"É melhor ser cachorro aqui ou em Fortaleza"?, era o que eu pensava enquanto observava o cãozinho brincando nos jardins da Marechal Juin, em Paris. (Acho que não disse que estou em Paris, mas já, já vou dizer.)
Pois bem: - estou em Paris. Tudo o que se diz, no Ceará, sobre uma viagem que se faz ganha uma dimensão prosaica e causa uma tremenda impressão de petulância. Por isso, vou logo avisando aos navegantes: falarei às pampas, a partir de hoje, sobre essa viagem. Agüentem os que puderem. Os que não puderem suportar que não me leiam, ora bolas!
A bem da verdade, não falarei da viagem. Falarei do que vi na viagem, e também do que nela não vi. (O que tenho visto em meu rincão é tão pavoroso e vergonhoso que chega-se a um ponto em que é urgente que se pare de ver.) Assim, repito, não falarei da viagem. Caso contrário, demonstraria a tão comum empáfia de nossos viajantes.
O cachorro brincava com seu dono, como eu ia dizendo. E a ambos eu invejava. Com efeito, já fazia a seguinte reflexão: - há de ser melhor ser cachorro em Paris do que ser gente em Fortaleza. Vejam que desisti de comparar cachorros parisienses e cachorros fortalezenses. E por uma razão inusitada: - cachorros parisienses vivem bem melhor que nós, pobres e sofridos fortalezenses. Mesmo o cachorro de nossa mais refinada madame (?) vive pior que o mais miserável mendigo de La Defénse. (Uma amiga me sugeriu ir a La Defénse, mas por lá só passo ao vir do Charles de Gaulle. Nada há lá para se ver, posso garantir.) Sim, porque não sei se sabem, mas Paris está repleta de mendigos. Essa quantidade absurda somente é absurda para padrões parisienses, de modo que, para padrões brasileiros e, em particular, para padrões fortalezenses, a taxa de mendigos por aqui tende a zero.
Vejo mendigos jovens, vejo mendigos idosos, assim como vejo mendigos sóbrios e mendigos bêbedos, homens e mulheres. (Falando assim dou a impressão de ter, a princípio, mentido quanto a seu número.) Todos têm bons agasalhos e o que comer, ainda que seu alimento fosse obtido pela atividade de esmolar.
Todos os dias à esquina de de Villiers com de Chatelier, à saída da boulangerie onde compro a tradicional baguete, está um jovem bem apessoado, recostado ao poste, acocorado e encolhido sobre si mesmo, mais agasalhado que um esquimó, mantendo à frente de si a cestinha. Meu olhar furtivo sobre ela escrutina a féria até o momento. E me saúda, comedido: -"Bon jour, monsieur..." Seria seu estado constrangedor a causa dessa delicadeza? A cestinha está ainda quase vazia, embora vá adiantado o dia. São, de fato, poucos os mendigos por aqui. É a presença constante desse jovem à porta da padaria que me causa essa alucinação numérica, talvez.
O mendigo de minha terra é um miserável da cabeça à sola dos pés. Cultiva suas úlceras e seu crânio afundado como meio de vida, e luta com todas as suas forças a que lhe tenham dó. Se lhe quiserem levar ao médico, não quererá ir. Preferirá manter seu deplorável estado, uma vez que nossa religiosidade abjeta lhe permita obter o que quer. Mendigo lá não é um estado: - é uma profissão. O cãozinho daqui, de Paris, tem melhor caráter, para nossa bendita tristeza... O mendigo, aqui, ainda é gente e sente-se digno. O cãozinho jamais o suplantará em merecimento de cuidados, ao passo que o mendigo fortalezense faz questão de ser o que é porque seu cérebro apodreceu faz tempo.
Vejam vocês como é contagiante o que ocorre por aqui, assim como o é o que por aí vai. Aí o sujeito está como que morto, como um zumbi. Somos todos, aí, uma população de zumbis, mesmo os que não esmolam. Até nosso hedonismo nos é mortal, posto que nos iluda quanto à nossa ínfima vitalidade. Somos, aí, cada um de nós, muito pouco, muito menos, do que poderíamos ser. Assim, está perfeitamente explicado por que é melhor ser cachorro aqui do que ser gente aí. Os cães daqui são felizes. À gente daí – sou o primeiro a admitir! – só resta o hedonismo.
Aí está o que eu queria dizer, para começar, e enquanto cá ainda estou.
Paris, 13.07.2013
Paris, 13.07.2013
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