Ontem fui com o Mesquita ao jogo de futebol. Fui até sua casa pilotando minha motocicleta e de lá zarpamos para a casa de sua sogra. Era o seu aniversário. Depois, pelas 7 e meia da noite, seguimos para o campo.
Dirá alguém que fica difícil entender como posso jogar futebol se digo detestar futebol. Verdade – detesto futebol.
Mas, como é do conhecimento geral de meus amigos, detesto o futebol "oficial", esse que ocorre nos estádios mundo afora; esse com equipes vestidas em camisetas coloridas ou não, levando impressas nas mesmas logomarcas de bilionárias empresas; esse que provoca as paixões mais incompreensíveis, desenfreadas e delirantes em mentes brilhantes noutros momentos, como se fosse uma poderosa droga a obnubilar os sentidos e a razão mais primária; esse que toma as televisões em noites de semanas, nas tardes de sábados e domingos e, às vezes, nas madrugadas frias em qualquer dia; esse em que as negociatas vez ou outra, não raro, movimentam bilhões de dólares e interesses escusos às custas daquela mesma paixão doentia; esse que decide nações e catapulta políticos, e que provoca atos de vandalismos e até agressões e mortes.
O futebol em si, o jogo, a partida, esse não posso detestar. Outro dia o sujeito, repórter não sei de qual rede, foi entrevistar o Djalma Santos, ex-jogador e craque da seleção brasileira, por duas vezes campeão do mundo. Assisti, emocionado, o falar do Djalma Santos. Velho e humilde em caráter e bens, vendo-o não se advinharia quem é, quem foi. E foi um gigante do futebol, considerado o maior lateral direito de todos os tempos. Desde pequeno bronquítico, nunca lhe pediram enquanto atleta que tivesse um surto de tosse ou dispnéia durante uma partida ou antes dela. Sua bronquite durante o jogo era esquecida, não existia, simplesmente não existia; nunca dela se serviram a algum indecente estratagema.
E o que dizer de Garrincha, o Mané? Jogava por prazer, por brincadeira, por diversão. Para ele toda partida de futebol, mesmo as "oficiais", era uma pelada, um racha. E, nos fins de semana, voltava à sua terra natal para jogar nos terrenos baldios e campos de várzea que "empestavam" o lugar ao lado dos humildes conterrâneos que nele viam apenas e tão-somente o Mané das pernas tortas e craque de bola. Quando foi embora achou-se, anos depois, debaixo do colchão da cama onde dormia com sua primeira mulher, Nair, uma dinheirama que nada mais valia, "bicho" ganho como atleta "profissional". O diabo foi a cachacinha que conheceu cedo e dela nunca mais largou. Morreu jovem, pobre e esquecido.
E assim como esses dois monstros sagrados, o antigo futebol está repleto de craques que eram apenas isso: – craques. Eles jogavam o futebol do qual gosto, o futebol que encantou e ainda encanta, o futebol enxuto e destituído das sordidezes que contaminam o atual.
Outro dia desses, acho que ontem ou antes de ontem, o jornal mostrou: – o sujeito vinha em seu carro e, de repente, abre-se-lhe o chão, o asfalto, e cai ele com o carro no enorme e súbito buraco. A fotografia da cena mostrava o pneu dianteiro esquerdo do veículo dentro da fresquíssima cova. O proprietário há de ter tido lá um prejuízo com a quebra de uma ou outra peça, mas se presume que seja também possível que algum ocupante do automóvel tenha sofrido algum ferimento. Afinal, uma desaceleração súbita, diz-nos a primeira lei de Sir Issac Newton, pode ocasionar sérios ferimentos em tecidos vivos. Agora, imaginem os queridos leitores o que poderia ocorrer caso o veículo fosse uma motocicleta ou mesmo uma bicicleta. A depender da velocidade, um sério acidente seria bem provável. Pelo sim, pelo não, resolvi deixar a motocicleta na garagem do Mesquita. Se em pleno centro da cidade – o acidente foi no centro – abre-se um buraco, o que poderia abrir-se em regiões mais periféricas, onde se localiza o campo de futebol? Lá me aventuro muitíssimo raramente, quase nunca, em meu veículo de duas rodas.
Mais ainda que os buracos da cidade, antigos ou recentes, há também em quantidade as irregularidades dos campos de futebol onde jogamos nossas inocentes peladas. O campo de ontem era, neste quesito, praticamente perfeito. Era uma planície só, onde a bola tinha tudo pra rolar sem saltos ou topadas. Pudera. Era o gramado sintético, estendido sobre um chão cuidadosamente aplainado, sem desculpas para os mais incautos jogadores. E devo confessar: – quase todos eram uns garotos de máximo 30 anos. Os mais velhos eram o Mesquita, o Arlan, o Bacana e eu, todos na faixa dos 50. E o que se viu foi um passeio de culotes e barrigas frouxas... dos jovens. Mais: se não todos, quase todos usavam uma gravata vermelha que, logo percebi, não se tratava de gravata nenhuma– era a língua deles pendendo de suas bocas.
O detalhe cômico foi o seguinte. Mesquita ainda estava combalido da endoscopia a que se submetera três ou quatro dias antes. Para limpar-lhe o intestino prescreveram-lhe laxantes e desidratantes dos mais fortes que se possa imaginar. Nem isso o fez render menos diante daqueles jovens, cujos abaulados ventres cheios de gordura e gases odoríferos os tornavam os verdadeiros idosos da pelada. Mesquita correu mais que todos eles juntos. Sem falar na fissura que lhe diagnosticaram à borda do orifício, coisa de gente tensa e por demais preocupada com questiúnculas. Fissura orificial é coisa assaz dolorosa, mas o Mesquita estoicamente dela esqueceu-se e até marcou um gol, que ofereceu, pasmem!, como homenagem à maldita fissura. Prometeu dela dar cabo em poucos dias.
Assim, os cinqüentões demos um baile nos garotos barrigudos e engravatados. Nosso único ponto fraco era a fissura do Mesquita, para a qual já lhe prescrevemos semicúpios e laxantes mais suaves. Sua desidratação parecia resolvida e não se mostrou um problema. A conclusão a que se chega é que campo esburacado pode até se tornar boa desculpa para o mau jogador, mas o campo perfeito é o que mais expõe a juventude despreparada e precocemente "embarrigada".
Devia ter aceito a saladinha que me ofereceram no aniversário da sogra do Mesquita. Com ela na barriga ainda daria uns quebras na negrada.
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