No Brasil não se faz ciência.
Calma, calma. No Brasil faz-se alguma ciência, mas o que aqui se faz nem de longe se assemelha ao que se faz de ciência em países com elevados níveis de educação. Assim, repito, no Brasil não se faz ciência. E estamos conversados.
Minto. No Brasil se faz ciência às avessas, sem querer, involuntariamente. (Estou aqui a me indagar a mim mesmo como farei para explicar isso.) Dizendo de outra forma, no Brasil a ciência que se faz se faz por conta de nossas mazelas, que são uma infinidade.
Por exemplo, no Hospital Geral de Fortaleza há um extenso e inédito material sobre o qual a ciência médica, em se debruçando sobre ele, faria descobertas e constatações surpreendentes. Mais do que isso, esses dados provariam que quase tudo o que está escrito nos espessos Tratados de Cirurgia de Urgência está incorreto. Sabe-se que boa parte desse material é escrito fora do país, e mesmo o que aqui é escrito tem como base quase tudo o que se escreve lá fora. Assim, a conclusão a que se chegaria é a de que eles, os gringos, nada sabem de medicina.
O excelente pediatra doutor Alberto Lima de Sousa dizia, em meus tempos de internato lá mesmo, no Hospital Geral de Fortaleza, que os médicos brasileiros somos os melhores do mundo. Eu, em minha robusta ignorância, lhe perguntava: -"Por que, doutor Alberto"? E ele me respondia com aquela doçura e aquele sorriso cativante que lhe eram peculiares, hoje tão raros no comportamento e nas faces dos discípulos de Asclepius: -"Porque usamos apenas nossos sentidos para fazer diagnósticos". Ele se referia à pobreza da tecnologia em nosso meio àquela época. De lá para cá alguma coisa mudou, e não é de se impressionar que alguns estranhem o conteúdo dessa antiga prosa.
Lembra-me o prefácio de um Tratado de Imunologia em que o autor garantia, não ipsis litteris: "É do conhecimento geral que cinqüenta por cento do que se sabe em medicina não é verdade; o problema é saber quais são esses cinqüenta por cento..." Assim, de há muito alguém já admitia nossa profunda ignorância do fenômeno biológico. Não chega a ser, portanto, uma novidade o que estou para demonstrar.
O que acontece é o seguinte, por exemplo. Há um velho adágio cirúrgico cuja penetrante e bela poesia contribui para sua memorização e utilidade ao cirurgião que vara horas a fio em plantões desgastantes, e que diz: "Nunca permita que o sol se ponha ou que ele nasça sobre uma obstrução intestinal". A mensagem é clara e, traduzida ao leigo leitor, significa que a obstrução intestinal é uma condição grave e que deve ser resolvida o mais cedo possível sob pena de o paciente pagar com a própria vida a indevida procrastinação do cirurgião.
Há alguns anos fiz meus últimos plantões no setor de Emergência daquele belo hospital. Foi quando começou o notável aumento da demanda naquela unidade e o consequente gargalo no fluxo dos pacientes. Eles chegavam aos montes em busca de socorro e a capacidade do serviço era limitada, de modo que muitas vezes alguns doentes permaneciam aguardando por horas e mesmo por dias seguidos por uma operação de emergência ou de urgência. Eram as apendicites, as obstruções intestinais, as hérnias estranguladas, as úlceras perfuradas, em suma, o abdome agudo. (Abdome agudo é uma condição grave, como as referidas, que requer uma intervenção cirúrgica de urgência/emergência sobre o abdome.)
Eis que coisa interessante e intrigante passou a acontecer. Por falta de vaga na Sala de Recuperação Pós-Anestésica, muitos doentes não eram operados e suas condições evoluíam à custa de sua própria história natural. Eram tomadas as medidas clínicas cabíveis a cada caso na espera e expectativa de, a qualquer momento, se realizar a intervenção cirúrgica necessária. Voltemos ao exemplo da obstrução intestinal para ver o que muitas vezes sucedia.
Eram doentes com história clínica e exame físico compatíveis com obstrução intestinal. (Poder-se-ia alegar um erro de diagnóstico para justificar a evolução benigna.) Como já mencionei, o doente permanecia em dieta zero, hidratação venosa, descompressão gástrica e vigilância estreita. Eram realizados todos os exames complementares possíveis e básicos os quais corroboravam a hipótese diagnóstica. Rotina para abdome agudo demonstrava padrão em "pilha de moeda", típico de obstrução intestinal. Passava um dia, passavam dois dias, três dias, quatro dias, cinco, seis... e, num belo e refulgente dia, o débito da sonda nasogástrica caía, a distensão abdominal cedia, o paciente flatulava, chamava o doutor e dizia: -" A sede acabou"! Atente-se que nenhum exame mais complexo era feito por conta de sua indisponibilidade.
Alguém argumentará que, sim, é possível que uma obstrução intestinal evolua naturalmente para a cura. Uma aderência entre as vísceras abdominais, causa comum da condição, pode se desfazer ou se resolver naturalmente, sem a intermediação do bisturi. Isso é fato conhecido. O que não é conhecido é o fato de vários casos evoluírem desta forma. Não é a regra, segundo a literatura médica.
Assim como com a obstrução intestinal, vários casos de apendicite aguda evoluíram para a cura no mesmo contexto e no mesmo cenário. Seguindo-se a vários dias de espera, o doente chamava o doutor e pedia: -"Tô com fome"! (A literatura diz que se o doente tem fome deve-se questionar seriamente a hipótese de apendicite.) Desaparecia a dor na fossa ilíaca direita bem como os sinais de irritação peritoneal que lhe acompanhavam, se estes havia.
Da mesma forma, vários casos de apendicite aguda seguiram esse roteiro, e não somente um ou outro. Ainda assim, diga-se enfaticamente que, se repentinamente em qualquer serviço de Emergência um ou outro caso de apendicite aguda evolui para a cura com as medidas de suporte somente, há que se eriçarem as orelhas e os cabelos: - algo muito "esquisito" está a ocorrer.
Infelizmente a pressão do plantão agitado, outros afazeres mil da equipe cirúrgica e a falta de seguimento desses casos acabaram impedindo sua inclusão numa série estatística, finalmente transformando sua mera "curiosidade" fática em objeto de maiores investigações e atenção.
Outros colegas cirurgiões continuam a relatar, até o presente momento e em decorrência do contínuo estreitamento do gargalo no fluxo de atenção a esses pacientes, casos semelhantes. Óbvio é que em hospitais onde o fluxo é desimpedido tais casos não são observados já que os doentes são rapidamente submetidos a uma operação. Isso é digno de nota, e deve ser ressaltado. Afinal, foi no hospital "com gargalo" onde se começou a observar a ocorrência desses interessantes e desconcertantes fatos que desafiam o establishment e o consenso científico.
É também desconcertante e irônico pensar que nossa pobreza mental e desmazelo pela coisa pública sejam capazes de dar ensejo a que se façam descobertas que de outro modo não faríamos. Afinal, seria aético comparar séries de pacientes escolhidos aleatoriamente para o tratamento cirúrgico ou o tratamento clínico da apendicite aguda e da obstrução intestinal. Somente o nosso descaso pela vida humana poderia expor a natureza em ação. Veja a que ponto chegamos!
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