Não
é falta de inspiração coisa nenhuma.
(Um
homem não pode se abster de assumir suas mais recônditas verdades.)
Reconheço,
entretanto, uma certa dificuldade de pôr à pena a avalanche de
sentimentos que turbilhonam no íntimo. Talvez esse seja o problema –
é sentimento demais e escritor de menos. Outra possibilidade seria
pura e simplesmente uma demora em agir tão logo me assaltam as
ideias. Em outras palavras, a velha e boa preguiça. Por isso mesmo
tentemos.
Como
sabem, a motocicleta é um excelente meio de transporte. Já prevejo
os comentários adversativos a essa afirmação, mas ela é a pura
verdade. Afora a questão da segurança, a motocicleta tem todas as
vantagens sobre qualquer outro veículo automotor. A segurança sobre
a motocicleta pode ser maximizada, acredite quem quiser – sei que a
maioria não quer –, a começar pela troca de quem a pilota. Se se
põe um imbecil por detrás do guidon – um imbecil por detrás de
qualquer coisa é sempre uma tragédia –, espere-se pela inexorável
desgraça. Eis aí, no frigir dos ovos, a grande variável da
segurança do motociclista. Em outras palavras, o motociclista
precisa ser salvo de si mesmo. Motociclista sem medo é motociclista
morto.
Pois
é a vantagem da motocicleta sobre o carro que me faz usá-la em meu
dia a dia. Bom seria se nem dela precisasse. Porém, em Fortaleza
capital do Ceará o uso do transporte particular ainda é mais
desejável, bem mais, do que o do transporte público deficiente,
escasso e inseguro. Os que aqui não residem hão de indagar:
–“Mas... inseguro”? Responderei que a insegurança do
transporte público é diferente da insegurança da motocicleta
(http://www.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2016/01/21/noticiasjornalcotidiano,3564531/assaltos-a-onibus-aumentaram-30-no-segundo-semestre-de-2015.shtml).
A insegurança desta remonta à vulnerabilidade física proporcionada
a seus ocupantes, ao passo que a do transporte público remonta à
existência em quantidade de bandidos que vivem a assaltá-lo. Vejam
que o assalto a mão armada se tornou, já há muito tempo, uma
terrível rotina desta miserável cidade sem que nenhuma medida
realmente eficaz tenha sido tomada pelas “autoridades”. Óbvio é
que também o motociclista, o motorista, o pedestre, o ciclista estão
todos à mercê deste câncer que ora assola este lugar. Conclui-se
que o pobre motociclista é vítima de duas inseguranças – a
física decorrente das leis da física, e a física decorrente da
ameaça à sua integridade por outros indivíduos. Matéria publicada
ontem em periódicos locais avisa: Fortaleza é a cidade mais
violenta do Brasil e a 12ª mais violenta do mundo
(http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/segurancapublica/fortaleza-e-apontada-como-a-cidade-mais-violenta-do-brasil-e-a-12a-do-mundo/
e
http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2016/01/25/noticiafortaleza,3566663/fortaleza-e-a-cidade-mais-violenta-do-brasil-e-a-12-do-mundo-diz-est.shtml).
Não entende o que digo quem deliberadamente não quiser entender.
Chegaram
por aqui as chuvas que os meteorologistas diziam não chegariam. Mas
chegaram. (Será que nosso satélite está cobrindo esta área ou
empacou lá pela Cochinchina?) E chegaram fortes e prolongadas. Na
última semana choveu torrencialmente em dois dias. O resultado é
sobejamente conhecido – alagamentos e rompimento da rede de esgotos
em vários pontos da cidade. Há bueiros que “sangram” por dias
após o encerramento de uma chuva mais forte. Assim, durante a chuva
esfria um pouco – há pessoas que se agasalham como se estivessem
em preparo para escalar o Everest –, mas em seguida o mormaço
predomina. Então, o alpinista sem montanha se despe e vai se postar
à frente de um ventilador. Para o motociclista, a insegurança
aumenta com as chuvas. E não somente por conta da pista
escorregadia, mas também pela possibilidade da falta de pista. Uma
pista escorregadia será sempre mais desejável do que a falta da
pista, como bem podem perceber. Imaginem o sujeito vir todo
agasalhado por causa da chuva em seu carro, anelando ardentemente
chegar em casa pensando em beber um café bem quente, e eis que a
pista acaba e o carro é engolido por um buraco descomunal. No carro
tal episódio já seria uma tragédia; na motocicleta, nem me fale...
E não somente os buracos engolem os veículos. Também verdadeiras
lagoas podem ser a causa do final da linha para o pobre
condutor(http://www.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2016/01/22/noticiasjornalcotidiano,3565153/alagamentos-buraco-e-corrida-no-calcadao.shtml).
Em
seu “Os Miseráveis”, Vitor Hugo conta a história da construção
dos esgotos de Paris e das reformas e ampliações pelas quais
passaram ao longo do tempo. Demora-se capítulos e mais capítulos de
sua obra-prima nessa narrativa. O açodado leitor principia a
julgá-la fora de propósito, para mais adiante descobrir as reais
intenções do Mestre. Toda a descrição visa levar o leitor a
compreender a bravura de Jean Valjean, seu personagem central, a
carregar sobre as costas, através das galerias e canos enormes dos esgotos parisienses, o corpo quase morto de seu futuro genro
Mario Pontmercy, ferido gravemente durante uma barricada. Perseguido
pelo implacável Javert, inspetor de polícia que tudo fazia para
pô-lo novamente atrás das grades, Valjean se esgueirava como um
rato pelos pútridos canais subterrâneos da Paris de meados dos anos
1800, tentando conduzir Mario à segurança da casa de seu avô. Lá
chegando, exalava o mal olor dos ratos de esgoto, tanto que o velho
mal deu por sua presença, tomando-o por um desprezível ser.
Fiz
esse breve comentário apenas para comunicar ao sempre açodado
leitor que o motociclista fortalezense também está condenado a, como
o personagem francês que após ser preso por 19 anos e passar a vida
a ser perseguido por ter cometido um furto famélico, chegar a seu
destino carregando sobre si e sua vestimenta não a vida que se esvai
já, já e que se quer desesperadamente salvar, mas a catinga nauseabunda de nossos
rotos esgotos somente. Desprovido da bravura e da vida por salvar exceto a sua própria, o motociclista fortalezense será apenas uma dentre as
centenas ou milhares de vítimas da podridão de nossas excretas e
dejetos. As águas imundas que transbordam pelos tampas frouxas e
incompetentes das galerias sanitárias em vários pontos da cidade –
em bairros ditos “nobres”, vale lembrar –, banham suas roupas
e, vaporizadas, seus pulmões, poupando apenas e talvez os condutores
e passageiros de veículos fechados em suas blindagens ilusórias.
Pode a população inteira supor a qualidade do ar que respira nesses
dias...
O
diabo é que era justamente tudo isso o que remoía no pensamento. De
fato, não há necessidade nenhuma de inspiração para descrever o
que é do conhecimento geral. Penso até que me abstenho por uma
questão de constrangimento. Certa vez alguém comentou que somente
escrevia sobre coisas “ruins”. Segui tentando escrever sobre
coisas boas. Ainda hoje tento. O diabo foi a catinga que exalava ao
chegar ao dentista! A boca cheirava bem, mas o resto... Fui obrigado
a me desculpar por toda uma cidade nojenta...!
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