Poderia ter preenchido três ao invés de dois atestados de óbito. O terceiro foi feito pelo colega do CTI, já que o paciente lá estava.
O primeiro morreu no fim da tarde, sem ambas as pernas. Eu estava no bloco cirúrgico quando me chamaram às pressas, alguém dizendo que um dos doentes passava mal. Quando cheguei à enfermaria ele já estava morto. Ensaiei uma massagem cardíaca como se tivesse a obrigação daquela manobra nestas situações, mas sabia que ele já se fora e nada poderia trazê-lo de volta. Ademais, o que ele faria sem as pernas? Era muito pobre, socialmente ele não existia havia tempo, coitado. Pude perceber a dureza e inelasticidade de seu tórax; com certeza lhe quebraria algumas costelas se insistisse em massagear. Também não pude deixar de notar que seria preciso deitá-lo ao chão caso houvesse uma chance de reanimá-lo, pois seu leito era fofo e não havia uma tábua que pudéssemos usar para apoiar durante a massagem. Suas feridas cirúrgicas estavam semi-abertas e a pele em torno anunciava a gangrena. O pus escorria malcheiroso. A cena era patética. Foi inevitável lembrar que ele chegara andando, ainda que ciente da ameaça de perder uma das pernas. Pois bem: a doença comeu a perna doente e o doutor comeu a sadia. Em consequência, a morte. E lá foi-se seu Hermes de Oliveira.
O segundo morreu à madrugada, eram duas e meia. Acordei sobressaltado, a menina me chamando na enfermaria para fazer o atestado de óbito. Ela internara dias antes e também tinha a perna ameaçada pela gangrena. O pior é que seu coração era fraquinho e não suportou as duas operações. Poderia ter sido só uma, mas o doutor resolveu que seriam duas, para aumentar o risco. Tivera uma apoplexia após a segunda operação. O fato é que aumentaram-lhe as chances de ter complicações e aí está a lei de Murphy que não me deixa mentir. Tudo poderia ter dado certo mas não se providenciaram os preparativos e as assistências necessários. Com efeito, e para falar a verdade, o hospital não é um hospital. São vários hospitais funcionando em único edifício. Tem gente de todas as especialidades médicas, mas ninguém se mete com ninguém. Em outras palavras, dissecaram a medicina que, no caso, chama-se "merdicina". O doente da cirurgia vascular, que também é doente do coração, e do pulmão, e dos rins, e dos olhos, e do cérebro, vai ter seus vasos desentupidos a qualquer custo, não importa que morra por outros motivos. Afinal, o doutor todo-poderoso cirurgião vascular tem que chegar à beira do heroísmo. Os outros, que não cuidaram devidamente do paciente, que assumam a sua responsabilidade. Isso sem falar no grande e verdadeiro responsável: o doente. Sim, o doente carrega duas culpas: a primeira por ter caído doente; a segunda por ter nascido no país de faz-de-conta-que-se-faz-medicina. E lá se foi dona Manoela Damaso.
O terceiro morreu e só fiquei sabendo pela manhã. Foi o doente operado no dia anterior. Ou seja, não durou nem doze horas após acabada a operação. Acho até que durou muito. Pensei que fosse morrer na mesa, tamanha a agressão do ato. Sangrou todo o seu sangue e mais o transfundido. Perguntava-me como pode um paciente sangrar na mesa daquela maneira e quase nada ser feito pela equipe para evitá-lo. O pior é que o operador cantarolava uma música idiota enquanto dilacerava-lhe a aorta. Alguém, lembro-me, chamou a atenção para a situação crítica, mas de nada adiantou. Preferiu-se "dar sopa" pro azar. Claro é que isso é conversa fiada. Azar é se atravessar a Presidente Vargas segunda-feira às cinco da tarde, sem olhar para o lado, e ser atropelado por uma vaca. E que tal lembrar-se do adágio cirúrgico "first, do no harm"? E lá foi-se seu fulano de tal, pois nem cheguei a conhecê-lo, já que foi uma operação de urgência. Durante a operação se confirmou o que já se sabia com certeza – não havia urgência alguma. Se houvesse ele teria sido operado há quatro dias quando lhe foi constatada a suposta urgência.
Que será que diria o Richard Gordon ao saber de tudo isso? Presumo que iria querer incluir na próxima edição de seu "Os grandes desastres da medicina", cedendo-me parte dos direitos autorais. E eu bem que aceitaria. A diferença é que as vítimas, nas minhas histórias, eram eminências pardas.
Rio, 26.11.1998
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