ESCREVEU-ME o
Motta para me lembrar a frase de Bernard Shaw que diz que “é perigoso ser
sincero, a menos que seja também estúpido”. Não sei por que cargas d’água ele
me veio com essa, e já começo a suspeitar que tenha o Motta cometido o pecado
de desobedecer ao que manda a frase. Terá, talvez, sofrido as conseqüências de
ter sido estúpido. A verdade não é uma faca de dois gumes – ela tem um só, mas
é afiadíssimo.
O
diabo é que me espicaçava o espírito uma idéia semelhante, a saber, a de ser
sincero sobre determinado assunto. O tema me tem sido recidivante, ou me tem
sido oferecido com demasiada freqüência para que o despreze.
Somos amiúde escravizados
por idéias ou por pessoas. De fato, são sempre as pessoas a nos pretender
escravizar. Idéias não nascem das rochas ou do asfalto quente – elas nascem nas
mentes de pessoas. São geradas com uma infinidade de propósitos, e mesmo
espontaneamente. Com muita freqüência já nascem para escravizar. As pessoas têm
inteligência e a inteligência não é nada santa.
Há também os
sistemas e os paradigmas escravizantes. Eles têm uma aparência inocentíssima,
mas suas correntes e algemas não se desamarram facilmente. Uma vez em suas
garras o sujeito estará embrulhado com lacres e tudo. O pior é que muito de
tudo isso é perfeitamente evitável, e mesmo os sistemas que escravizam
funcionariam melhor se se utilizassem de pessoas livres.
Não sei se já
ouviram falar do senhor Ricardo Semler. Ele é chefe-executivo e sócio
majoritário da empresa SEMCO S/A,
“empresa brasileira conhecida por sua implementação radical dos conceitos de
democracia industrial e reengenharia corporativa”. Além disso, ressalte-se que
“sob sua gestão os rendimentos da empresa cresceram de quatro milhões de
dólares em 1982 para 212 milhões de dólares em 2003” . O senhor Semler libertou
sua empresa para crescer por ter libertado seus colaboradores. Em suma, o
senhor Semler mostrou o que se pode realizar quando as pessoas são livres no
trabalho.
Outro dia
falei do ponto do IJF. Uma engenhoca eletrônica é lá utilizada para registrar a
hora de entrada e saída dos funcionários do hospital, dentre eles os médicos
diaristas. O que fazem os médicos diaristas daquele hospital? Depende da clínica
a que pertencem, mas, no geral,
promovem a complementação do tratamento definitivo dos pacientes atendidos na emergência,
vítimas da violência descabida em nosso meio ou de acidentes. Em algumas clínicas
os pacientes recebem tratamento definitivo, provido pelos médicos diaristas, de
doenças crônicas, mas a missão maior do hospital é o atendimento de urgência e emergência.
Antes de
seguir adiante, relembro – estou para ser sincero e, portanto, estúpido. A certa
idade não é elegante o ser, uma vez que a sabedoria manda o contrário. Contudo,
deixar de ser sincero a esta mesma idade fere o espírito de destemor que se
achega nessa fase da vida. Assim, há aqui um aparente dilema inconciliável. Há aqui
ideias mutuamente exclusivas.
O que quero
dizer é que cobrar do médico não plantonista horas rígidas de permanência no
hospital no intento de fazê-lo cumprir uma “carga horária” é tão colegial
quanto – aqui sim! – estúpido. Médico não é mecânico de linha de montagem nem
vendedor de loja de varejo. Médico não produz, uma vez que o doente não é um
item. Nem mesmo saúde produz o médico. Saúde se produz com educação em massa e
de boa qualidade. O que faz o médico, afinal? Resposta: cuida. O que se pode
cobrar do médico, então? Resposta: que cuide.
Há lá, no IJF,
médicos cuja folha de ponto é um primor, mas de ninguém cuidam. São a esses que
se está pagando tributo ao se aceitar a “carga horária” como a medida de
trabalho do médico. Estúpido sou eu em minha sinceridade ou os gestores em sua paleozóica
obtusidade?
Os gestores crêem que, ao cobrar jornadas de 44h, estão a incrementar a "produtividade". Quer estupidez maior que cobrar de advogado a permanência por 9h a fio dentro do escritório? Tão somente para poder dizer "eu tenho advogados".
ResponderExcluirOps, tive um ataque de estupidez... rsrs