Vejam vocês que a vida é o grande lance. Ninguém
quer a morte, só se quer a vida. A vida é o grande objetivo de todos os vivos,
ainda que não se lembrem que um dia nada foram, um dia não existiam. Digo “um
dia” mas poderia dizer “por anos não existiram”, ou “por mil anos não
existiram”, ou ainda “por dez mil anos não existiram”, tanto faz... Quem há de
se lembrar desses anos, os anos em que não eram? Ninguém, eis a verdade nua e
crua. Antes de sermos, não éramos, nada éramos. Mesmo uma casa, ou um automóvel,
ou uma ponte têm uma existência virtual ou planejada na mente de seus
idealizadores. Fazem-se plantas, projetos, maquetes onde se pode antever a
estrutura que um dia virá a ser. Quanto ao ser inexistente, nada se sabe sobre
ele ainda que esteja concebido no ventre materno.
Vindo à luz o ser,
estará repleto de todas as potencialidades e possibilidades. O que dele será
ninguém poderá dizer, de modo que a vida é, antes de mais nada, a maior das
incertezas, a maior das loterias. O sujeito surge da inexistência plena para
uma existência relativa e frugal ao início, após o que tornar-se-á um ser a
deixar seus rastros e feitos em sua exígua e pífia existência. Eis aí a vida.
Chegada a morte, será lembrado enquanto viverem os que o conheceram, os que o
amaram e o odiaram; os que beneficiou e aqueles cuja vida desgraçou. Depois,
mortos também estes, voltam todos ao esquecimento e à inexistência plena.
Fácil é concluir
que a não existência é, em termos temporais, o grande lance. E a morte? O que
será a morte? Ora, a morte é apenas e tão-somente o tempo da inexistência que
se segue à vida. Tendo vivido, o sujeito ganhou certidão, identidade, cê-pê-efe
e, quiçá, carteira de motorista. Terá um túmulo onde voltará a ser pó, ainda
que na laje conste seu nome, seu tempo de vida e, talvez, algum dizer, uma
fotografia, um verso poético, uma frase bíblica... Alguns há, ainda, que sobre
seus despojos se constroem verdadeiros mausoléus e maisons. Exceções a esses desafortunados ex-viventes são os que
presumidamente perecem sem que se lhes ache o cadáver, ou aqueles cujo corpo
sem vida evapora-se instantaneamente à hora da morte.
Há, entretanto,
mortos cujos corpos servem à vida, à procrastinação do evento final, à ciência
do homem em sua busca incansável e interminável pela explicação da existência.
Sim, há mortos cujo processo de desmonte de seus corpos ou partes dele são
interrompidos por útil ao estudo e não somente ao estudo, mas à guinada de rumo
na vida de certos viventes. Sim, há cadáveres que são verdadeiras inspirações
e, por que não dizer, verdadeiros encantos.
Dirá alguém que
perdi o juízo e que estou a brincar com coisa séria, mas posso garantir – há
cadáveres que inspiram vidas. Sei, sei, não é algo que se diga comum,
corriqueiro, diário. Há de ter acontecido pouquíssimas vezes desde o tempo em que
o homem surgiu no mundo, mas é fato, posso lhes assegurar. Para nosso regozijo,
se é que o acontecimento constitua motivo para tal, ocorreu aqui em nossa
cidade anos atrás, coisa de 30 anos ou pouco mais. E – pasmem! – o protagonista
é um querido amigo, coisa que me coloca na lista dos raros seres humanos a
testemunhar, ainda que temporalmente longe do fato, esse lampejo de vida que a
própria morte providenciou.
O que ocorreu foi o seguinte. Ivan Machado
estava para começar o último ano do curso de engenharia de computação da
Universidade Federal do Ceará. O pai, sujeito zeloso em tudo que se
relacionasse ao futuro dos filhos, já mexera os pauzinhos para empregar o rapaz
dali a um ano. Era um homem muito bem relacionado, de modo que tinha a coisa
como já resolvida. Disso podia descansar. Era no tempo do boom da informática.
Eis que certo dia vinha o Ivan voltando para
casa após assistir ao treino do Ceará Sporting Clube, seu time do coração.
Morador do Rodolfo Teófilo, o amigo ia a pé ao Estádio Carlos de Alencar Pinto,
no vizinho bairro Damas, sede do clube futebolístico. Neste dia Ivan resolveu cortar
caminho passando por dentro das instalações da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Ceará. Foi quando se deparou com o burburinho que o fez
estancar. Eram vozes que vinham de dentro de uma espécie de galpão ou depósito
no campus. O portão de acesso estava semifechado e a curiosidade do amigo pedia
um esclarecimento urgente. Sorrateiramente embrenhou-se pela abertura e ganhou
acesso por uma passagem mais ou menos estreita a uma ampla área repleta de
mesas de cimento sobre as quais repousavam pessoas de aparência esquisita.
Sobre cada uma dessas pessoas debruçavam-se outras tantas vestidas em jalecos brancos
e que usavam luvas de borracha, gorros e máscaras. O barulho aumentava à medida
que ele se aproximava do enorme salão onde aquelas pessoas se moviam ou se
mantinham atentas sobre os corpos dos que estavam deitados. Um odor forte e
nauseabundo pairava no ambiente.
Chegou a um ponto
próximo de uma das mesas e pôde, então, decifrar o que se passava. O que estava
sobre as mesas eram cadáveres e os vestidos em jalecos eram os alunos do curso
de medicina. Estavam dissecando os cadáveres na aula de Anatomia Humana. O odor
se devia aos tanques de formol onde ficavam imersos os corpos, guardados, após
se prestarem à dissecação.
Ivan estava
extasiado ante àquele cenário medieval, ao mesmo tempo que era atraído a ele.
Saiu andando entre as mesas, misturado aos alunos que discutiam os achados e
conversavam entre si, ao mesmo tempo que bebia estupefato as imagens daqueles
defuntos de aspecto enegrecido tendo seus corpos invadidos por estudantes
ávidos por desbravar a geografia do corpo humano.
Ivan perdeu a noção do tempo. Quando deu por si já haviam se passado duas horas desde que adentrara o recinto. A tarde caía lá fora.
Procurou a saída, a mesma por onde entrara. Antes de abandonar o salão,
virou-se mais uma vez como a se despedir. De sua boca disse, de si para si
baixinho: –“É isso o que quero fazer o resto da minha vida – quero ser médico”!
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