sexta-feira, 3 de maio de 2013

O grandefortalezense, razão de tudo


              Não sei se andam de carro nesta cidade. Eu ando.
            Aos amigos e leitores que me acompanham já há algum tempo, confesso: - voltei a ser dono de um carro. Não entrarei no mérito das razões que me levaram a voltar a usar um objeto que é uma ferramenta cara de se obter e manter, poluente e perigosa, numa cidade onde os facínoras fazem e desfazem e nada acontece.
            Alguém dirá que a motocicleta, da qual também me utilizo, também é, e muito mais, perigosa, e perigosa duas vezes: - além da exposição maior aos bandidos, há uma maior exposição ao trânsito e, portanto, uma maior chance de ser-se vítima de acidentes. Todos sabem que o sinistro com a motocicleta põe seu piloto em risco de ferimentos mais graves, e deve ser evitado a todo custo.  
            De qualquer forma, de carro ou de motocicleta e mesmo do transporte público - este uma penúria de fazer dó -, o cidadão fortalezense que sai à rua deparar-se-á, com freqüência cada vez maior, com seu maior algoz: - o próprio cidadão fortalezense. Ele ver-se-á a si mesmo, cara a cara por assim dizer, como se carregasse um espelho à sua frente aonde quer que fosse. Fortaleza tornou-se um grande big brother ao ar livre, onde seus limites serão reconhecidos não por um sinal, ou por um muro, ou por qualquer outra estrutura física ou linguagem que indique sua linha divisória. Até porque Fortaleza não é Fortaleza: - ela é a Grande Fortaleza, já que os municípios aí incluídos em nada diferem desta, numa conurbação perfeita e completa. O limite de município da cidade, da Grande Fortaleza, é sinalizado por outro critério.
            Hoje pela manhã, a caminho do hospital em minha motocicleta, paro ao sinal vermelho em cruzamento do Centro. Para o motociclista consciente, o Centro é um local relativamente seguro de se trafegar por apresentar trânsito lento e de pequeno volume. (Motociclista medroso receia trânsito rápido e intenso e, vocês sabem, o medo é um processo mental protetor. Há que se temer a quem não teme.) Parei à esquerda de um veículo maior cujo motorista dizia alguma coisa sobre a beleza de minha moto, e nem mesmo me dei o trabalho de lhe dar atenção. Havia um espaço mais ou menos exíguo entre ele e eu, mas seguro o bastante para mim.
            Eis que, de repente, senti um leve impacto na parte de trás da motocicleta, como se algo houvesse batido, se chocado levemente, contra seu pneu traseiro. Pelo canto do olho percebi, à direita, a lenta passagem de outra motocicleta, dessas menores, pilotada por um policial militar fardado. Era um veículo particular. Ele, então, cruzou para a outra faixa defronte o sinal vermelho, e parou ao lado do meio-fio oposto para conversar com dois outros colegas que montavam guarda à esquina.
            Concluí, sem dificuldade, que a autoridade fardada acabara de colidir sua motocicleta, ainda que inconsequentemente e levemente, com a minha. Ele não deu a mínima, a mim não se dirigiu, e nem um pedido de desculpas solicitou. Eu, por julgar não valer a pena me trocar com aquela sumidade da lei, segui em frente à troca do semáforo e o caso se deu por encerrado.
            Os limites da Grande Fortaleza são aqueles onde acaba o cidadão da Grande Fortaleza. Não mais se achando este cidadão, também se sabe que se está fora da Grande Fortaleza. Não sei se me faço entender.
           Este cidadão, que doravante chamaremos de grandefortalezense, tem-se notabilizado por ter-se revelado, nos últimos tempos, um grande e descomunal troglodita, desses que arrastam a mulher pelos cabelos após lhe açoitar impiedosamente. Sua falta de polidez, sua falta de senso de cidadania; seu desconhecimento do contrato social, seu desprezo pelo outro, sua falta de senso de alteridade; tudo isso tem exposto sua verdadeira face. A máscara que usou durante anos caiu. Sua suave feição era tão-somente uma maquiagem que não resistiu à tempestade de desordem social que ora abate e castiga os habitantes desta Sodoma moral. O grandefortalezense, que todos julgavam o sujeito mais supimpa do Brasil por sua irreverência e bom humor – ele próprio não se aguentava em si mesmo de tanta empáfia -, tem-se, nesses tempos recentes, demonstrado ser um grande e irremediável canalha, um prodigioso e hediondo brutamontes, uma farsa sem tamanho.
            A virga-férrea que ora assistimos inclui, além dos assassínios e dos acidentes de trânsito em quantidade, a agressão gratuita nas e das calçadas, vias públicas e seus cruzamentos, em suas praças desabitadas, nas esquinas, nos bares, nos restaurantes, nas praças de espetáculos musicais, enfim, em todos os lugares e bairros. É ubíqua. A agressão do tráfego e os assassinatos diferem de outras apenas por ferirem os códigos. As normas sociais e morais são muito mais vilipendiadas do que as leis. A afronta diária àquelas não gera processos nos tribunais, mas revela o caráter desse diário agressor, o grandefortalezense.
            A zangurriana de excelentes jornalistas, como o senhor Fábio Campos, tem sido açulada por leitores inconformados e angustiados a partir desse estado de coisas, mas a mudança que tanto se espera se assemelha cada vez mais a uma quimera. Anos e anos foram dedicados à construção do grandefortalezense, esse que aí está e que encontramos a toda hora, bastando para isso que se ponha a cabeça para fora da janela, com o devido cuidado para não ser alvejado. Sorrateiramente ele surgiu parido de um sistema que inevitavelmente o geraria, montado justamente com esse intuito. O grandefortalezense foi engendrado há muito, e seu aparecimento se mostrou inevitável.    
Outro dia, felizes da vida fomos Bella e eu ao Siará Hall, casa de shows conhecida por sua pobre infra-estrutura, desconforto climático e outros inúmeros desconfortos. As atrações eram José Augusto e Paula Fernandes. Dali a pouco, à apresentação da jovem cantora, tem início uma briga, sim, uma altercação entre dois cidadãos a se engalfinharem entre socos, pontapés e xingamentos às respectivas mães. Ela, de cima do palco, ordenou a seus músicos que parassem de tocar até que os dois quadrúmanos encerrassem sua ridícula e pública manifestação de idiotia reprimida. E foi além: - utilizando-se de sua altíssona voz, pediu encarecidamente a que o público oferecesse a eles uma salva de vaias, no que foi prontamente atendida pela platéia indignada. (Foi a primeira vez na vida que ouvi um pedido de salva de vaias...) Com mais um pouco, observamos o sujeito à nossa frente iniciar uma cusparada entre as filas de cadeiras a seu lado. Vez ou outra o cuspo se deixava grudar nos próprios assentos. Já estava para levantar-me e dirigir-me ao posto médico da casa – que nem sei se de fato existe – e solicitar um kit de hidratação venosa para o cavalheiro cuspidor. Temia que viesse a se desidratar caso não interrompesse sua ira suicida.
Assim, dia após dia somos vítima do grandefortalezense e de sua sanha agressora. Saindo do avião em continente onde a ordem e as leis coagem percebe-se: - está-se fora dos limites da Grande Fortaleza e longe do alcance do grandefortalezense e de sua perene ameaça. A paz é certa. E o alívio também. 

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