Olha, Casoba, o fato é que a doutora era gente boa; pessoa de têmpera leve, feliz, simpática... Sempre me tratou com alguma deferência. Lembra-me nosso tempo de residência médica, ela na Clínica, eu na Cirurgia. Os casos lá internados que se faziam cirúrgicos, ela me chamava. Para emitir pareceres também. Ou outras coisas menores, dissecar uma veia, puncionar uma subclávia, biopsiar uma lesão de pele... E nem era vistosa. Apreciando-se melhor, talvez tivesse alguma graça. Sabes que sou um sujeito extremamente complacente com as mulheres, ainda mais em se tratando de beleza. Ora, que não saltem de lá aqueles linguarudos que chamam homens como eu de “terra de cemitério”, ou “oncinha”! Não admitirei! Direi apenas que sou tolerante com uma ou outra imperfeição física feminina. Em outras palavras, sempre há de me parecer que toda mulher tem alguma beleza, seja lá onde for. A não ser pelos defeitos maiores, vá lá.
Lembra-me também, ambos especializados, que levei meu pai a vê-la. Ele estava a trabalhar em demasia àquela época, e até na política se metera. Acabou dando com os burros n’água. Adoeceu e perdeu a eleição. Apareceu no hospital, eu de plantão, queixando-se de adinamia. Levei-o a vê-la e ela diagnosticou e tratou sua doença. Por isso afeiçoou-se a ela, sempre querendo notícias suas quando me encontrava.
Em tudo isso me foi muito solícita, muito atenciosa, como de praxe. Até que perdemos o contato. Sumiu do mapa a doutora. O mesmo ela deve ter pensado de mim. As forças centrífugas da vida nos movem para longe e, se não cuidamos, em breve longe estamos uns dos outros.
Por conseguinte, passaram-se os anos. Até que, certo dia – hás de lembrar-te – tu mesmo dela me deste notícias. Sem nada saber sobre minha ligação profissional com ela no passado, me perguntaste se eu lera o livro de certa doutora, assim, assim... Perguntei seu nome e tu: -“Fulana de Tal!” Ora, eis justamente que ela era a autora! E rasgastes panegíricos ao livro, à sua temática, ao seu estilo, à escorreita escrita. Curioso, comprei-o.
Li-o numa tarde. Ele narrava a história de sua vida durante o tempo de nossa ausência mútua. A obra era intimista; lasciva em certos trechos, dramática em outros, sempre emocionante, meu bem-querer por minha antiga amiga reacendeu. Anelei encontrá-la e mandei-lhe uma mensagem do telefone portátil, parabenizando-lhe. Ela não respondeu. Conjecturei a possibilidade de ela não mais usar aquele número.
Afinal, deixei a doutora lá, com seus afazeres. Pensei comigo que algum dia, em breve, nos reencontraríamos. Nossas especialidades têm muito em comum e poderíamos nos ajudar mutuamente com nossos pacientes, eventualmente. Regredi no tempo e imaginei nossa troca de expertise, a bem dos pacientes, como anos antes. Para mim a amiga estava guardadinha esperando a ajudar-me quando necessário.
Um pouco mais de tempo e aconteceu. Precisei dela. Do consultório, com a paciente diante de mim, bati-lhe o telefone. Dessa vez certifiquei-me de ligar o número correto. Confiando em minhas credenciais de amigo, queria que ela visse a paciente o mais rápido possível. Identifiquei-me e expus a situação.
Para minha surpresa ela foi taxativamente seca. E, mais do que seca, ela foi fria. Invocando motivos que considerei menores e não levando na devida conta nosso passado de cooperação mútua, falou que não podia ajudar a paciente da forma que eu esperava. Ficou claro para mim uma mudança na essência de minha amiga.
A paciente saiu e eu, inconformado, resolvi tocar-lhe novamente o telefone. Pareceu-me, no momento, que talvez ela não soubesse com quem estava falando, e me tomasse por outro Fernando. A abundância de "fernandos" em minha geração de médicos é conhecida à larga.
Sabes, Casoba, que tenho certo apelido que levarei ao túmulo. É certo que me hão de pô-lo ao epitáfio. Longe de me causar problemas, antes ele me identifica diante desses tantos “fernandos”. Lançar-lhe mão traz à memória dos mais incautos quem é o Fernando Cavalcanti. Assim, não me restou outra alternativa a não ser lançar mão deste "diferencial cognitivo":
-“Doutora, aqui quem fala é o seu amigo Fernando da Gata!”
Para minha frustração e decepção, seu coração seguiu empedernido. Dirás, Casoba, que estou a valorizar em demasia a minha futura inscrição sepulcral e direi que, sim, é bem possível. Mas, para que vejas como não minto, descrevo-te um episódio ilustrativo.
Outro dia o meu amigo Grijalva bate o telefone para o ilustre professor Ribeiro, nosso mestre de Anatomia Humana dezessete anos antes na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Usando o viva-voz a fim de que eu eventualmente viesse a entrar na conversa, disse: -“Professor, eu tenho aqui em minha frente um candidato do IJF ao mestrado no ano que vem: o meu querido Fernando.”
Professor Ribeiro respondeu:
-“Fernando... que Fernando?”
-“Fernando Cavalcanti.”
-“Fernando Cavalcanti?...”
E o Grijalva, exasperado:
-“ O Fernando da Gata, macho! ”
Aliviado, o Professor respondeu: - “Ah, por que não disse logo?... o Fernando da Gata!”
É inegável que a doutora não deu a mínima para o Fernando da Gata. Vê, Casoba, como é distante o caminho sem volta.
Por Fernando Cavalcanti, 16.02.2008
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