“Meus
irmãos, começou o ano, mais um. Quem pode dizer o que virá? Há o
controlável e o incontrolável, o primeiro muito mais improvável
que o segundo. Assim, proponho novo encontro para daqui a
etc.etc.etc”. Foi assim que iniciei, hoje, a mensagem para os
amigos do tempo das fraldas.
Mal
terminou o ano e já me assaltam visões do imponderável e do
incontrolável. Haverá quem diga existir algo de sombrio em meu modo
de ver o ano que começa e direi que o pé no chão é uma excelente
fonte de sobriedade. Queremos estar perto de quem queremos estar
perto. Só desta maneira suprimos e preenchemos o espaço
interminável de nossa solidão. Sim, porque somos todos solitários
em nossa ignorância essencial. De fato, é ela, a ubíqua ignorância
essencial, a causa de nossa infindável solidão.
Entre
o virtual e o real, opto pelo segundo, infinitamente mais eficaz em
suprir nossa memória e nosso coração. Só a amalgamação do
coração e da memória pode produzir o melhor em nós. Antes, ainda
quando o virtual pertencia ao campo da ficção, João, o Bosco,
dizia
Quem
se lembra de você em mim
Eu
sei, eu sei
Bate
é na memória da minha pele...
Que
ninguém pense que restringiu-se o poeta à sensualidade pura e
simples, hoje foco único da atenção generalizada dada a fome de
amor que se instalou. (Uma das inconveniências da curta vida humana
é a incapacidade individual de sentir ou notar ou testemunhar se o
que acontece hoje já aconteceu noutras épocas. A abundância do
ódio no planeta será a manifestação doentia de uma eterna fome de
amor mal destinada...) A pele de sua poesia representa todos os sentidos
e é a essa memória que me refiro.
Mas
deixemos de filosofar. A suma de tudo é que são os amigos, de uma
forma ou de outra, utilizando-se do encontro real ou de qualquer
pobre mídia atual, aqueles que nos põem de frente a reflexões
frutíferas e pertinentes.
Primeiro foi o meu amigo Bacana, quando me enviou um trecho de uma palestra proferida pelo ilustríssimo professor Leandro Karnal no 4o. Congresso Sobre Gestão de Pessoas do Setor Público Paulista. Em determinado momento da fala ele diz, referindo-se ao assalto perpetrado à Petrobras por empreiteiros e gestores públicos de alto escalão, que a grande maioria dos funcionários da estatal é composta por trabalhadores honestos e comprometidos com a ética e que o brasileiro perdeu a fé no país porque passou a confundir a sociedade com o Estado. Quis ele dizer que a sociedade é honesta e age segundo elevados padrões éticos enquanto o Estado é corrupto e aético.
Primeiro foi o meu amigo Bacana, quando me enviou um trecho de uma palestra proferida pelo ilustríssimo professor Leandro Karnal no 4o. Congresso Sobre Gestão de Pessoas do Setor Público Paulista. Em determinado momento da fala ele diz, referindo-se ao assalto perpetrado à Petrobras por empreiteiros e gestores públicos de alto escalão, que a grande maioria dos funcionários da estatal é composta por trabalhadores honestos e comprometidos com a ética e que o brasileiro perdeu a fé no país porque passou a confundir a sociedade com o Estado. Quis ele dizer que a sociedade é honesta e age segundo elevados padrões éticos enquanto o Estado é corrupto e aético.
Ora,
pensei cá com meus botões, não é o Estado a sociedade organizada
politicamente e juridicamente no intuito de dela afastar o
determinismo anunciado por Rousseau, ou Hobbes ou quem quer que tenha
levantado a hipótese de ser o homem, antes ou depois, não importa,
dado à maldade e às más ações? Não é o Estado o contrato entre
os homens, o pacto de não agressão? Não são os Códigos a parte
do Estado elaborada por homens representantes de outros homens,
pertencentes a uma determinada sociedade que estabelece regras a
serem seguidas e as respectivas sanções aplicadas àqueles que as
quebram, antes que ponham em risco o bem estar e a paz social? Assim, como não
“confundir”, em nome do que é mais sagrado, o Estado e a
sociedade que o produziu? Sim, porque não foi o Estado quem produziu
a sociedade, mas o contrário. Um ajuntamento de seres humanos a se
dizimar e a se agredir é apenas um amontoamento inútil e fora de
propósito. Sociedade e Estado podem existir separadamente? Enfim, de
ignorante passei a ignorante e meio...
O
resultado para mim, após assistir a esse pequeno trecho da fala do
senhor Karnal, foi a frustração de lá não estar, em sua palestra,
quando seguramente não perderia a oportunidade de beber mais de sua
sabedoria a fim de me dirimir tão acachapante e humilhante dúvida.
Depois
foi quando estive com o amigo e compadre Chico, ontem, para ser mais
preciso. (Vejam que, em Fortaleza e possivelmente no resto do Estado,
o maior passatempo é beber. Outro dia o Baxim, o outro compadre, me
respondeu, quando lhe perguntei como estava, que passara o dia feliz
porque estivera a beber durante todo o dia. Enchi-me de alarme. Será
possível que alguém acredite que a felicidade de um dia inteiro
somente seja possível caso se esteja sob efeito da libação
alcoólica?)
Pois
estive ontem no solar do Chico. Eu bebia Coca-Cola, uma bela e nada
saudável porcaria, mas melhor opção para quem irá pilotar uma
motocicleta em seguida. Por sua vez, ele sorvia cerveja em módicas e
alargadas doses, de modo que nossa conversa fluía no bom
entendimento que a sobriedade permite, ainda que haja discordâncias
aqui e ali. Lembramos que no próximo dia 6 de janeiro fará 10 anos
da morte de seu amado irmão Zé, e saímos a conversar sobre a vida
que vivemos até aqui. Dali a pouco, o inevitável – a política.
O
diacho é que, na hora que emergiu a política, o álcool já
escarafunchava o juízo do amigo-irmão, ainda que não a ponto de
obstruir-lhe as paixões e as convicções. Numa irrefutável
demonstração de apoio à causa dos “famintos” brasileiros,
disse:
–"Todos
devem comer”!
–"Mesmo
os vagabundos que lançaram ao lixo todas as oportunidades que se
lhes deram e hoje dependem dos outros em consequência de sua
irresponsabilidade”?, perguntei na intenção de provocar o homem.
–“Mesmo
esses”.
–“E
quem há de alimentá-los”?
–“O
Estado”.
Vejam
que, para meu amigo, a sociedade – que na minha humílima opinião
é o mesmo que o Estado – deve alimentar aqueles que escolhem a
vagabundagem. Ele não defende com unhas e dentes a obrigação
estatal de oferecer oportunidades iguais para todos indistintamente.
O que ele defende é a irresponsabilidade estatal tal qual ela se
apresenta atualmente e que esta irresponsabilidade se perpetue, assim
como a pobreza perpétua, na concessão de paliativos da “fome”.
Ele não reconhece que a fome e seu paliativo fazem parte de uma
mesma estratégia criminosa; não percebe, do alto de seu
“esclarecimento”, que a sociedade que produziu o Estado que aí
está – ou seria que “aí estamos”? – produziu esse Estado
porque toda sociedade produz o Estado que seja a sua cara e que
tenha suas
próprias características e seu modo de pensar.
(Não consigo pensar numa sociedade que produza algo distinto de si
mesma. Que me desculpe o senhor Karnal a audácia.)
A
sociedade brasileira produziu a fome. Resolveu agora
mitigá-la, apenas mitigá-la.
Puseram no poder uma esquerda destoante da esquerda leninista e
stalinista, que se utilizou da fome para destruir e aniquilar mais de
20 milhões de camponeses que se lhes opunham; produziram, ativa e
passivamente, a fome que mata. A esquerda brasileira, toda ela
moldada ao jeito brasileiro de ser, forjada num lugar onde tudo é
desvirtuado, não pretende a fome que dizima, que massacra e que
assassina. Para ela é mais útil a fome que dura, que persiste, a
fome perene e mitigada, a fome contínua porém suavizada
e abrandada. Para a esquerda brasileira a fome que mata é inviável,
inútil e até prejudicial aos dias de hoje. Não interessa violar os
direitos humanos, fachada onde se executam inocentes e se libertam
facínoras vítimas de uma burguesia fascista e antidemocrática.
Nada disso meu amigo vê... Não vê que nossa fome continua fome e
será sempre fome a se perpetuar a estratégia assassina.
Como
o Chico já desse sinais inequívocos de obnubilação dos sentidos,
resolvi partir. Filosofia e álcool não combinam. Inda mais quando
se trata de defender a fome alheia. O pior foi ouvi-lo dizer, quando
engatei a primeira, que ambos queríamos a mesma coisa, mas
utilizando-nos de diferentes meios. Não deu tempo responder, mas
digo agora ao amigo que não quero a fome de ninguém, não!
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