Um dia desses perguntava-me a mim mesmo para que serve a vaidade. E já me dava a resposta dizendo que servia para semear a discórdia, a empáfia, etc.etc. Pois bem. Vejam agora um exemplo fosco das entrelinhas da vaidade, o que elas podem representar, e quão hediondas elas se configuram. Aconteceu comigo mesmo há cerca de catorze a quinze anos, quando ainda exercia o cargo de cirurgião geral do pós-operatório do setor de Emergência do Hospital Geral de Fortaleza.
O DILEMA
Chega-nos à enfermaria uma linda jovenzinha de apenas quinze aninhos. Uma icterícia ferrenha; olhos amarelos assustados, indagadores, perscrutadores; o rosto delicado, angelicamente belo; o corpinho bem desenhado já tomando formas de mulher e o andar hesitante, quase oscilante. Nenhuma história de consumpção, doenças graves prévias, nada. Exames complementares sugerem um tumor na confluência dos ductos hepáticos. Colédoco não visualizado, fígado congesto.
Os clínicos pressionavam pela cirurgia. Eu hesitava e queria mais informações anatômicas. Eu queria um Chiba. O setor de radiologia não estava realizando o Chiba, mas eu achava fundamental obtê-lo para ter um desenho preciso da árvore biliar. Conversa daqui, conversa dali, e nada de Chiba. Eu já estava achando que se fosse operar sem o Chiba entraria na chibata. Estava realmente inseguro, mas evitava demonstrá-lo. Por isso não fui tão enfático quanto à questão da colangiografia trans-hepática percutânea. Aos diabos o exame. Se eles queriam que eu operasse, eu o faria. Tomei a decisão.
A OPERAÇÃO
Pensei, é óbvio, que pudesse colher alguma informação a mais durante o ato cirúrgico que me ajudasse com a conduta operatória a ser tomada. Foi uma laparotomia exploradora. Essa realmente foi a razão de eu ter decidido operar sem as valiosas informações do Chiba.
Paciente na mesa cirúrgica, olhinhos rodopiantes; olhavam-me despretensiosamente, como se eu fosse apenas mais uma peça daquela engrenagem assustadora que era o hospital. Sim, o hospital tem seus próprios sons, cheiros, cores, luzes, pessoas. Eu era só mais uma dessas coisas que a assustavam. Tentei tranqüilizá-la dizendo que tudo iria dar certo, que quando acordasse tudo estaria resolvido e ela voltaria para casa em breve. Tenho consciência que disse tudo isso acreditando piamente em minhas próprias palavras. Não estava tentando enganá-la. Falava do fundo do meu coração. Era sincero.
Sou obrigado a dizer que a operação foi uma seqüência de manobras frustrantes e improdutivas sem, contudo, nenhum prejuízo a mais para minha pequenina paciente. O objetivo maior era descomprimir a via biliar proximal à obstrução. Após remover a vesícula tentei inúmeras vezes, puncionando-lhe o fígado a céu aberto, achar um ducto biliar e colangiografá-lo com o intuito de estudar a anatomia biliar intra-hepática e promover a derivação externa ou bilio-entérica.
A colangiografia transoperatória demonstrou ductos muito altos. Isso implicaria uma abordagem em que seria necessário literalmente fraturar o órgão tenso e congesto, uma manobra de alto risco. Ademais, a colangiografia demonstrou apenas parte da árvore biliar implicando em que a descompressão satisfatória provavelmente seria ineficaz com aquele ducto. Frustrado, optei por fechar a paciente consciente de ter feito absolutamente nada por ela.
A VAIDADE
A intenção era cumprir o adágio cirúrgico "first, do no harm". Decidi que os riscos da abordagem eram sobremaneira maiores que seus potenciais benefícios. Anelei, durante a operação, a concorrência de um cirurgião com maior experiência naquele tipo de procedimento.
No entanto, em meu íntimo estava frustrado. Uma enorme sensação de impotência tomou conta de mim. Sentia-me derrotado, como se aquele insucesso representasse uma enorme lacuna em minha formação profissional. Momentaneamente esqueci-me daqueles olhinhos rodopiantes e indagadores e fixei meu pensamento em mim mesmo. Seria uma mentira se não admitisse uma grande tristeza por ela, mas a isto se misturou este sentimento menor.
Saí em busca de opiniões de colegas mais experientes, e ela foi transferida para outro setor do hospital a fim de que se realizassem novos testes. O mais experientes diziam que ela precisava de um Chiba antes de uma segunda operação. Opinei que provavelmente isso não seria possível posto que já havia tentado esta manobra a céu aberto e não lograra êxito. Considerei que a mim parecia que sua única chance seria um transplante, mas isso não foi levado em conta por ser um tumor a causa do problema.
Eu sabia que eles estavam preparando-a para uma nova operação. Aquela espera foi como a espera para uma grande prova ou teste de conhecimentos. Eu estava convencido de que, se eles conseguissem derivar sua via biliar, eu estava reprovado no teste. Só havia uma saída para mim: eles não conseguiriam drenar aquela via biliar e eu passaria no teste.
Eis aí aonde pode levá-lo a vaidade. Eu estava torcendo para que eles não conseguissem seu objetivo, ainda que isso representasse o pior para aquela linda jovem. Eu estava arrasado pela minha tosca e medíocre vaidade frustrada. Eu era um monstro vestido de branco pela minha repugnante vaidade. Eu tinha vergonha de olhá-la cada vez que ela saía no corredor, e me sentia um inseto parasita cada vez que abria os olhos para mais um dia.
A MORTE
Eu passei no teste. Eles também não conseguiram fazer algo por ela e não drenaram a sua via biliar. Ela entrou no CTI quando eu coincidentemente lá estava. Meus olhos encheram-se de lágrimas ao ver sua fragilidade moribunda cotejada com meus pensamentos vis. Aproximei-me de seu leito quando ela já estava inconsciente. Tocando levemente sua mãozinha implorei-lhe seu perdão. Em resposta só ouvi o som frio e repetitivo do respirador funcionando e as batidas rápidas do monitor cardíaco que lhe detectavam os últimos momentos de sua curta vida. Apesar da coloração cérea e pálida de sua pele suada, ainda era angelicamente bela. Afastei-me lentamente sentindo que ela levaria consigo muito do que tenho de podre.
Algumas poucas horas depois ela partiu. E eu continuei frustrado por ser um ser humano.
Fernando Cavalcanti, 23.04.2007
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