segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

CRENTES NUM dEUS NATIMORTO

          Outro dia escrevi que a verdade anda nua. Um amigo quis saber, dada a ambigüidade da frase, se a nudez da verdade seria uma característica temporária, sazonal, ou se, ao contrário, ela lhe é inata e inerente. Ao amigo devo dizer, sem medo de errar: – a verdade é permanentemente nua e sempre nua; nasceu nua e há de morrer nua. 
          Ora, os vestidos mudaram-nos a estética. De nus passamos a cobertos. Nossa nudez terá sido nossa última felicidade. A cobertura nos tirou a felicidade. E nos removeu também a inocência. Vejam os bebês. Em sua nudez são felizes e castos. Não sabem que estão nus. Na verdade, nada sabem. São puros como os pássaros que cantam à aurora. 
          Não vou escrever sobre a verdade e a mentira posto que choverão protestos a imputar-lhes uma eterna relatividade, e não me sinto capaz de tantas e tão complicadas incursões em tema tão espinhoso. O que eu queria contar aos leitores é que também uma amiga me escreveu para dizer que nosso complexo de vira-latas, descrito por Nelson Rodrigues em sua crônica intitulada “Complexo de Vira-Latas”, é-nos atávico. Ora, há uns caras aí da “esquerda” que estão a se utilizar politicamente do tal complexo para, talvez, imputar à “direita” certas falas e discursos e, tomando para si a posse da verdade, dão a entender que o Brasil e o brasileiro são capazes e grandiosos. (Escrevo direita e esquerda entre aspas porque no Brasil não há, de fato, direita e esquerda. Mas isso é outra história.) 
          O diabo é que, ao se utilizar do que escreveu o Nelson, esquecem de levar em conta o contexto de seu texto. Pois bem. Contextualizemos.
          “Complexo de Vira-Latas” foi publicada na revista Manchete Esportiva ao dia 31 de maio de 1958, às vésperas do início da Copa do Mundo na Suécia. De fato, foi a última crônica escrita por Nelson  antes da estréia do escrete naquela competição. A Seleção Brasileira de futebol já havia deixado o solo pátrio e reinava uma descrença e um negativismo geral na nação quanto às nossas possibilidades de sucesso naquele certame. Diz lá o Nelson, duvidando que pudéssemos ser tão pessimistas: -“Não será essa atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e desavergonhado”? 
          Tamanho pessimismo teria sido cria da derrota para os uruguaios em 1950, em pleno Maracanã lotado, na final. Diz lá ele: –“Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2X1... O tempo passou em vão sobre a derrota”. E conclui claramente: –“E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: – é ainda a frustração de 50 que funciona”.
          Então, estavam os 60 milhões de brasileiros da época descrentes de que pudéssemos trazer a taça. Por sua vez, o Nelson concluía e, por que não dizer, demonstrava que tínhamos todas as condições de sermos campeões. Descrevia o que acontece com o jogador brasileiro em estado de graça: criativo, habilidoso, genial, superior a todo e qualquer outro craque de qualquer outra seleção. O que atrapalharia o jogador brasileiro seria justamente o que chamou de complexo de vira-latas, “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. E ressalta: –“Isto em todos os setores e, particularmente, no futebol... É um problema de fé em si mesmo”. O conselho do cronista vem ao final: –“O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia”.  
          "Complexo de Vira-Latas" compõe uma coletânea de crônicas de futebol organizada por Ruy Castro e publicada em livro, "À Sombra das Chuteiras Imortais", em 1993 (http://www.faroldoconhecimento.com.br/livros/Educação%20f%C3%ADsica/Metodologia%20do%20futebol%20e%20do%20futsal/À_Sombra_das_Chuteiras_Imortais_-_Crônicas_de_Futebol_-_Nelson_Rodrigues.pdf). Tempos depois Nelson admitiu: -"O brasileiro não está preparado para ser o maior do mundo em coisa nenhuma. Ser o maior do mundo em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade". Vejam que após a visão de que o brasileiro se coloca inferior aos outros povos por falta de fé em si mesmo foi, depois, substituída por uma outra visão, a de que não estamos preparados para as graves e pesadas responsabilidades que outros povos assumiram e que, por isso mesmo, os tornaram grandes.
          Quem sabe o que diria Nelson Rodrigues ao ver o futebol praticado por nossa Seleção na última Copa do Mundo em terras tupiniquins... O que diria ele sobre a qualidade de nossos jogadores... De "algo único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção", nos tornamos engessados e medíocres, nada criativos, nada patriotas... O que diria ele, enfim, de nossa humilhante derrota para a Alemanha por 7x1? A verdade é que ela não nos causou tanta humilhação assim. (Em 1950 éramos os franco favoritos e jogávamos pelo empate contra o Uruguay. Perdemos de virada, o Maracanã lotado: – 199.854 pessoas estavam lá àquele dia, o maior público que o Estádio Mário Filho viu até hoje.) 
          E que será que diria o Nelson?, um descarado anticomunista, um deslavado reacionário, um ferrenho defensor da liberdade de expressão, um homem de imprensa livre, patriota convicto e atento em suas crônicas à constante ameaça comunista que nos ronda desde que a revolução bolchevique eclodiu e saiu vitoriosa na Rússia e depois na China? ao ver o estado lamentável em que nos encontramos? Um país sem justiça, sem segurança, sem saúde, sem educação, sem livre concorrência, sem meritocracia, onde a corrupção nas altas esferas atingiu patamares intoleráveis e repugnantes... 
          Ah, minha cara amiga simpatizante!, o atavismo que nos prende ao atraso vem da colônia, vem da Matriz, de fato, como todo bom atavismo. Há quase um século nos persegue o comunismo, tentando nos incrustar de vez as suas garras mortais, dadas as nossas tendências primevas, herdadas de nossas proibições primevas, de nossas explorações primevas, de nossa improdutividade primeva, de nossos primevos assistencialismo e paternalismo... Tornamos-nos perfeitos, um primor de nação, um primor de consciência social da necessidade do falido comunismo. Ele está morto, mas nós ainda estamos aqui. Sabe-se lá por quanto tempo. Hoje nossas tragédias demonstram que, de fato, não temos vocação para sermos sérios. Seria até legítimo dizer que, de fato, voluntariamente nos posicionamos inferiormente face o resto do mundo. Não por falta de fé em nós mesmos, mas por adorarmos um deus natimorto. Mais de 54 milhões de adoradores.   

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