Já se vão meses que Claudinha Viot vive sem viver. Está numa espécie de coma vigil. Sua vida, de fato, e é muito duro dizer, acabou. Restou a nós que a amamos, e a seus mais íntimos e chegados que a amam mais ainda, o vazio de sua doce e densa presença. Seu corpinho frágil jaz sobre leito frio e requer cuidados de terceiros todo o dia, todos os dias. Hoje uma imensa melancolia se me achegou, e não pude deixar de dela me lembrar.
Vive-se a vida e nunca são lembrados os ensinamentos e alertas de Salomão. Um deles diz da alegria da morte, ou de ser melhor o dia da morte do que o do nascimento, porquanto é na vida onde se sofre. Não há dor na morte. Nós, os que vivos permanecem, somos os que sofrem, ao passo que os que dormem no sono da morte já de nada lembram, já nada realizam, já nenhuma ambição lhes acossa a vontade, já nenhuma dor experimentam. Diz ainda o rei que de nada lhe serviram as riquezas e o poder que acumulou na vida e que o levaram a esquecer Aquele a Quem tudo devia. A confissão de sua apostasia é das mais belas orações que já se ouviram, sua humilhação perante o Altíssimo das mais angustiosas de que se tem notícia. Eis o que me espicaçava o espírito — a lembrança do estado de Claudia Viot.
Depois, e a propósito, a lembrança de uma vida de "sucesso". Chega-se onde se pretende apenas para se descobrir que o vaso ainda não foi preenchido. E, pior! — ainda que se ponham mais e mais desafios, ainda assim se estará longe da repleção de tão valioso, insaciável e inextinguível vaso. O sucesso, esse "bem" tão atual e desejado, o maior sonho de consumo do momento cujo significado, mesmo material, hesita aos ventos que lhe sacodem as entranhas, está nu. Assim como o rei. O sucesso — tiremos-lhe as aspas a fim de que se entenda seu real significado — está sob suspeita. Ao que parece sua face é outra, e outro o seu caráter. Numa única palavra: o sucesso é uma ilusão, a maior de nossos tempos.
Mas, segundo Nelson Rodrigues, há pior e, repito, há pior — seguimos ensinando o sucesso- ilusão. Por tudo, para todos. Parece que nada está a acontecer. Nossos filhos são poliglotas que não entendem a língua pela qual a realidade lhes fala nem compreendem a linguagem e os hieróglifos por onde fala a verdadeira ciência. Antes, e não somente eles mas todos nós, perdem-se nas cachaças das idéias nefastas e vazias, destituídas do conteúdo da verdade e repletas da malícia de uma outra inteligência. Estamos demais preocupados em que aprendam o tecnicismo que embasa a ilusão, antes de nos apercebermos que estão sendo tragados por tão sedutora mentira. Os meninos vêem em cada um de nós ou uma coisa ou outra; em cada um há a marca do homem de sucesso ou não. Somos ou não somos. Criamos ou compramos a fantasia que lhes embala os sonhos sem lhes esclarecer que o principal não são eles mas a realidade, e que aqueles somente nos servem a amenizar minimamente as dores desta.
E ainda se gradua a tão deslavada mentira. Há o "maior" e o "menor" sucesso, tudo a depender da quantidade da pecúnia ou bens acumulados. E dizemos que fulano está bem, ou muito bem, ou ainda ótimo na proporção de seu acúmulo. Estar bem não se refere, a princípio, ao estado de saúde do sujeito a quem se está a reportar. O modelo está em xeque, mas ninguém parece perceber, mergulhados que estamos nessa química vigorosa e poderosa.
Se é assim tão inebriante a lorota, não suscitará ela uma ressaca? Não será ela em breve seguida das rebordosas tão comuns às drogas de efeito central? Quanto tempo há de se esperar até que a vergonha nos abata e desejemos jamais experimentar nova libação? Ninguém há de saber. É até possível que nunca nos desintoxiquemos de seus efeitos duradouros, delirantes, regozijantes. Ainda não se descobriu o tratamento para esse "sucessismo" vigente, uma pandemia incontrolável; mas já se conhecem suas principais seqüelas: trogloditismo emocional, insegurança, solidão, isolamento e frágeis laços afetivos. Com a palavra os digníssimos psicoterapeutas.
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