Perguntou o nosso governador, após receber críticas pela "festa" de inauguração do Centro de Eventos do Ceará em que o governo pagou 3 milhões de reais por ela e onde o tenor Plácido Domingo foi a atração principal, além de "somente" 3 mil pessoas terem sido convidadas: -"E quais pessoas seriam convidadas?" E justificava: -" Fortaleza tem dois milhões e meio de habitantes! "
Eis que hoje abro "O Povo" e me deparo com matéria publicitária do "Governo do Estado do Ceará" promovendo a grandiosidade do mesmo Centro. Está escrito assim: CENTRO DE EVENTOS DO CEARÁ - O BRASIL CABE AQUI. De imediato pensei, como uma possível resposta a ser dada ao nosso ilustre funcionário público número 1: -"Todos seriam convidados, ora essa! Não cabe lá um Brasil inteiro?" O diabo vai ser encontrar um cidadão honesto com coragem o bastante para lá ir lhe dar a topetuda resposta.
É provável que alguém no palácio, um ouvidor talvez, responda pelo homem dizendo que a peça publicitária apenas e tão-somente carrega uma força de expressão, uma espécie de figura de linguagem, e nada mais. O caso então será silenciosamente encerrado e quem foi, foi; quem não foi, não foi. Até porque ao dia seguinte do evento exclusivo para very important persons, o Centro de Eventos ofereceu circo à vontade do povo. Apresentações diversas fizeram a alegria da plebe local, que já deixou a mixuruca polêmica por conta de pouca conta.
Não seria possível uma tão perfeita coincidência na mesma semana que passou o Ziraldo, que, acho, é beneficiário de uma gorda pensão do governo por ter sido perseguido político durante os nossos "anos de ferro", vir de lá não sei onde e afirmar de fronte alta e erguida: -"Muitos pais não percebem, mas seus filhos se tornaram idiotas." Observe-se que uma frase como esta perde toda a sua força provocadora individual quando dita assim, publicamente, coletivamente, impessoalmente. Seria o caso, me parece, de ter ido o Ziraldo na festança milionária do governo desse paupérrimo estado e, após vênias e pedidos humílimos de desculpas ao senhor Domingo, anunciar, como diria Nelson Rodrigues, de olho rútilo e lábio trêmulo, essa verdade incontestável – a tautologia é a propósito – a cada um dos presentes, olhando-os bem nas fuças.
Mas o que mais me chamou a atenção foi o que disse nossa agastadiça e espevitadíssima prefeita Luizianne Lins a propósito do caos mais que instalado e vigente na saúde(?) pública de nossa Fortaleza: -"O Governo do estado deve muito a Fortaleza." Destrinçando seu discurso, ela está convicta de que o município de Fortaleza, sob sua gestão, tem feito a diferença para melhorar o quadro que ora vemos. Para ela, Fortaleza está ajudando o governo do estado por estar recebendo o "refugo" de pacientes vindos de municípios do interior.
Que está recebendo isso ninguém há de negar ou contradizer a prefeita, mas quanto a estar isso fazendo a diferença, vamos e venhamos – não faz a mínima. E não faz porque os hospitais da cidade estão trabalhando acima de sua capacidade resolutiva. Eles conseguem resolver os casos de ou lidar com determinado número de pacientes. Acima desse limite, que é inerente a qualquer sistema, tudo pode acontecer com o "excesso". Veja-se, por exemplo, o que ocorreu outro dia em um dos hospitais "da prefeita".
A sala de recuperação pós-anestésica estava abarrotada de gente e o paciente, um jovem de vinte e poucos anos, que havia sido operado de apendicite aguda, cobrira-se inteiramente com o lençol de sua maca. Tinha frio, talvez. (Quem já viu aquela sala de recuperação sabe que ela "transborda" pacientes para os corredores e até para as salas de operação mais próximas; qualquer dia desses "transbordará" pacientes a todas as salas de operação e o Centro Cirúrgico do hospital entrará em colapso. Não será possível operar alguém.) A equipe de funcionários do setor – médico, enfermeiras e auxiliares – permanece inalterada em número, de modo que é bem possível que detalhes gritantes passem despercebidos de sua atenção. E o que aconteceu foi que o jovem foi encontrado sem vida sob os lençóis quando, momentos depois, teve a atenção da equipe voltada para ele. Do ponto de vista puramente técnico caberia a pergunta: o que teria ocorrido?
Eis, então, que fica evidente a verdade hedionda – todos somos co-responsáveis e co-participantes do sistema assassino que fundamos e mantemos. No caso particular que usei como exemplo vislumbra-se apenas o caráter irresponsável, incompetente e ignorante de nossos políticos e executivos públicos. Eles fazem suas m... porque nós lá os colocamos. Desse ponto de vista indagar-se-ia: é possível dormir assim? A culpa diluída é semelhante à impessoal frase do Ziraldo dirigida a todos e a ninguém. Não se pode condenar uma massa, um povo, uma multidão, uma população de eleitores, de maus eleitores. Essa é a medida de nossa mais completa e necessária alienação. Sem ela não nos seria possível dormir. Melhor ir às nossas intermináveis e diárias baladas, onde esquecemos de tudo e nos embriagamos de mais ignorância e mais nos misturamos. Nossa face permanecerá, assim, oculta em meio à manada da qual fazemos parte.
Magnífico seu artigo, tanto pelo refinado senso de humor ao relatar a triste e dantesca realidade, bem como pela coragem de dar nomes aos bois. Por ocasião do episódio do Plácido no Palácio do Imperador, fiz ALGUNS COMENTÁRIOS ACERCA DA LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA E TRIBUTÁRIA SOBRE O SHOW.Em suma indagava se alguém me perguntou se eu gostaria de pagar 3 milhões num show e depois não ser convidado.E por aí derivei.Recebi uma chuva de comentários de que "Inveja Mata", como se o fato de ser conivente com ilicitudes fosse motivo para inveja. Outros me aconselhavam a tirAR O COMENTÁRIO DO MEU PERFIL, caso contrário poderia perder emprego ou ter negócio da família prejudicado. Tirei. Tenho filho e por isso :medo. Parabéns pela liberdade e pelo belo artigo.
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