Há hoje o consenso de que o mundo, ou melhor, a
vida não seria possível sem a rapidez com que se alastra a informação. A rede
mundial de computadores e as diversas mídias disponíveis para acessá-la seriam,
doravante, condição sine qua non para
a existência de qualquer ser humano. Sim, pelo menos o ser humano que pretenda
ter uma vida normal. A vida fora desse novo ambiente seria uma vida à margem
ou, sendo bem direto, uma vida marginal.
Com efeito, hoje em dia a vida de quem quer que
seja não pertence a seu dono e o sujeito que ouse ter a sua vida somente para
si será, para todos os efeitos, um marginal, um ser execrável, portador de
qualquer dessas modernas patologias mentais recentemente descritas em espessos
tratados psiquiátricos. O indivíduo, aos dias de hoje, é obrigado a ter um
comportamento real condizente e coerente ao seu comportamento virtual, sob pena
de a mulher lhe pedir o divórcio, ou os amigos passarem a desconfiar de sua
credibilidade, ou o gerente de seu banco lhe taxar com maiores juros que o
restante dos clientes. E não somente isso. Também o comportamento virtual há de
agradar ou desagradar a todos indistintamente, sob pena de o acusarem de
discriminação. O governo, se pudesse, tomar-lhe-ia tudo o que tem e mais um pouco,
já que está a criar cada vez mais mecanismos que lhe permitam tomar
conhecimento de tudo o que o cidadão faz com seu pobre e suado dinheirinho.
Como efeito colateral “menor” da ampla divulgação ou
disponibilidade de acesso às informações sobre todos, empresas e bancos se
sentem à vontade para divulgar seus produtos através de mensagens por correio eletrônico
ou mesmo por contato telefônico direto. A informação dá dez voltas ao mundo
antes que termine um piscar de olhos e, se passar pelo individuo sem que ele a
capte, sentir-se-á excluído do mundo, com a nítida sensação de ter perdido algo
de importância capital. E assim é, hoje, a vida de um ser humano minimamente
normal. A nova ética se impõe; a velha fenece como a flor com que se presenteia
alguém que se ama.
O hoje é imperativo em seus novos hábitos, em seus
novos compromissos, em suas novas obrigações. Não importa o que se sente, mas é
imperioso que se o demonstre publicamente mesmo que não haja sentimento
algum... Antigamente, para se dizer vivo bastava ir atrás do trio elétrico. Hoje,
para estar vivo é preciso correr atrás da cauda do foguete da informação, seja
ela boa ou péssima, construtiva ou inútil, eficaz ou insensata. Tanto que não
importa o que esteja fazendo, atenda o telefone imediatamente e responda
incontinenti às mensagens que chegam pelo telefone portátil.
Foi assim que, há cerca de uma semana, me bate o
telefone à hora em que atendia os doentes no ambulatório. Era um número desconhecido.
(Atreva-se a não atender a um conhecido e aguente as consequências.) O sujeito
queria me oferecer algo, mas não decifrei exatamente o que seria devido à má
qualidade da chamada. Despedi-me explicando que naquele momento não poderia
falar, e desliguei.
Hoje estou ali no almoço, pensando na vida,
degustando o alimento. O momento do alimento é momento ímpar, como sabem. O sujeito
que come há de desejar toda a paz existente no mundo para si e para si somente.
Eis que, súbito, me toca o telefone portátil. Venho atender movido por essas
prementes forças da modernidade. Olho o display
do aparelho e não reconheço o número que me chama. Atendo. Era o sujeito da
semana passada. Identificou-se impecavelmente. Mas, o que queria ele?
Ora, queria me participar que havia, reservado para
mim em sua factory, cinquenta mil
reais de crédito pré-aprovado. Um empréstimo, dinheiro vivo e fácil, tudo
porque sou servidor público municipal. Ou seja, a prefeitura municipal de Fortaleza
autoriza a que a tal factory me
empreste dinheiro e a ela garante o pagamento das parcelas abatendo-as na fonte,
a cada mês de vencimento do salário. Ora, o país está a assistir à prisão de
políticos de Brasília por causa de negócios escusos dessa natureza. O governo
federal roubou ou foi omisso ao permitir o assalto a servidores públicos
aposentados aos quais se ofereceram esses tais empréstimos. A prefeitura de
Fortaleza está a seguir os passos de Brasília? A mim não importa – fui direto
ao negar a oferta. O homem queria deixar-me seu telefone caso eu mudasse de
ideia. Neguei-me enfaticamente a anotar seu número. Pensei tê-lo ouvido rir-se
baixinho como se espantado estivesse por eu me negar a tomar o dinheiro. Terminei
a conversa seco e direto:
–“... e não volte a me ligar.”
Prometi a mim mesmo mais tarde bater o telefone ao
meu amigo Pedro Olímpio para saber dele como se faz para viver sem rede social
e sem telefone portátil. Eu sei exatamente como é. Preciso apenas da
confirmação de um cabra experiente no assunto.
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