No
velório, indignava-se:
–
Como pode? como pode?...
Profissional
da saúde, não entendia como é possível que o sujeito morresse aos
61. Digamos sem delongas: – era psicóloga. Eu, em minha vetusta
ignorância, julgava que o psicólogo seria o profissional dotado de
todas as possibilidades de adaptação e entendimento. Por isso
impressionou-me essa brutal incompreensão sobre a morte e o morrer.
Justiça
se faça – o morto tinha todas as credenciais para morrer. Sofria
do coração e, disseram-me, não se sabia por qual razão não tinha
sintomas. Era completamente assintomático. Tomava lá seus remédios,
que eram muitos, e vivia a vida como se gozasse a saúde de um
adolescente viril e atlético. Os exames, entretanto, mostravam um
órgão debilitado e frágil. Concluí, recorrendo a meus parcos
conhecimentos de cardiologia, que ao morto só houvera uma saída em
vida – o transplante. O resultado foi a súbita morte. Morreu no
jantar, diante da mulher e dos filhos.
É
ate compreensível que não se entenda e não se aceite uma morte
inesperada. Contudo, não seria esse o caso. O acometimento de órgão
vital por doença grave é uma ameaça permanente, há de se convir.
E, a propósito, há a tal “morte inesperada”?
A
morte é sempre inesperada porque em nossas equações diárias não
a colocamos como constante de equilíbrio. (Ou seria desequilíbrio?)
A equação da vida
abarca um sem-número de variáveis e apenas uma única e solitária
constante – a morte. Leva-se em conta, a todo instante da vida, as
inúmeras variáveis nela contidas e retira-se-lhe sua única
constante, sua única certeza, único destino de todos. Essa ausência
por nós imposta é a razão de nosso horror e de nosso inconformismo
quando a inexorabilidade sobrevém.
O
que consideramos a impossibilidade no dia-a-dia mostra-se cruelmente
possível e real em único dia... Como o número de Avogadro cuja
perturbadora constância se repete nos moles de cada elemento, também
a morte não muda sua perseverança na existência de todo ser vivo.
Todo dia é dia, toda hora é hora de morrer. Morre-se a qualquer
idade; morre-se em criança, em jovem, em adulto e à velhice. Ela
disso sabia e era justamente isso o que a estupefazia.
Comportava-se
como nos comportamos à infância. Para o infante não existe a
morte, a própria ou a de quem quer que seja. Na infância a
eternidade é a certeza natural. Como o casal primevo que em sua
inocência desconhecia a guerra feroz que então se combatia entre as
potestades do Céu, a pureza da criança a preserva da ciência da
morte, a consequência do grande conflito. Séculos e séculos da
existência da morte não foram capazes de nos preparar para ela. Por
isso dizia:
–
Não é possível... não é possível...
E
seguia indagando:
–
Como é que pode? como?... como?...
Dali
a poucas horas o morto descia à campa, no ritual mais antigo que a
humanidade conhece. E os atônitos se recolheram ainda sem entender o
mistério da morte de quem ainda há pouco vivia.
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