
Cabana, ao contrário, tornou-se doutor e homem de família, renunciando por
completo à libertinagem pregressa. É possível até que lobrigueis o cenário através
de seu “nome”; óbvio é que lhe serve de alcunha. Era habitué em antiquado cabaret
pelas bandas da fábrica de asfalto, tão antigo quanto esta – o Cabana Drink’s. O
homem tinha lá com as licenciosas uma tão grande intimidade que os amigos,
usando de um malicioso calembur, diziam: -“Zé Cabana, dono do Canella Drink’s!”, numa alusão ao seu sobrenome “Canella”.
Assim, era já entendido de todos que o Zé Canella era o rei daquela casa de prazeres.
Hoje em dia o homem é sequer uma tênue sombra do que foi um dia, mas há que se
levar em conta o que diz o rifão: qui fuit rex numquam amittit majestatis.
Há
também que ratificar outro pensamento que possa não ter sido bem entendido, o de
que os homens esposados são quase nunca dados à raparigagem. Ora, a propósito,
caiu-me como uma luva o encontrar hoje ao hospital o meu velho amigo Pinto. Que
fazia ele? Esperava meu procedimento ir a termo a fim de realizar o seu. Motivo:
sua anestesiologista era a mesma minha. Recuso-me a deitar ao papel o nome da beldade
que anestesiava meu paciente. Outro dia relatei episódio ocorrido com certa
amiga e a nomeei. Resultado: ninguém a conhecia. Adalgisa era desconhecida de todos.
Menos mal, pensei após perceber minha vulnerabilidade jurídica. Adrede, declino
agora identificar a outra personagem. Direi apenas que é uma senhora de
exagerados dotes.
Ali,
na sala de operações e à medida que confeccionava o ato, teve início a conversa
que me municiou de argumentos. Com efeito, não foi de fato uma conversa – foi um
relato. A doutora, não sei por que cargas d’água, passou a expor o seguinte
acontecimento envolvendo o doutor Pinto e ela própria.
Certo
dia, após o término de uma operação em que ambos funcionavam em seus
respectivos misteres, ela queria saber dele se podia dar-lhe uma carona ao
outro hospital onde lhe aguardava outro paciente para um procedimento. O que
para muitos parece uma banal ocorrência, a outros se lhe parece a vista de uma
procela ao horizonte. Era o que a hesitação do Pinto figurava. Sua indecisão em
consentir levar a doutora consigo parecia durar uma eternidade e já se tornava
uma má educação.
Ele
lhe explicou, ao final dos eternos trinta segundos que usou para se decidir,
que sua mulher era muitíssimo ciumosa e que somente a levaria sob estritas
condições. Primeiro, que mantivesse os vidros do veículo fechados durante todo o
trajeto e não os baixasse sob nenhuma hipótese. Segundo, que não penteasse sua
volumosa cabeleira dentro do carro. Terceiro, que a deixaria descer a poucas quadras
do hospital. Tudo acertado, partiram.
O
diabo é que na viagem a doutora foi assaltada por uma necessidade imperiosa:
precisava abrir a bolsa. Quem sabe da relação que as mulheres têm com suas
bolsas e mochilas conhece perfeitamente a falta que faz o não abri-la. O que
quer que fosse que lá dentro estivesse – uma escova, um fio dental, um conjunto
espelho-batom, um creme hidratante, um brinco, uma pulseira, uma aliança, uma
sombra, um lápis, um barbante, um grampo, uma tiara, um botão, o telefone portátil,
uma anágua, enfim... – a doutora precisava, anelava, desejava ardentemente
abrir sua bolsa, que mais parecia um alforge.
Dias
depois chegava o Pinto em casa, final de mês, duro feito um paralelepípedo, e a
mulher não escondia a tromba. Disse: -“Quem foi a rapariga que levaste contigo
no carro?”
Vede
que o homem comprometido, ainda que seja portador de todas as medíocres virtudes
do homem casado – não sou eu quem o diz, é o Nelson Rodrigues – está, como as
raparigas, sujeito à mesma injustiça que lhas parecia peculiar. Inocente como
um bebê de colo, Pinto até hoje não convenceu a mulher de que conduzira em
carona a colega de profissão e amiga fulana de tal. Para a mulher ele se tornou
dos mais recentes, cínicos e devassos raparigueiros da atualidade. Daquele momento
em diante anda, principalmente ao fim do mês quando se lhe vão as últimas patacas,
cabisbaixo, taciturno e duro. Uma coisa de fazer dó.
Genial, Fernando! Realmente, as impressões percebidas sob a mínima suspeita e nenhuma prova pelas, como diria um amigo meu, cumades podem ser irreversíveis.
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