terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Vossa guerra interior

             Uma epidemia de espíritos revoltosos e raivosos tomou conta de parte de meu ambiente. Não vos digo que me surpreenda tal lamentável constatação. Há tempos não apreciava episódio semelhante, e confesso mesmo não recordar a última vez que o presenciei. Interessa desta vez  a proximidade das "vítimas".
          É bem possível que as vítimas das "vítimas" não se conheçam entre si, mas as "vítimas" do nefasto mal – a tautologia é proposital – se conhecem, creiam-me. A princípio me perguntei se haveria uma relação de contigüidade entre os raivosos, já que eram todos do sexo feminino. Entretanto, percebi que a proximidade entre eles seria apenas aparente. De fato estavam a uma distância considerável entre si, o que excluiria a suposta relação. 
          Desvendemos o mal em si. 
          Assomos de explosão desproporcional ao insulto é o sinal cardinal desse mal que, ao que parece, se alastra a olhos vistos. Poderíamos até alcunhar tal reação de "intolerância". Caberia também a expressão "tolerância zero" no comportamento dos acometidos. Essas pessoas chegaram a um ponto de zero de tolerância com pequeníssimos estresses da vida cotidiana, mormente os causados por amigos incautos. 
          Digamos logo: somente nos desentendemos com quem amamos. Não costumamos perder tempo com quem nos é indiferente ou com quem desprezamos. Assim, não é de surpreender que os atingidos pela epidemia saiam atirando cobras e lagartos entre os amados. Darei um exemplo prático, tirado de minha própria verve.
          Há certo cidadão, celebradíssimo na vida noturna desta decadente cidade, pelo qual não nutro a mínima simpatia. (Imaginem que o Eça, na pessoa de seu Jacinto Galião, já considerava a Paris da segunda metade do século XIX como o pior exemplo de cidade de sua atualidade. Nela então já abundava a superficialidade que hoje grassa impudicamente em nossa Fortaleza "bela".) De fato, minhas reservas para com esse cidadão se amontoam como um Himalaia de queixas. Deixemos claro que nada me fez este respeitado cidadão. Entretanto, desde sempre vi em sua pessoa a dissimulação, a empáfia, o gárrulo intolerável e pedante, os maus bofes quase a lhe saírem pela bocarra. E – observem que infringiu até mesmo a regra que deitei acima sobre somente nos desentendermos com que amamos – certo dia se chateou comigo. O motivo foi um cisco de tão minúsculo. Que se há de fazer quando alguém se sente incomodado por algo que não lhe diz respeito?, ou algo que supomos não seria razão para reação tão desproporcional? Nada podemos fazer, eis a verdade. Somente os anacoretas estão livres de correr tal risco. 
           Que fiz diante de tão ignóbil resultado? Desculpei-me. Mesmo aos trogloditas devemos solicitar o perdão por injúria, sob pena de lhes nos tornarmos semelhantes. Óbvio é que somente isso não serviria a atestar de sua abissal estultícia. O que o faz é o seguinte: o que lhe feri inocentemente  ele o faz contumazmente com as piores intenções que possa alguém supor. Com efeito, lhe conheci o caráter através de suas inúmeras fanfarrices e invasões à privacidade alheia. O aprendizado era claro – quanto mais longe ficasse deste senhor melhor seria para mim. Não devia arrazoar consigo em hipótese alguma. Desde então com ele não mais tive imbróglios de qualquer espécie. Não há bem-querer entre nós. É o exemplo de anti-amigo.  
          Até se explica que um sujeito que perceba que se não lhe tenha nenhum apreço se irrite com facilidade. Afinal ele se sabe completamente excluído do amor e mesmo da amizade de alguém cujo conceito sobre si é verdadeiro e o pior possível. Ao desmedido vaidoso é odiosa a percepção da sutil repugnância de si por parte de alguém. O descomunal vaidoso quer ser amado e invejado por todos. Sua personalidade jactanciosa não aceita desertores da seita que julga lhe seguir. Se isto perceber nada fará. É um patife, mas é inteligente. Sabe que qualquer reação mais estrondosa fala contra o tipo por ele criado em sua imaginação. Assim, o desertor estará em paz. Somente em situação em que se exponha em excesso a "petulância" de alguém contra seus propósitos e vaidade levá-lo-á a perder o controle. Aí, então, revelar-se-á o lobo sob a pele de cordeiro.
          Porém, o que dizer das doces almas que se destemperam? Essas são almas puras, doces e brandas como a suave brisa que sopra do mar no final de uma tarde tépida. Por que se exaltam por pouco? Que estará a lhes ocorrer? Que mal estão a lhes fazer? Estão, talvez, enfastiadas de seu bom procedimento que foi retribuído com uma má ação por parte de outrem; cansaram-se, talvez, da vida que escolheram ou, ao contrário, anseiam a vida que escolheram e que não levaram a cabo; enfim, algo as azedou ou está a lhes azedar o proceder. Que farão? 
           Fazei imediatamente algo antes que vosso azedume contamine a profundidade, tornando amargas vossas melífluas almas e tempestuoso vosso conviver. Os que anelam a paz de vós fugirão, receosos de serem destruídos por vossa guerra interior.

3 comentários:

  1. Menino, tou virando tua fã!!!!!!!!!! Amei..... Beijos Théa

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  2. Dessa vez amigo Fernando Cavalcanti,não esqueci teu nome,quer ver vou repetir:FERNANDO CAVALCANTI(risos)Depois de ter lido essa crônica que mexe com a sensibilidade,e a capacidade de in(tolerãncia)das pessoas, principalmente daquelas que vivem em total clima de animosidade,nem pensar!Mesmo tendo percebido em teus textos já uma marca registrada de um espírito apaziguador...brincadeirinha,Amigo.Quem dera,nesse universo de pessoas alteradas,digo com os nervos à flor da pele,a beira de um colápso nervoso,existisse um amigo que pensasse e agisse à tua maneira, o mundo ,com certeza,não estaria esse caos aproximando-se de uma nova barbárie.Mais uma vez parabéns pela leitura lúcida, e essa visão cósmica que transfere para a tua escrita de forma concisa e com um certo humor,ingrediente tão indispensável aos nossos dias.Abraços,literários!

    Zinah Alexandrino

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  3. Gostei demais da maneira como vc. descreve o seu lobo em pele de cordeiro....

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