quinta-feira, 16 de junho de 2016

A CACHAÇA VIRTUAL

Tudo que fiz foi digitar, na tela do telefone portátil, o pedido ao amigo:
–“Bacana, bate aí a foto da cachacinha”...
Demorei uns poucos segundos em silêncio e continuei:
–... “e da bandinha do limão. E não esqueça de incluir o copinho”!
Ele respondeu sem demora:
–“Já, já... deixa a linguiça ficar pronta”.
Vejam vocês como a modernidade virtualmente nos leva à intimidade dos amigos sem que precisemos sair do conforto do lar. Quase me arrependi. “Vou já à casa do Bacana tomar essa cachaça com ele”, pensei, tentando amainar o mau sentimento do arrependimento. Afinal, nada fizera para me arrepender. Em tese nos arrependemos das más ações, mas cada vez mais é possível que nos arrependamos das inações. Seria esse o caso comigo.
Tudo isso ocorria na rede social. Todos sabem – aos dias de hoje a rede social é palco de “fatos”. As coisas realmente “acontecem” na rede social.
–“Então, fotografa o tira-gosto também”!, completei, ainda não tendo resolvido o conflito que se revolvia em mim. Queria ver a linguiça, digo, o tira-gosto do Bacana.
Minutos depois a foto do aparato dominical de meu amigo: uma garrafa de Red Label, um prato com frutas diversas cortadas em pedaços, e um copinho desses em que se bebe cachaça.
Estranhei. Por isso perguntei:
–“Vais hoje de uísque? Quedê a cachaça”?
Ele explicou que havia acabado a “branquinha”. Por isso bebia o uísque. Sem explicar onde fora parar a linguiça, aparecia o prato com as frutas. O tira-gosto não era mais a linguiça, mas as frutas. É bem possível que não mais houvesse linguiça na despensa do Bacana. Dali a pouco nossa comunicação cessou e o Bacana foi encarar sua libação.
Faço um breve relato desse episódio hoje em dia tão corriqueiro apenas para concluir que a virtualidade nos inclina a um dos maiores pecados, dizem até um pecado capital – a preguiça. Sim, a vadiagem é a oficina do diabo, é o que dizem. E por que a vida virtual nos predispõe a essa mazela vergonhosa e digna de asco? Basta ler as linhas acima e terão a resposta.
Para estar pessoalmente com meu amigo enquanto ele preparava com todo o zelo o seu repasto dominical, teria que envidar o mínimo de esforço: – vestir uma roupa apropriada e dirigir o carro até onde ele estava. O que fiz? Resposta: – nada fiz. Optei pela zona de conforto que é a maldita virtualidade. Em poucas horas o sol se pôs e acabou o dia. Se morresse o amigo no minuto seguinte – que Deus o livre! – estaria eu a contorcer-me em remorsos atrozes.
Assim, digamos logo, de uma vez – foi o entorpecimento da vadiagem que me subtraiu a energia necessária para estar com o amigo. Havia vontade? Certamente que sim! Havia motivos? Sem sombra de dúvidas! E por que não fiz o que deveria ter feito? levado pelo genuíno ânimo e por justificáveis razões? Porque sou um legítimo veste-calças, eis a resposta! Os estimados e raríssimos leitores hão de entender que o mea culpa é das maiores catarses que o ser humano pode experimentar. Esta é a razão de tão destemida confissão.
Outro dia, não faz muito tempo, quebrou-se-me o telefone portátil. Começava a noite. O defeito, ao que parecia, era gravíssimo. Daquele momento em diante senti-me isolado do mundo. Foi como uma morte. Sim, eu estava hermeticamente trancafiado em esquife de aço. Imaginava que o telefone portátil tivesse as dimensões de um desses esquifes modernos e que eu estaria em seu interior, jazendo sem vida. Já experimentava os agudos dentes da flora cadavérica a desmontar-me a carcaça. Queria gritar para o mundo, para a humanidade: –“Eu estou aqui”! A voz seria muda, não me sairia um único e mísero som. Cheguei-me à janela virada para o nascente por onde via a selva de pedra, as luzes acesas, as pessoas indo e vindo na rua... quis gritar.
Se gritasse, certamente me ouviriam. Os vizinhos, os transeuntes, os vivos, todos me teriam ouvido e ainda assim a sensação de incomunicabilidade não arredava de mim; antes se acentuava e me angustiava. Concluí que não existimos para quem nada somos. Sim, gritar ali na esquina, qualquer esquina deste lugar, seria como gritar nas profundezas das águas onde nos afogamos. Não haveria som, não haveria empatia, não haveria vida – esvaía-se tudo.
Foi quando caí em mim. Tão vivida e vívida é a vida virtual de quem a vive que, se ela acaba ainda que momentaneamente, tem-se a sensação de morte em vida, de isolamento e exclusão completos. Acomodar-se no conforto do lar e em contato com o mundo e a vida virtual parece suprir a necessidade da vida social. Já o contrário não se pode afirmar. Sem a vida virtual nada somos. Caí no sono atormentado por essas intrigantes lucubrações e sentindo uma tristeza enorme por fazer parte dessa coisa inumana que é a vida virtual.   

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