Estou chocado. Melhor dizendo, estou estarrecido. Sinto
uma espécie de letargia e dormência em meu corpo, como se fosse desfalecer. Há
em mim, também, uma profunda tristeza, um desgosto enorme, uma sensação de
perplexidade e de incredulidade. Há dias venho tentando, num exercício mental
de otimismo, olhar a realidade sob outra óptica, sob novos ângulos, ver o que
de bom ainda há para se ver. Mas agora, nesse exato momento, tudo o que me
invade é aquela sensação de incredulidade e de perplexidade, além do recrudescimento
de todas as outras visões nebulosas que me assaltam há dias.
Sou um sujeito de espírito e mente alvissareiros. Não me
abato com facilidade. E, se algo me faz fraquejar, logo seu efeito se dissipa
como uma sezão de um só tremor. Sou dado à boa pândega, à pilhéria, ao riso, à
boa e desinteressada conversa com amigos cuja amizade cultivo há mais de 40
anos. Mas hoje, agora, sinto um vazio enorme, como se, repentinamente, fosse
alvo de uma orfandade atroz.
Entretanto, fez-se, de fato, um outro e mais jovem órfão.
Mais um órfão da violência que grassa solta, lépida e fagueira, em nossa
cidade. Quem é o jovem órfão? Um bebê de apenas seis meses de idade. E não
somente um novo órfão, mas também uma nova vítima. Sim, vítima de uma arma de
fogo, de uma bala que lhe varou o ombro cujos ossos ainda nem ossos são. Está internado
ali, no hospital, no hospital que ninguém visita, donde a nobreza-burguesia vez
ou outra se utiliza; aqui nessa cidade onde o inferno parece ter baixado, feito
pousada, feito estadia por sabe-se lá quanto tempo.
A bem da verdade, o bebê não é a primeira criança que lá
internou vítima de outra bala, de outro monstro, criado pelos monstros que o
armaram, que já nem tão indiretamente o armaram; os monstros que estão
encastelados em nossos palácios, gabinetes e plenários. (De que nos servem hoje
os contextos?) Várias outras crianças lá baixaram e, como se vê, continuam
baixando. Certeza é que assim continuará, posto que, quem quer que seja o
monstro a puxar o gatilho, ele está à solta, livre para agir, impedido apenas
por sua vontade de eventualmente acordar ao dia seguinte sem a vontade de
matar, de ferir, de fazer sofrer.
A orfandade deste bebê decorre da morte de sua mãe, que o
segurava ao colo no momento da agressão. Observem que o monstro é mesmo e, de
fato, e, com efeito, um monstro. Nem mesmo a pequena criança indefesa o impediu
de prosseguir em seu intento. Disparou sei lá quantos tiros. Eu quis descer à
enfermaria das crianças para saber melhor do fato, mas algo me prendeu, o
terror talvez. Temia açoitar ainda mais as nuvens da tempestade que vem
abatendo o meu espírito diante de tanta insensatez. Mas – pobre de mim! – a privação
da visão da pequena vítima de nada adiantou, como bem podem observar ao início
deste lamento.
Um grito entalado na garganta me sufoca. Uma lágrima que me corresse sobre a face não seria capaz de me aliviar a dor. Sei, sinto: - apenas o brado real desse grito me destampará do peito a tonelada de minha ira que quer ganhar as ruas da cidade e acusar os monstros que querem a nossa morte, a nossa vida, a nossa indignidade. E nem farei a comum pergunta que se faz quando o “até” e o “quando” nos interessam. Ela me assusta ainda mais...
Um grito entalado na garganta me sufoca. Uma lágrima que me corresse sobre a face não seria capaz de me aliviar a dor. Sei, sinto: - apenas o brado real desse grito me destampará do peito a tonelada de minha ira que quer ganhar as ruas da cidade e acusar os monstros que querem a nossa morte, a nossa vida, a nossa indignidade. E nem farei a comum pergunta que se faz quando o “até” e o “quando” nos interessam. Ela me assusta ainda mais...
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