quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Costinha e seu amigo da "alta"


            Costinha orientava o tratamento da infecção do João Batista, paciente do IJF e conhecido presidiário. De tanto conversar, diante do doente, com os residentes e outros componentes da comissão de infecção, João já ia aprendendo o palavreado dos doutores médicos. (Há doutores que não são médicos, até motivo da vontade de alguns de parar de chamar o doutor de doutor.) João já absorvia o jargão por osmose. Mas ficava quieto, ali no cantinho dele, deitado em seu leito hospitalar, submisso ao que lhe era prescrito. Era presidiário, ‘tá certo, por coisas que havia feito no passado não muito distante. Nem por isso era mau. Sabia lidar com gente, no bom sentido. Nem sei se o que fizera havia sido mau, se havia ferido alguém, se havia surrupiado o patrimônio alheio, se havia se envolvido com a gente do tráfico. Sei lá. Se sabia lidar com gente é porque sabia argumentar. E quem sabe argumentar, sabe convencer, ou se deixar convencer.
              Assim, certo dia, lá vinha o Costinha para mais uma visita ao João. Mal chegou e o João já foi dizendo: -“Doutor Costa, vamos discutir o uso desse Cipro! Eu acho que o caso é de cirurgia...!” Doutor Costa respondeu na bucha: -“Também acho, João!”
              (Agora lembrei. João havia trocado uns tiros com os policiais federais. A bala havia lhe estraçalhado o fêmur. Estava internado há quase quatro meses. Parece que João era mesmo bisca.)
              O diabo foi na hora da alta. Costinha vinha chegando e foi logo vendo aquele monte de gente, policiais que iriam escoltar o João ao presídio. Quando viu Costinha chegando, João esbravejou: -“Agora eu vou! Num podia ir-me embora sem falar com ele". E, virando-se p'r'os homens cobertos de coletes e cintos entupidos de balas, avisou: -"Doutor Costa é meu amigo, pessoal!”, ao que Costinha se apressou em temperar: -“Menos, João... Assim os meninos vão querer me levar também!” E assim levaram o pobre e preso João Batista.
              Contei esta pequena história apenas para que se torne do conhecimento de todos o lado mais romântico de se trabalhar em hospital que atende vítimas da violência. Em Fortaleza, onde a violência grassa solta devido à greve branca dos policiais militares e à incompetência do governo, esse papel compete, principalmente mas não somente, ao Instituto Doutor José Frota (IJF). Ao início dos anos ’80, quando comecei a frequentá-lo como acadêmico de medicina, havia bem menos violência na cidade. De lá para cá o IJF também cresceu, mas em proporção infinitamente menor que ela. Pior. O crescimento da violência é contínuo e diário. Diria, usando uma do Nelson, que a cada quinze minutos a violência aumenta em Fortaleza. O IJF não. O IJF não dá crias nem cresce da noite para o dia. Se as autoridades resolvessem construir mais três IJF, ao final da obra precisaríamos de mais seis.
               Se fôssemos um povo sério e sábio, geraríamos políticos à altura. E nossa sabedoria dir-nos-ia: - combatam a violência ao invés de construir mais hospitais. É mais barato.        
               Enquanto tudo isso ocorre, o que fazemos? Que fazem nossos “grandes” homens? Resposta: - discutem e debatem o óbvio. (Debater o óbvio é um deslavado sinal de atraso.) E pior. Quando falam nossos “grandes” homens, nossa imprensa faz um profundo e solene silêncio para ouvi-los e, em seguida, deitam suas palavras a suas manchetes sem nada lhes questionar. Não dão um pio. Melhor dizendo, dão, sim. Implicitamente, e muitas vezes explicitamente, dizem: -“Amém! Amém!” Há ainda o pior de tudo. Os ouvidos do povo recebem de bom grado a essa enxurrada de cretinice.           
               Por exemplo, a lei. A que nos tem servido a lei? Tomemos um exemplo de como vê a lei o cidadão de bem e o bandido. Para isso lancemos mão de fato corriqueiro às dependências do IJF. Nas enfermarias estão os bandidos, e ressalvo: - não há somente bandidos nas enfermarias do hospital. Há pessoas vítimas de acidentes e de contingências da vida, as doenças. (Dirá alguém que doenças não serão contingências: - são certezas, mais cedo ou mais tarde.) Há também as vítimas dos bandidos. E que fazem os bandidos e seus acompanhantes? Agridem o pessoal da enfermagem. Pode ser que alguém indague "como assim? agridem..."? Muito simples: - ameaçam, xingam, tratam com rudeza e desacato, e por aí vai. 
               O pessoal da enfermagem está trabalhando. Varam horas de plantão cuidando, dando assistência, prestando atendimento e aliviando o sofrimento de todos os pacientes internados. Em suma, esses senhores, esses bandidos, violentam diuturnamente os dedicados funcionários do hospital, o mais das vezes mulheres, embora os homens não estejam livres deles.
               Há uma lei no Código Penal (artigo 331) cujo preceito primário diz "desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela" e estabelece a sanção (detenção, de seis meses a dois anos, ou multa). Várias e repetidas vezes esses funcionários relataram esses fatos em seus relatórios de trabalho e os comunicaram a seus superiores hierárquicos. O que se fez? Resposta, vergonhosa resposta: - absolutamente nada. Os vários diretores clínicos e os vários superintendentes que se permutaram em seus cargos nada fizeram. Fazem de conta que o fato é uma alucinação coletiva desse povo da enfermagem.
               Perguntados pela razão de não prestaram queixa na delegacia, os funcionários responderam que temem por sua segurança quando da alta hospitalar desses facínoras. O temor dessas pessoas é mais do que legítimo. Há cerca de um mês (31.07.2013) um bandido invadiu as dependências do hospital e matou a tiros, na cara dos policiais que fazem a segurança (?) do hospital, um paciente que saía de alta para casa. Mesmo permanecendo eles internados, os acompanhantes desses elementos, que também costumam ameaçar e intimidar os funcionários, podem muito bem "arranjar" para que algum deles sofra as "sanções" que a ética dos criminosos impõe.
              Esses fatos são, ao contrário do cômico episódio entre doutor Costa e o presidiário, a face mais hedionda e vergonhosa da rotina daquele hospital: - o cidadão de bem, servidor público mais vulnerável à violência pela própria natureza de seu trabalho e do público com o qual lida, não vê na lei um refúgio, uma proteção. A lei, branda com os criminosos, não é crível; é motivo de pilhéria e chiste entre os marginais, bons conhecedores que são de sua ineficácia. Estes, por sua vez, sabem bem pôr seu "código" para funcionar. Ai daqueles que lhes ameaçam com queixas-crime. Daí o silêncio dos servidores em relação à autoridade policial. Ela não tem competência para proteger o cidadão comum; apenas as pessoas do governador, do prefeito e seus familiares.
               Há mais. Há a intenção dos senhores legisladores de mudar a lei, segundo a reportagem que se encontra em http://www.jornalnanet.com.br/noticias/4862/desacato-a-funcionario-publico-deixa-de-ser-crime . Observe-se que pelo menos um mérito há na mudança que se trama: - a inócua lei deixará de existir ou existirá com outro texto e será uma nova lei, já que a que existe não funciona mesmo. Será aparentemente, e apenas aparentemente, mais dura, mas permitirá ao bandido reverter e inverter a acusação quando acusado pelo servidor público. Como estamos a viver sob a égide dos criminosos, quem os senhores acham que levará a melhor? 
               Pensam que não, mas há mais. Os senhores gestores na pessoa da senhora secretária de saúde do município de Fortaleza e do senhor superintendente do IJF resolveram, em reunião recente com os servidores do hospital, anunciar as mais recentes medidas opressoras contra eles. As novas regras? Nem vale a pena comentar. Ou comentarei noutro texto. Por hora vale chamar a atenção para o grau de inversão de valores a que estamos chegando neste vasto rincão. 
              (Outro dia o Costinha recebeu em sua sala uma ligação de figura ilustre. Era o João Batista direto da penitenciária, ávido para lhe dar boas novas sobre si mesmo. Dizia: -"Doutor Costa, quando falei aqui em minha pseudoartrose a 'negada' ficou tudo doida... Nunca tinham ouvido falar nisso! Tô tão entendido nas 'coisa' que a enfermeira que cuida de mim disse qu'eu devia era estudar medicina! Qu'é qu'o senhor acha?)

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