Sei que não acreditarão
– ligou-me hoje o Amorim. Muitos de vocês não o conhecem posto que me leiam há pouquíssimo
tempo. Se quiserem conhecê-lo, poderão ver suas inúmeras histórias e peripécias
em meu blog “O Desocupado” (fecavalcanti.facilblog.com).
Há vários meses
o amigo não aparece. Julguei que as estradas da vida estavam a levá-lo para
longe de mim como sói acontecer nessa fase. Todos estão muito ocupados com as
bobagens e superficialidades de sempre. Hoje, por exemplo, fazia eu uma refeição
matinal com todas as janelas e portas abertas. Entravam o sol e os ventos por
todos os lados, dando, ao início da manhã, aquela sensação de nossa
perpetuidade individual. Porém, entravam também os sons de britadeiras, de
perfuradoras, de máquinas a trabalhar em construções próximas, anunciando a obstinação
dos homens em eternizar o efêmero em seus sonhos menores. Lutamos por muito
pouco, quase nada. Assim, ao momento dessas reflexões contraditórias, bateu-me
o telefone o amigo.
Estava apreensivíssimo.
Trazia-me um problema que, de tão inusitado, de tão original, deixou-me deveras
preocupado. Confesso: jamais havia passado por minhas idéias semelhante possibilidade
de contrariedades, como verão a seguir.
O que ocorreu
foi precisamente o seguinte. Amorim, um solteirão convicto descoberto ao final
de três casamentos, sentira-se, antecedendo a cada um deles, como o Tomas do
Milan Kundera. Como o personagem do escritor tcheco, a cada uma das mulheres
que Amorim conheceu, antes de levar cada uma de suas “Terezas” ao altar – notem
que “levar ao altar” aqui não passa de uma figura de linguagem – se perguntava,
numa cava angústia: -“Mas seria amor?” E seguia alimentando-se da dúvida
kunderiana: -“Seria melhor ficar com ‘Tereza’ ou continuar sozinho?” E mais. Assumia-se
cada vez mais um Tomas reencarnado a refletir: “não existe meio de verificar
qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação”.
Deu no que
deu, e achava-se Amorim tendo vivido todas as possibilidades com as três mulheres
com quem contraiu matrimônio. Para completar o quadro de tantas e tantas
semelhanças com o personagem, em sua solteirice encheu-se Amorim de amantes. Aquele
diferia de Amorim em único aspecto: casara-se somente uma vez. No mais, seriam idênticos.
Dir-se-ia que o amigo via no romance a enciclopédia para sua vida amorosa. Até a
regra que Tomas ensinava aos amigos ele seguia à risca: “É preciso observar a
regra de três. Pode-se ver a mesma mulher em intervalos bem próximos, mas nunca
mais de três vezes. Ou então vê-la durante longos anos, mas com a condição de
deixar passar pelo menos três semanas entre cada encontro”. Eis aí o pano de
fundo sobre o qual veio se depositar o inusitado.
Amorim envelhecera
e, sabem lá os proctologistas, às vezes alterações digestivas ou mudanças de
estilo de vida, da alimentação, ou seja lá do que for, levam ao aparecimento de
molestos sintomas, de menor importância no prognóstico, mas bastante tormentosos
ao dia a dia – Amorim adquirira uma flatulência de grau, digamos, importante. E
me dizia aflito: -“Sabes que as esposas toleram essas coisas, mas não as
mulheres com quem ainda não temos intimidade...” Fui obrigado a concordar e a me
solidarizar com o amigo. Sobre o pano de fundo da insustentável leveza dos
relacionamentos de meu amigo pairava a insustentável leveza de seus gases
intestinais a terrificá-lo a cada momento em que desfrutava da companhia de uma
nova namorada.
Que fiz eu? Que
poderia fazer? Sugeri duas, ou melhor, três abordagens: que doravante em hipótese
nenhuma ingerisse qualquer alimento ou bebida gaseificada por pelo menos três horas
antes de estar com a pequena; que descobrisse de imediato qual, dos alimentos que
ingeria, aquele responsável por sua situação desconcertante; que ficasse íntimo
das pequenas o mais rápido possível. Das três não lhe agradou a última que, segundo
ele, quebrava a regra central de sua vida “sentimental”. Restou-me, então, a
prescrição do Luftal como abordagem de urgência, já que um novo encontro se
desenhava para breve.
Vejam vocês que
o amigo me procurou apesar de sabedor de meu fracasso como proctologista,
confissão que fiz com prazer já há algum tempo (http://fecavalcanti.facilblog.com/Primeiro-blog-b1/Proctologista-fracassado-b1-p4.htm).
Como escrevi lá, odeia-se, desde sempre e para sempre, o proctologista. Talvez
para o amigo seja melhor odiar a quem já se ama. Melhor isso do que exposições desnecessárias
a um desconhecido cutucador das partes pudendas.
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