quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Quem há de punir o Estado?



“Quando não se pode fazer o que se deve, deve-se fazer o que se pode.”

Devem saber da fábula – nem mesmo estou certo de sua existência – que conta o que acontece ao se pôr o lobo a tomar conta das ovelhas. Se tal fábula existir somente em minha alvissareira mente, ainda assim ela seria perfeitamente verossímil. Ainda havendo quem duvide, troquemos o lobo por um tigre faminto ou qualquer outro carnívoro de dentadura fenomenal. O resultado seria a certeza do destino cruel e sanguinolento dos pobres e indefesos bovídeos.
            Da mesma forma, não tenho certeza se os conselhos regionais de medicina, e mesmo o conselho federal, seriam entidades ligadas ao governo. Parece-me que são de fato, tendo em vista que os inadimplentes para com eles correm o risco de terem suas dívidas passadas à dívida ativa da União. Então, os conselhos são um braço do governo. E para que servem os conselhos regionais de medicina em cada estado da federação? Estou completamente desinformado, mas, ao que me consta, uma de suas funções é fiscalizar o exercício da medicina.
            Deixemos a ignorância de lado. Os conselhos regionais são autarquias e têm responsabilidade jurídica de direito público tal qual a União e os Estados da federação. São órgãos fiscalizadores, disciplinadores e julgadores da classe médica. Eis aí tudo.
            Eles fiscalizam, julgam e eventualmente punem médicos que cometem erros. A mídia adora quando surge um caso de suposto erro médico. As audiências aumentam nos horários nobres e elas faturam um bocado com os anunciantes. Os conselhos ficam lá, quietinhos, enquanto o médico acusado sofre um pré-julgamento implacável. Em silêncio o julgam e, se são inocentados, o dano midiático permanece indelével e perene. Se os conselhos ratificam a condenação da mídia, uma se soma à outra e o profissional com justiça e corretamente paga por seu erro.
            Estou aqui a ler o Jornal do Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará, em sua edição nº 89, ao mesmo tempo em que leio a Constituição Federal. A Constituição, em seu artigo 6º, diz o seguinte: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Já o artigo 30 diz: “Compete aos municípios: VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população.” No capítulo II Seção II – Da Saúde, artigo 196, está determinado: “A saúde é direito de todos e dever do Estado,...” E o artigo 197 diz: “São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.”
            A conclusão a que cheguei foi a seguinte: se a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, e se o Estado executa as ações de saúde diretamente ou através de terceiros e também por pessoa física (os médicos), então também o Estado deveria estar sujeito à fiscalização, disciplinação e julgamento pelo Conselho Federal de Medicina. Por quê? Vejamos.
            Diz o jornal, em seu editorial escrito por seu Presidente, que a Prefeitura de Fortaleza deve a seus médicos, só em gratificações atrasadas, a importância de onze milhões de reais. Até aí nada demais, num Estado em que seu governador tem a firme convicção de que o funcionalismo público deve trabalhar por amor, e somente por amor, não importando se tem ou não contas a pagar. Pior é o outro lado do palco – faltam médicos em número e de especialidades necessárias ao bom funcionamento dos serviços de emergência. O resultado é que muitos pacientes não são atendidos ou são atendidos quando seu quadro já se agravou. Como escreveu o editorialista, “surgem dilemas quanto a quem atender primeiro e o que fazer com os que ficam à espera, além da percepção de que tal cenário é propício à ocorrência de atitudes hostis e até mesmo agressões”. E mais: “o retardo no atendimento a alguns pacientes pode resultar em prejuízos graves para a saúde dos mesmos”. Além disso, faz menção ao sucateamento do equipamento necessário ao atendimento. Finaliza garantindo que “o Conselho Regional de Medicina do Ceará continuará atento e participativo na luta para que os médicos etc. etc. etc...”
            Poderia o Conselho punir o Estado do Ceará e/ou o município de Fortaleza por sua irresponsabilidade e péssima prestação de atendimento à saúde da população, ao contrário do que manda a Constituição Federal?
            Em brilhante e esclarecedor artigo publicado na mesma edição, o ilustríssimo conselheiro e Professor Dalgimar Beserra de Menezes diz tudo de forma clara e concisa: “tudo o que se tem (na prestação de serviço médico ao paciente do sistema único de saúde do governo), em todos os níveis, é precário, o que nos coloca muito aquém da expectativa, distantes do ideal. O paciente, usuário do sistema, adota a perspectiva do ideal inalcançável. Tudo o que se faz, sem quase exceção, está distante dessa perfeição. Defasagem óbvia entre o real e o imaginado, o proposto e o prometido, engendrando, em parte, o que se chama de erro médico.” E deixa entendido entre as linhas o médico como vítima de um sistema caótico e instituições sucateadas, quando diz: “... o médico sairá limpo se fizer tudo o que puder , com o que dispuser para fazer, em termos de atendimento, diagnóstico e tratamento.”
            Eis que se faz novamente necessária a pergunta: poderia o Conselho punir o Estado e o município por não cumprir o que manda a Constituição? Resposta: não – o Conselho fiscaliza, disciplina e julga médicos pessoas físicas. Mas o Estado não “exerce” a medicina, como reza a Constituição? Quem há de fiscalizar, disciplinar, julgar e eventualmente punir o Estado?

2 comentários:

  1. Caro Fernando
    Bastante pertinente sua argumentação sobre a penalização aos gestores da saúde, no momento em que estamos mergulhados num verdadeiro caldeirão caótico e assustador no que se relaciona aos serviços públicos de saúde, prestados aos cidadãos mais carentes, de forma precária e desumana... o acúmulo de pacientes nos corredores dos grandes hospitais públicos, já não assusta mais a ninguém, pois virou uma rotina degradante e cruel. Não consigo vislumbrar uma saída viável e a curto prazo para um problema que se agiganta a cada dia e diante do qual nos sentimos impotentes e desestimulados.

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  2. Concordo com tudo meu amigo!Infelizmente estamos no meio deste caos,como profissionais praticamente tão desamparados quanto à população;a diferença é que nesta corda bamba o risco é grande demais para quem participa de todo este contexto pra quem tá no meio de todo este furacão.Pra boa parte da população nós médicos somos os responsáveis por tudo de ruim que acontece na saúde.É pra cima do médico que vem toda a revolta acumulada nas filas imensas do SUS.E como diz este jornal do CREMEC hoje qualquer desculpa é um bom motivo para um processo no CREMEC e na justiça.Realmente o Cremec está pronto pra nos julgar a qualquer instante,e entre os médicos e seus empregadores,ou seus exploradores( planos de saúde),o Cremec fica calado.E quem cala consente. Coloco aqui os planos de saúde como exploradores,não só pelos vergonhosos valores pagos pelos honorários médicos,mas também por não darem aos médicos os Direitos mínimos de cada trabalhador,tipo férias,décimo terceiro e licença-saúde...Quanto a esta visão distorcida que o médico deve trabalhar por amor,isto é algo tão incultido na mente das pessoas,que qualquer um se acha no direito de nos cobrar de forma indireta este "amor-desinteressado".Eu não me importo de trabalhar por amor,contanto que estas pessoas que assim pensam assumam minhas contas a pagar...é uma troca justa !!!

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