O ser humano é um eterno inconformado. Se lhe damos as costas quando reclama o isolamento, se queixa; se nos chegamos mais perto quando deseja companhia, se maldiz; se lhe demonstramos desinteresse, implora; se não o amamos, odeia; se lhe dizemos não, vai ao juiz. E quando lhe contamos uma história, quer saber tudo nos menores detalhes, como se fôssemos seus autores, e não a vida. É o caso com a história do apelido que me puseram.
Outro dia, há não mais de uma semana, bate o telefone e eu atendo. Do outro lado uma bonita voz feminina, após uma breve hesitação, pergunta: -“É o Fernando da Gata?”
Desatei a rir. Ambos rimos gostosamente durante longos e eternos segundos. Os mais detalhistas hão de atentar para o detalhe do tempo e do porquê estarei eu a esmiuçá-lo. Ora, tento apenas criar a atmosfera, de modo a que todos se sintam na história e nela acreditem.
A amiga passou, então, a relatar como soubera que o tal Fernando da Gata havia sido um marginal da pior espécie, e como se surpreendera já que julgara que o apelido sugeria que eu fosse objeto do amor de uma bonita mulher.
Ríamos diante de tal engano. Inevitável e imperioso lhe confirmar a história do bandido. Rimos tanto que não tive tempo de lhe contar os detalhes que fizeram perpetuar o nome desse famoso presepeiro através da escolha de meus mais diletos amigos, e que me aquilata o reconhecimento ante tantos fernandos desta geração.
Fernando da Gata ganhou os hospitais, os bares, os restaurantes, os inferninhos, as praias, os plantões, as casas, os amigos e inimigos, conhecidos ou não. A mesma amiga do telefonema, não conformada com a risadaria, me escreveu depois dizendo: -“Fez a fama, deita na cama!” Portanto, a origem do “Fernando da Gata” merece ser do conhecimento geral e irrestrito. É chegado o momento. Aí vai, portanto.
Era o princípio dos anos 80. Maria da Graça Meneghel, a Xuxa, estava no auge. Em minha turma, na faculdade, um amigo branco, loiro, de olhos verdes lembrava a modelo na cor da tez, dos cabelos e dos olhos. É comum – as esquerdas imbecis diriam que é burguês – que a enumeração dessas características suscite em quem ouve ou lê a idéia de um indivíduo cinematográfico.
No entanto, para a frustração de todos devo confessar: o amigo era – e ainda é – muito feio. Eu, sacana de praxe, entediado com as explicações do professor sobre o processo inflamatório agudo numa aula de Patologia, virei-me e falei, apontando para ele: -“Xuxa!”
A turma veio abaixo. Gargalhada geral. Gente pletórica de tanto rir . Em suma, um hilário pandemônio. O professor conseguia, a um custo exorbitante, segurar a gargalhada, inclusive a própria. Assim, o Xuxa tornou-se, naquele exato momento, o primeiro Xuxa do Brasil. Nenhum havia até então. Desnecessário salientar que o colega não gostou do apelido. Mas não houve jeito. Esqueceu-se o nome do homem; era Xuxa pra lá, Xuxa pra cá...! Ele, egresso do sertão, bicho brabo brejeiro, o mato ainda a lhe crescer dentro de si, passou a nutrir por mim o desejo dos homicidas por suas vítimas.
Nesse meio tempo, fugia, pelo sertão mineiro, o Fernando da Gata legítimo, bandido cearense, assassino confesso, ladrão, estuprador, autor de tantos outros crimes. A polícia em seu encalço, todo santo dia a imprensa publicava um pega-não pega-pega-não pega mais feio do mundo. Até que, com efeito, o pegaram. E mataram o homem. Foi a deixa que o colega esperava.
Não sei se lembram-se da propaganda de 1996 do Ministério da Saúde, incentivando o uso do preservativo masculino com o intuito de prevenir as doenças sexualmente transmissíveis. Para não usar termos considerados chulos ou agressivos, a agência de propaganda resolveu pôr um nome na genitália masculina. O nome escolhido foi "Bráulio". Pobres dos bráulios da época!... Se o sujeito se chamasse Bráulio, estava perdido; era foco de toda gozação e pilhéria. O Brasil inteiro passou, desde aquele instante, a tirar sarro de todos os bráulios, vivos e mortos.
O colega, bem antes dessa época, percebeu o potencial do uso, como apelido, de um nome em destaque no momento histórico. No meu caso foi ainda mais fácil, dado o fato de eu ser homônimo do bandido. Tanto foi que, dali a alguns dias, no dia em que a imprensa noticiou a captura e morte do Fernando da Gata, ele virou para mim, no meio de uma aula, usando de minha própria "estratégia" e, apontando-me o indicador, gritou: -"Fernando da Gata"!
Desnecessário dizer que a galhofa foi maior. Afinal, morria ali um Fernando da Gata, malfeitor até o semi-eixo, e nascia outro, bonachão, fanfarrista, brincalhão e dado à alegre algazarra, sonso até o semi- eixo, mas de boa índole e bom caráter: - eu!
Por ser meio “bandido”, o apelido me caía como uma luva. Vejam que o termo “bandido” aqui refere-se à minha personalidade inquieta, desapegada, meio porra-louca para um estudante de medicina. Era uma coisa meio controvertida, meio destoante para a época. Eu não estava muito preocupado com o que normalmente preocupa as pessoas, assim como não estou até hoje. Em verdade, não queria nem quero estar. Mas o meio, este meio em que vivo, é um teste perene, interminável. Ele é a prova viva da banalidade de nosso dia-a-dia, em que só os bons pagam. Acho que vem daí essa dubiedade que existe em mim. Cedo percebi a hipocrisia do meio. O falso ser. A necessidade do ter. O ter sem ser. O ter sem poder. A vaidade de falsamente ser sem ser de verdade. A pompa e o glamour do jaleco sem espelhar os meus sonhos. O destoar da realidade cotejada com meus castelos da mente, na busca de fazer a diferença para o que sofre.
Fernando da Gata era o bandido de minhas virtudes e o terror dos hipócritas de jalecos encardidos. Era o medo dos que faziam as provas estudando pelo caderno copiado nas aulas, contraposto às minhas leituras sinceras nos espessos livros de nossa bibliografia implacável. Era o “Regular” respondido do livro contraposto ao “Excelente” respondido do caderno limpinho e bem feitinho, quando a evidência dos métodos ginasiais no ensino superior me estuprava a inteligência e me entediava.
E, quando queria que se fodessem todos, o “Excelente” lido no livro para aplacar a soberba dos bestas e idiotas. Fernando da Gata foi a minha adaptação, meu modo de “ir ficando”, meu plasma comportamental. Parece até que foi um presságio, um alerta, um grande “CUIDADO!”. Ser Fernando da Gata me tornou desiludível. Como se quisesse sempre dizer que sou falível, e que assim quero continuar sendo. Fernando da Gata me manteve longe das rodas dos “grandes”, da fama fútil, da fama inútil, do desprazer de rir quando quero chorar. Sendo Fernando da Gata choro quando quero e sou sempre o mais humano que posso.
O meu amigo Xuxa deixou de ser Xuxa em breve, e é um cara fantástico, médico de branco, homem de caráter, homem de família. Eu continuo sendo, embora cada vez menos reconhecido, o Fernando da Gata. Ainda que queiram me roubar a pureza, que queiram me roubar a infância adolescente já à beira dos 50, que queiram me tornar um adulto estúpido e insensível, quero continuar Fernando da Gata. Sinto-me mais à vontade, mais irreverente, mais humano.
Por isso, aos mais íntimos amigos rogo: - por favor, não o esqueçam ao epitáfio...!
Fernando Cavalcanti, 20.02.2008
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