Outro dia, não faz muito tempo, encontrei meu mui querido e estimado amigo Paulo Dourado. Foi numa feijoada da Unimed, a propósito das eleições. Não sei se sabem, mas tenho por ele um carinho especial. Ele é um homem afetuoso, manso, humilde e culto. Afora toda essa lista elogiosa e suspeita, o amigo é médico de branco, no dizer de Pedro Nava; de uma brancura rara nos tempos atuais.
O Paulinho é cirurgião geral e trabalha com meu outro mui caro amigo Fernando Siqueira, cirurgião de mão cheia, e escritor de mão mais cheia ainda. (Este Siqueira era dos que tomavam comigo e uma penca de outros estudantes maristas o ônibus da antiga linha Quitandinha de volta aos nossos lares terminadas as aulas, lá pelos idos anos '70. O assunto dá trela para maiores considerações noutra oportunidade.) Ambos foram dos pioneiros a fazer avançar, no Ceará, a operação anti-refluxo por via laparoscópica e, algum tempo depois, a operação bariátrica para a obesidade mórbida, seguindo os passos, nesta última, do também estimado doutor Luís Moura. A dupla já reuniu elevada casuística nessas operações e o Paulinho já esteve, se não me engano, mais de uma vez na Europa a apresentar sua experiência com a técnica das operações e os bons resultados obtidos por eles.
Ocorre que, como diz o meu querido Siqueira, eu sou um sacana. Ao que me parece, no melhor dos sentidos. E por que diz isso o amigo de desde o tempo em que usávamos cueiros? Ora, o caso é de uma simplicidade como qualquer das quatro operações matemáticas. Vamos a ele.
Não pude deixar de me encher de vaidade e orgulho por ter como amigos dois expoentes da medicina do estado que já começavam a ganhar o mundo. Vamos e venhamos: - não é todo mundo que tem amigos famosos. Até bem pouco tempo o amigo mais famoso que eu tinha era o Casoba, vastamente conhecido até o dia em que resolveu dar sumiço em si mesmo, dar cabo da própria fama, desaparecer da vida como se já defunto fosse. Era tão famoso o Casoba e tão unha e carne comigo que eu não podia adentrar uma sala, uma bodega, uma oficina mecânica, um bar, um hospital sem que me perguntassem do homem. Os mais abusados diziam: -"Cadê o guarda-costas?" E outros: -"Como vai 'a sombra'?" Sim, era famosíssimo o Casoba, mas apenas por essas paragens; não na Suécia ou em França. Nem em Sobral, donde é filho o sumido amigo, se ouve mais falar dele. Assim, com o sumiço de meu mais famoso amigo corria eu o risco de perder o elo com o mundo da fama e da glória. Foi justamente nesse interlúdio que me chegam ao auge os amigos Paulinho e Siqueira. Já bateram, inclusive, o ex-famoso Casoba. Mas vejam que tanto falo e não falo do Paulinho.
Nosso encontro foi repleto de calorosos e apertados abraços, como sói acontecer entre os que verdadeiramente se gostam. Ali mesmo, em meio àquela multidão, perguntei em alta voz se havia ali alguém que não conhecesse aquele "pica-grossa".
Ninguém pense que vai aí um termo chulo na caracterização do amigo. Para os que não sabem, "pica-grossa" é o sujeito que logra o posto da autoridade, do reconhecimento por feitos inéditos, da iconicidade em sua área de atuação. Destarte, desde que a dupla de amigos alcançou o disse-me-disse do glamour científico sempre os trato exatamente como exige seu posto: -"Como é que vai esse cirurgião 'pica-grossa'?"
E onde quer que seja, ao encontrar um ou outro, já vou cumprimentando: -"Bom dia, 'pica-grossa'!" Eles, por sua vez, viam nesse meu fanatismo incontido uma gozação, uma mordacidade, uma pilhéria de minha parte, e riam-se a não mais poder. Só levaram a sério a minha admiração e tributo quando pus em suas mãos minha mãe para se submeter a uma operação. Entrei na sala e, para não perder a viagem, bradei: -"Como vão os meus amigos 'picas-grossas'?" Desnecessário salientar que a operação foi um sucesso.
Dias depois reencontro o Paulinho à entrada do hospital. Puxa-me pelo braço a um canto e me diz com um sorriso aberto nas faces coradas: -"Lembrei-me de ti ontem, no consultório!" Quis saber: -"Por quê, 'pica-grossa'?" E passou a relatar o caso de uma senhora que ele operara. Era um enorme tumor de fígado nesta senhora, que viera do Norte procurar o famoso amigo. A fama faz dessas coisas milagrosas: põe face a face a oportunidade e o preparo. E dizia-me ele que era um tumor verdadeiramente gigante.
Para os leigos devo esclarecer: - o fígado é um órgão difícil de se abordar cirurgicamente e, por isso, requer por parte do cirurgião que opera conhecimento anatômico detalhado, tirocínio cirúrgico, audácia consciente, habilidade, técnica cirúrgica apurada e experiência. Em suma: o cirurgião tem que ser bom!
Pois o Paulinho me dizia que arrancou o bicho inteirinho deixando à paciente uma nesga de tecido hepático que será o suficiente a que ela viva uma vida normal e confortável. Em outras palavras, curou a paciente.
Eu quis saber: -"E onde entro nessa história aí, Paulinho?" O sorriso se abriu ainda mais; ia de orelha a orelha: -"A paciente foi tão bem ao consultório que olhando para ela eu pensava: 'sou um cirurgião pica-grossa mesmo!" Gargalhei tão alto que os transeuntes se viravam a olhar pra mim.
Dr.Fernando Cavalcanti e seus termos excêntricos e surpreendentes...Parabéns,crônista do "Pica-grossa assumido",por mais uma crônica divertida, do teu cotidiano!
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