Ando
na busca de um sofrimento. Sim, preciso urgentemente sofrer. Tenho escrito numa
rarefação de atmosfera lunar. A razão é óbvia – não tenho sofrido o bastante.
Uma amiga que
me lê já não me lê. Ou, melhor, quase não me lê. E, se me lê, nada diz, nada comenta.
Sendo franco, ela me lia. Sei que me lia porque dizia que me lia. E dizia
porque eu escrevia o que a enlevava.
Uma outra foi
mais específica e mais direta. Disse-me de supetão: -“Não gosto quando escreves
sobre a Unimed!” E tudo porque houve um tempo em que a Unimed Fortaleza me era
uma obsessão. O tempo passou, fechei o consultório, a Unimed deixou de me fazer
sofrer. Ontem mesmo encontrei no hospital o meu amigo Sales, que se queixou da
Unimed. Fez um rosário de reclamações, e por fim concluiu: -“Tá difícil! Tá
difícil!” Eis aqui a mais soberba prova de que o escritor precisa sofrer para
bem escrever, ainda que certos temas só interessem a um número de pessoas
equivalente à torcida do Ferroviário. (Estima-se que o Ferrim, carinhoso
diminutivo do Ferroviário e tradicional escrete do futebol cearense, tenha hoje
algumas poucas centenas de torcedores.)
Minha amiga
que me lia, minha ex-leitora, gosta dos temas intimistas, da prosa poética, da
leitura que fala ao coração. Conclui-se, sem a menor sombra de dúvida, que meu
coração vai muito bem, obrigado. Se dele viesse um sofrimento que fosse, uma
leve angina pectoris que fosse, eu havia de me derreter nas letras e em textos
espectrais e maviosos.
Dirão alguns
que transpiro certo apelo masoquista ao invocar um sentimento tão abominado.
Nada é mais doloroso do que a dor não-física, a dor do espírito, a dor que
transcende a matéria. Todavia, há que se lembrar que, aparentemente, tudo é
química. As prostaglandinas provocam a dor física ao passo que a supressão das
endorfinas e dopaminas suscita o que chamamos “dor da alma”. Aquela age aqui na
periferia; estas, lá no encéfalo; aquela é produzida, num teleológico devaneio meu, para provocar a dor; estas,
por sua vez, têm sua produção suprimida para alcançar o mesmo efeito. Assim,
detenham-me as endorfinas e dopaminas!
Não se deve
brincar com certas coisas, e de fato não anelo sofrimento algum. Minha amiga da
poesia que leia os que sofrem, que leia os angustiados. Há uma enormidade de
escritores sofredores. Conheci um que de tanto sofrer, mas de tanto sofrer,
escrevia sempre o mesmo. Suas frases e períodos eram tão profundos que para
alcançá-los eu precisava pular do quinto andar ou, se não isso, era assaltado
por vontade incoercível de praticar tal ato. Como não tenho inclinações
suicidas, parei de lê-lo. Ademais não se deve esquecer que há o sofrimento
fabricado, igual a choro de atriz de novela. O sujeito imagina uma enorme dor e
põe-se a escrever carpindo mais que profissional de velório.
Vejam o que
escrevi ontem, por exemplo. Nada havia no texto que minha ex-leitora saia a ler
e, se o fizesse, seria com esgares enojados e contrações labiais. Falei dos
idiotas de nossas barbas, nos quais se tropeça tão logo se abra a porta da rua.
(Sou do tempo em que a porta da rua era mais conhecida como a porta “da
feira”.) Falei também de como escolher tomates quando se vai ao mercantil. E
brá! Que fez ela até agora, passadas várias e várias horas da divulgação do
texto? Resposta: nada. Não deu um pio.
O diabo é que no
artigo de ontem avisei que relera dois textos do Nelson dos quais muito gosto,
e mencionei apenas um deles. Esqueci-me de falar do outro, que tem muito a ver
com o primeiro, cujo título é “Os idiotas da objetividade”, de 22.02.1968.
Basicamente é o seguinte. Antes, lá pelos idos de 1920, os jornais estampavam
emoção na manchete e na notícia. Se alguém matava alguém, a manchete vinha
tinta de sangue. E de lágrimas. E de indignação. E repleta de todas as
possíveis emoções suscitadas por um assassinato bárbaro e cruel. Abusava-se dos
pontos de exclamação nas manchetes.Tempos depois surgiu o revisor, que
reescreve a notícia de forma puramente informativa, tipo “MULHER MATA O MARIDO E VAI AO CABELEIREIRO”; e dentro da matéria diz
o que ocorreu, quando e onde – e estamos conversados. Diz lá o Nelson, em suma:
“Na velha imprensa as manchetes choravam com o leitor”.
Eis porque me
causam repúdio as manchetes da imprensa local com sua idiota objetividade
quando a indignação anda tão necessitada por mais e mais gente. Se os jornais não
porejam a indignação do corpo social em tantas e tantas questões que ora nos
afligem, quem o fará? Estamos precisados de ver a indignação em vivos pinotes
nas manchetes de nossos jornais. Sua exposição ao alto delas seria aliciadora e
arrebatadora de mais gente que está entorpecida no mar escaldante de tantas indignidades
que pululam sem resistência.
Volto à amiga
ex-leitora. Será que para ela me tornei um idiota da objetividade?
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