sexta-feira, 27 de julho de 2012

A pujança do caos


            Não sei quem disse aquela que considero a frase mais atual e que melhor define o que hoje acomete as grandes cidades brasileiras, particularmente a nossa. Refiro-me ao trânsito. Melhor dizendo, refiro-me ao que se resolveu chamar de “mobilidade urbana”. O que acomete atualmente nossas cidades é uma enorme e abissal dificuldade em se locomover através delas. Eis aí tudo.
            A frase, dita por não sei quem, diz, não textualmente, que não é melhor para a mobilidade urbana quando o pobre pode comprar carro, mas quando o rico usa seu transporte público. O que acontece presentemente é justamente isso: - todos puderam e ainda podem comprar seu carro. Crédito abundante a juros mais baixos do que até então havíamos visto fez a festa do consumo. Nossos comunistas, digo, nossos socialistas crêem piamente que ter é o grande lance, o grande negócio. O sujeito precisa ter para ser feliz. Assim, todos puderam ter carro, um item considerado como sinal de pujança financeira pessoal. Segundo nossos socialistas, todos estão muito felizes. Sempre surpreendo vários deles felizes nos engarrafamentos. Quando se despedem dizem: -“Bom engarrafamento pra você!”
            Após mais de 13 anos – sim, 13 anos! – tornou-se parcialmente utilizável o metropolitano de Fortaleza, com seus 15 km. (Os chineses fizeram uma ponte de 42 km em cerca de 4 ou 5 anos, se bem me lembro.) É linha única. Programam-se mais quatro linhas, num total de cinco. Usando um silogismo suspeito, digamos que em 52 anos veremos o metropolitano de Fortaleza funcionando plenamente.
            As linhas de ônibus cobrem quase toda a cidade, mas sofrem de deficiências crônicas aparentemente insolúveis porquanto já são conhecidas há anos e ninguém foi capaz de encaminhar  uma solução.
            Assim, carros e mais carros todos os dias entrando na malha, com sua aparente incapacidade de expansão, já que essas obras provavelmente levariam a cidade à paralisação completa; calçadas e espaços públicos invadidos diariamente por feiras livres; permanente falta de planejamento sobre o que fazer agora e no futuro – eis aí o cenário atual. Onde estaremos em cinco anos? Não é difícil estimar. Há quem considere que chegou o caos; há quem diga que ele ainda está por vir. Particularmente penso que já se instalou – o que está a caminho é algo que não se faz idéia. Como diria a Suplicy, penso seriamente em relaxar e gozar, como no estupro. Nossos socialistas já estão gozando até com a brisa de fumaça dos caminhões.
            Eu comecei falando do trânsito mas não era dele que eu queria falar. Queria falar do que o gestor faz no hospital público. Devo dizer que o gestor público é uma figura das mais descartáveis da atualidade neste vasto país. A razão é simples – qualquer um está apto a ser gestor. Somos quase 200 milhões de gestores. No Instituto Doutor José Frota, por exemplo, o diretor clínico é trocado a cada 15 minutos e assim os chefes que lhe são subordinados. O que eles não conseguem lá mudar nem resolver são os reais problemas da instituição, aqueles que lhes gritam diuturnamente às portas, como as incômodas verdades de cada um de nós que teimam em permanecer e nos incomodar.
            De fato, e sem muita firula, digamos que o Instituto Doutor José Frota, como um hospital que atende as vítimas de todos os tipos de violência – acidentais ou provocadas –, reina absoluto como um termômetro social em qualquer critério. Vejam que me refiro à população que ele atende. Todos sabemos que estamos a superar as zonas de guerras em número de homicídios. Os homicídios de vítima “imediata” não vêm ao Instituto Doutor José Frota – vão ao necrotério; os de vítima mediata eventualmente se tornam pacientes do hospital. E há as vítimas que sobrevivem às suas agressões ou acidentes, mutiladas ou totalmente recuperadas; entre esses dois extremos vítimas com um amplo espectro de incapacidades e seqüelas temporárias ou permanentes.
            Vejam que o acidente é um evento inesperado, quase uma exceção. Ora, se nos referirmos ao acidente de motocicleta, veremos que muitos não podem nem devem ser considerados “acidentes”. As condições criadas pelos pilotos são tão perigosas que o risco a que se expõem seria considerado “proibitivo”. Em outras palavras, esses pilotos são suicidas enrustidos e – pior! – assassinos assumidos. Assim, seria mais honesto dizer que os acidentes são raros no hospital – o que se recebe mesmo por lá são os efeitos de um banditismo generalizado.
            Cresci ouvindo dizer-se que o povo era inculto e, portanto, manipulável. O povo, pobrezinho!, não sabia escolher seus representantes porque não reunia o cabedal de conhecimento suficiente para fazer uma “boa” escolha.
Eis, então, para provar que o povo é santo de vitral com halo luminoso e tudo, que a assistente social adentra uma enfermaria do setor de Pediatria do Instituto Doutor José Frota onde estavam crianças vítimas de acidente automobilístico. Eram seis leitos e, deles, cinco eram crianças envolvidas em acidente de carro. Apenas um leito era ocupado por uma criança do sexo feminino de cinco anos de idade que caíra de uma árvore. A assistente social chamava as mães para lhes explicar o que era o DPVAT, quem teria direito e como proceder para recebê-lo. Terminada a exposição, a mãe da criança que caíra da árvore se aproxima da assistente social e pergunta se ela não teria direito ao seguro. A profissional explica que não, que aquele seguro era específico para vítimas de acidente automobilístico. A mãe, braços cruzados, cabelos desgrenhados e esturricados, num vestido de chita comprado no Beco da Poeira, vira-se para a criança, que jazia ao leito com a perninha imobilizada em aparelho gessado, e grita: -“Mulher!” – vejam bem: mulher! – “tu devia era ter sido atropelada!”          

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