Faleceu
Claudinha Viot.
Assusta-nos
quando a inexorabilidade do fim da vida se nos mostra tão precocemente e tão
implacavelmente. De fato, não me assusto. Apodera-se de mim ou, melhor,
deixo-me, entrego-me a essa sensação de que minha vida está suspensa a alguns centímetros
do chão, como se isso indicasse a leveza e imponderabilidade de tudo.
E me permito a
isso por um capricho que só os de coração empedernido podem se dar. É como se
ali, a alguns centímetros do chão, se desvalessem todas as leis que regem o
sofrimento humano. Não há ali dor – só uma perplexidade muda; não há ali choro –
só uma leve confusão de ideias; não há ali medo – só a constatação de tudo e a
dúvida do nada.
Nada direi de
Cláudia. Minto. Direi apenas que foi das mais doces criaturas que tive o prazer
e a alegria de conhecer. Nada mais direi. Minto novamente. Direi também que sua
doçura foi de sempre, de desde que a conheci, e até de antes, e até depois. Nada
houve nela ou que para ela fizessem que a levassem a perder sua constante e
terna doçura. E note-se que há doçuras que enjoam, que entojam, que entediam. Não
era essa a dela. Sua doçura foi a moldura e a tela de sua vida. E até seu corpo
sem vida transpirava – só os vivos transpiram – aquela sua inconfundível ternura.
Não resisti à
tentação de acariciar a moradia de sua alma, seu corpo agora sem vida. Não fosse
o véu rendado que o cobria e ter-lhe-ia feito um cafuné. Deslizei a mão sobre
sua fronte, como fazemos em nossos filhos quando estão para dormir, e toquei-lhe
a mão esfregando-lhe com as unhas, como fazemos com os amigos que amamos em
seus momentos difíceis.
Confessei antes
a visita que lhe tentei fazer no hospital. Não sei se seu prognóstico ou a
certeza de constatar sua distanásia me acovardaram no momento – saí de defronte
ao CTI e dali para fora do hospital como um raio. Não quis vê-la ali. Repudiei aquela
visão. Vê-la sem vida na paz dos que dormem me deixou na lembrança sua eterna
doçura, sua face sempre plácida, seu ar sempre franco. Terei sido egoísta? Não sei.
Lembrei-me da sensação
de perpetuidade que nos assalta numa azul e iluminada manhã de sol; de como nesses
instantes nos deixamos iludir pela beleza da natureza; de como permitimos que esta
ilusão perpetue nossos sonhos; de como nossos sonhos são fúteis...; de como não
mudamos o modo como vivemos porque a ilusão da clara e luminosa manhã banha também
aqueles sonhos. E quando os realizamos não dispomos à mão do corpo sem vida de alguém
que amamos para nos lembrar que o sonho, mesmo e principalmente o realizado, é
apenas mais uma volátil quimera.
Depois dos
funerais, o aniversário do amigo, outro amigo. À hora dos parabéns puxou-me a
um canto, após os “muitos anos de vida”, e segredou-me: -“É menos um ano, meu
chapa...”
No alto, um céu
repleto de estrelas, ofuscadas pelas luzes da metrópole, desafiava nossa compreensão
de tão dúbias manifestações do pulsar da vida e nos humilhava em nossa pequenez
e questiúnculas. Em silêncio entornei a dose do uísque do qual me servira há pouco.
Fernando, por demais belo e emocionante seu texto.Bom trazer conosco as boas lembranças das pessoas que nos são caras para que nosso coração não chore tanto.
ResponderExcluirLoura
É amigo!
ResponderExcluirPara tudo existe um contra-ponto celebrativo.Em vida se aniversaria.Na morte homenageamos e refletimos sobre o porquê da nossa existência e as boas lembranças do convívio de quem partiu(para onde?).Em ambas as situações prefiro conformar-se com o que seu amigo lhe disse..."é menos um ano meu chapa".
Fernando, voce tem um jeito muito especial de escrever... sensível e autêntico !!!...
ResponderExcluirQue esses exemplos sempre nos façam abrir os olhos para a vida, para que não tenhamos jamais a sensação dos dias perdidos....e sim do máximo que conseguirmos realizar !!!! Felicidades mil !!!!
Sua dor me lembrou Elias em A solidão dos moribundos: a morte é um problema dos vivos...Ao que vc complementa: suspensos a alguns centímetros do chão, como se isso indicasse a leveza e imponderabilidade de tudo.
ResponderExcluirOi Fernando!
ResponderExcluirEu conheci a Cláudia de perto, trabalhávamos juntas na Equipe de Auditoria da SMS de Fortaleza, e posso dizer que corroboro com cada palavra sua... Cláudia tinha ao mesmo tempo uma doçura e uma firmeza impressionantes! Profissional altamente capacitada, comprometida com seu trabalho, envolvida com o drama dos pacientes! Ainda estou em choque com tudo que aconteceu com minha querida amiga e quero deixar aqui meu testemunho do privilégio de ter convivido com alguém tão especial e iluminada como a Cláudia. Que seu espiríto tenha a paz dos justos e encontre a glória dos céus!
Grande abraço!
Ednir Studart
É meu amigo...a vida é um mistério inexplicável!
ResponderExcluirQuanto mais tentamos entender certas partidas...menos compreendemos.
Cláudinha bem sabemos,que é tudo isso que você conseguiu relatar e muito mais...
Rogo à Deus todos os dias por sua mãe,seus filhos...que tenham força,fé,LUZ,serenidade e aquela garra que fazia parte do comprometimento Cláudia,de ser.
Seus textos são sensíveis,verdadeiros...se escrever lhe faz bem...o faça sempre,pois de uma forma,ou de outra,estará ajudando a si,e ao próximo.Grande beijo no coração!