Eis que ao último dia de férias me toca o telefone portátil. Era o meu amigo Guimarães. Saudei-o com legítima e genuína efusividade e contentamento.
Quis saber o que andava fazendo ultimamente. Contei-lhe das férias em Paris. Ele muito se alegrou e me parabenizou pela escolha.
Lá pelas tantas disse-lhe: - "A que devo a honra"?
Respondeu: -"Tenho uma boa pra te contar".
Há tempos não falávamos.
Surpreso, redargui: -"Que bom! Estão rareando as boas notícias, meu velho"...
E passou a relatar a história do ponto eletrônico do hospital. Concluímos que os burocratas do governo são todos, sem exceção, uns trogloditas sem tirar nem pôr. Onde já se viu? Na incapacidade de resolver os reais problemas que nos assolam, o que fazem? Oprimem o servidor público. Resultado: incompetência para resolver os problemas e competência para mexer no bolso do servidor. Na prática, o povo, que em última e primeira análise é quem deveria usufruir dos serviços, segue sem nada usufruir.
Súbito, elogiou-me rasgadamente, e até fazendo uso de um hipocorístico:
-"És um sábio, Fernandinho"... E continuou sem dar tempo a meu pedido de explicações: "Fizeste muito bem em fechar o consultório".
Permaneci calado enquanto ele destilava sua decepção e exaspero.
-"Pago, por mês, dois mil e quatrocentos reais de INSS de minhas duas funcionárias. Só de INSS! Percebes"? Fez uma pausa para suspirar e retornou: -"Nem falo das outras despesas, que essas é que me matam mesmo. Um absurdo! Um absurdo"!
Fui solidário, mas julguei apropriado injetar- lhe um mínimo de estímulo:
-"Meu chapa, você precisa continuar. Imagina se todo mundo resolve parar e fechar o consultório"? Esperei para lhe dar tempo a pensar. Continuei:
-"Já viste os garis recolhendo o lixo na madrugada? com aquelas roupas imundas? naquele caminhão podre com aquela máquina remoendo e triturando aquela fedentina? E se não houvesse quem estivesse disposto a fazer aquilo? o que seria de nós, das ruas, da cidade"?... Completei: -"Por uma mixaria"!
A mim me pareceu que ele nada escutara do que eu acabara de falar. Emendava o discurso com mais queixas:
-"A cidade 'tá cheia de especialistas; o povo não enriquece e continua sem plano de saúde; a concorrência aumenta; os valores pagos perdem força por conta da inflação, e por aí vai... A coisa 'tá preta, meu filho"...
Seu desânimo era indubitável. Concordava comigo mesmo sem nada lhe ter dito à guisa de lição de vida. (Quem sou eu para dar lição de vida a quem quer que seja?)
-"Estás certíssimo... É preciso viver... Não vale a pena esse corre-corre sem fim... E a saúde? Só se dá conta quando se tem um piripaque..."
Seu desabafo chegava ao fim. Disse: -"Vou indo, meu querido amigo. Tenho aqui uns doentes para atender". E assim nos despedimos, ele para seguir fazendo o que não mais quer, eu para gozar o improdutivo ócio de meu último dia. (Ainda bem que ele foi atender os doentes!)
Amanhã tudo será como antes. O homem só descansa quando morre. (Quem foi mesmo que disse isso? Acho que foi o Nelson...)
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