Não pude deixar de assistir,
mais uma vez, ao filme de José Padilha "Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora
É Outro", de 2010. É, agora, o filme brasileiro mais visto de todos os
tempos, com mais de 11 milhões de espectadores. Já devo tê-lo visto uma dezena
de vezes, por inteiro ou a partir do momento em que o surpreendo na televisão a
cabo. Pessoalmente me interessa a parte do filme que trata das milícias, sua
origem, sua relação com a política, com os políticos e com o poder constituído.
Pois acabo de vê-lo novamente, e justamente ao término da leitura da
entrevista, numa revista de grande circulação nacional, com o senhor Cláudio
Beato.
O que faz mesmo o senhor
Beato? Lembrei: ele é sociólogo e hoje "tem se dedicado a entender as
milícias". Ora, de um lado o filme, uma obra de ficção, com sua milícia;
do outro o respeitado sociólogo a dissertar sobre as milícias nada irreais de
nosso dia a dia, mormente as do Rio de Janeiro. O filme mostra as milícias do
Rio, o senhor Beato fala justamente delas. Em comum entre a ficção e a
realidade a milícia e a cidade onde atua. Haverá mais alguma coincidência?
Perguntando de outra forma, haverá algo mais em comum entre a fita e o mundo
real?
Vamos a ambos numa tentativa
de nos extrair dessa dúvida cruel e preocupante.
Diz o senhor Beato o
seguinte, sobre o mundo real: "É preciso empreender uma faxina na polícia
do estado [do Rio de Janeiro], que figura entre as mais corruptas do país. A
podridão não se limita às bases da corporação, mas está entranhada nos mais
altos escalões". Para exemplificar cita o fato de um tenente-coronel,
envolvido com grupos de extermínio, ter sido descoberto como o mentor do
assassinato de uma juíza, evento amplamente divulgado na mídia e de
conhecimento da sociedade brasileira. Diz ainda mais o senhor Beato:
"Torturam, matam e expulsam as pessoas de suas casas. Infiltram-se também
no dia a dia dos cidadãos, explorando serviços essenciais como transporte
coletivo, água e gás". E – vamos logo ao pior: "... seus líderes
operam de dentro da polícia e se mantêm ali quanto podem, galgando postos na
hierarquia e evitando que os próprios crimes sejam investigados. Eles têm poder
no mundo formal. Desfrutam de ampla inserção no meio político".
Ora, mas o senhor Beato está
falando do filme do José Padilha! A película mostra tudo isso! Não foi dito na
entrevista/reportagem que ele fosse crítico de cinema. Mas não – o senhor Beato
fala do mundo real, onde as coisas acontecem de fato. No filme, o coronel
Nascimento, após uma manobra desastrada de seus comandados numa rebelião em
certo presídio, passa a funcionar como subsecretário de Inteligência da
Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro. A certa altura ele
relata: "A Secretaria é o coração do 'sistema'". O
"sistema" a que ele se refere é a organização criminosa oficial,
institucionalizada. Os bandidos da rua funcionam apenas para serem mortos e/ou
presos em operações militares de invasões e estouros de morros repletos deles,
no intuito de produzir dividendos políticos para o mesmo "sistema". A
milícia realiza operações criminosas no morro ou na favela apenas com o
objetivo de justificar a invasão e a matança de traficantes que a sociedade
exige. Em troca, chuva de votos para o "sistema".
Ao final, Nascimento
pergunta ao espectador quando a cena muda e nos desnuda a esplanada dos
ministérios em Brasília: "Me diz uma coisa: quem você acha que mantém tudo
isso (o 'sistema')?" E a câmera avança a mostrar a Praça dos Três
Poderes (ou seria "Praça dos Três Podres"? Basta suprimir uma vogal.)
Após uma CPI impensável no mundo real, Nascimento levara, através de seu
depoimento, vários políticos à cadeia e a um rearranjo do "sistema" –
uma queima geral de arquivo, uma reorganização dentro da organização criminosa,
um troca de mãos geral e conveniente à sua sobrevivência. E conclui,
enfaticamente e em tom de lamento: "O sistema é foda. Ainda vai morrer
muito inocente".
Não me lembra que após os
créditos finais tenha aparecido o célebre lembrete "essa é uma obra de
ficção; qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência".
Se apareceu, há que se lhe retirar. Seria a única mentira deslavada da película
irretocável.
Pobres de nós que ficamos a
nos debater em nossas vidinhas virtuais e enganosos caprichos reais. O real
está repleto do horror que teimamos em não enxergar. Reprimimos diuturnamente
seu conhecimento a fim de que seu fardo não esmague nossas consciências.
O filme é muito acertado mesmo, para mim o melhor filme brasileiro já feito. Bela análise. Abração!!!
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