Outro dia ouvi alguém falar sobre fracassar e fracassados. Dizia o
palestrante que há, entre um e outro, uma enorme diferença: fracassar é uma
etapa; fracassado é o que desistiu. Vejam que, segundo ele, o fracassar é um
momento, um estágio, uma etapa de uma caminhada no caminho de uma meta, de um
objetivo, ao passo que o fracassado é aquele que, numa dessas etapas, ali ficou
sem se deixar ou querer reerguer. Desistiu da meta, do objetivo, do sonho.
Deixou-se estar à beira do caminho culpando a estrada, os que pretenderam
encorajá-lo, o mau tempo, o vizinho, enfim, tudo e todos, exceto ele próprio.
Vamos e venhamos – não é fácil realizar sonhos.
Digo isso por experiência própria. E é tão pessoal a minha experiência que até
admito – eu nem sabia que tinha sonhos outros. É fácil não os ter. Basta que,
como aconteceu comigo, se os busque apenas nos lugares-comuns. Quando se os
buscam aí e se faz tudo o que é necessário e a anuência de todos, é certo que
se os conseguirá realizar. Entretanto, o mesmo não se pode dizer dos sonhos que
a manada não permite sonhar. Se ousar, será considerado mais um louco a surtar.
Neste contexto, mesmo os mais empedernidos lutadores hão de sucumbir se se
permitirem serem vítimas da implacável rejeição. Sim, porque a rejeição ao
sonho não consentido será como a rejeição a mesmo.
Não é fácil ser rejeitado. Os sonhos comuns são,
como se supõe, disseminadamente aceitos e bastante estimulados. Por isso, como
é óbvio, não serem rejeitados. Quem os sonha pode fracassar quantas vezes
necessário for, e o fará sem temor. A razão é a ausência completa de rejeição.
Já os sonhos não permitidos, esses não. O primeiro fracasso em sua direção é
razão mais que suficiente para intensificar sua rejeição, o que para muitos
servirá como prova de sua completa inviabilidade. Eis aí tudo.
Dizia o palestrante que fracassar é bom, e eu me
perguntava qual seria a anatomia do “bom” fracasso. (Doravante o “mau” fracasso
será referido àquele resultante de sonhos não aceitos, em que o sonhador é
contundentemente rejeitado ao sonhá-lo.) E a resposta já se me deslindava no
pensamento: – como a manada não aceita seus rebeldes, os que ousam ousar são,
para ela, detestáveis. O cérebro da manada é a vaidade e seu coração chama-se status. Para ela, o bom fracasso é muito
bem aceito porquanto é ele quem referenda e avaliza as altas posições, os
elevados postos, as incontestáveis autoridades, ou seja, seus órgãos vitais.
São esses bons fracassados os que nutrem os órgãos vitais dessa massa, como se
fossem eles o sangue que lhe traz vida e a faz pulsar em fluxos de infindável
gozo. O fracasso no contexto da não realização dos sonhos aceitáveis vem a bem do
fluxo para os mais aquinhoados, pretendendo manter o que se considera imutável
e inexorável. Tal fracasso é “bom” porque é comemorado por todos, bem-sucedidos
e fracassados, os quais procuram, nas formas mais extremas de fracasso, algum
tipo de esmola pública ou privada e a anuência de seu status aeternus como
compensação e reparo. Os diferentes estratos dessa manada opaca traduzem tão
somente diferentes níveis de sucesso e fracasso, o que relativiza mesmo tais
conceitos, como se existissem níveis de um e de outro, plenamente aceitos e
considerados “normais” e até necessários e desejáveis. Tudo isso é deveras
oposto ao que consideram o mau fracasso. Sim, o mau fracasso é ameaçador.
(Tirei-lhe as aspas injustamente, já que de mau nada tem ele, a não ser para a
manada que pretende seguir irretratável e livre de ameaças.)
Pois direi também da anatomia do “mau” fracasso.
(Volto sem demora a lhe pôr as aspas.) Este tipo é ameaçador porquanto só acaba
quando alcança o pleno objetivo, a realização do sonho de quem sonhou, dentro
de uma ordem absolutamente estranha ao que a manada permite. Seu cérebro é a
crença no incrível e seu coração é a grandeza do sonho que sonhou. Ousar é o
sangue de suas veias e persistir é a musculatura que o carrega pelo caminho da
rejeição e escárnio.
Façamos um resumo a fim de que não haja dúvidas.
Há dois tipos de fracassos, segundo o entendimento
ordinário. O bom fracasso, aquele aceito à larga e com o qual se simpatiza; e o
mau fracasso, aquele resultante de se tentar o extraordinário. Este último,
quando ocorre, alivia o temor da ordem vigente como se isso viesse a bem da
confirmação de ser ela a única possível.
Ocorre que, com a evolução tecnológica e o resultado
de seu uso para fins econômico-financeiros e do surgimento de novos modelos
de negócios, a ordem vigente se viu irremediavelmente ameaçada, visto que
muitos se permitiram fracassar incontáveis vezes antes de verem concretizado o
sonho considerado impossível. A vaidade se viu aterrorizada, o status se desesperou. Seu poder de
encantar, seduzir e humilhar se viu impotente e reduzido a pó. É questão,
apenas, de mais um lapso de tempo antes que todos,
sem exceção, percebam que a tal ordem sucumbiu de vez, como estão a sucumbir cada um de seus alicerces sem que muitos se deem conta em razão de sua cegueira.
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