Outro dia falei dos dias modorrentos que se seguem a noites insossas e repletas de tudo o que não se aproveita. Ouve-se de tudo às noites vazias, e a única excelente exceção é a música. De fato, muita vez é a música que nos impele a esses arroubos solitários noite adentro. Não fosse por ela, que razão nos levaria aos riscos dessas noites inseguras? Ainda que às vezes se busque a emoção de encontrar um amigo distante, descobre-se, com imenso pesar, que o amigo está, de fato, mais distante do que se supunha. É cada vez mais reconhecido o distanciamento inexorável daqueles que se dizem amigos. Criam-se primeiramente as necessidades para só depois buscarem-se os meios. Daí estarem todos a correr para longe de si mesmos. Em breve estarão tão distantes que não mais encontrarão o caminho de volta.
Resta a música.
Nesta terra temos grandes e virtuosos músicos, para a sorte dos aventureiros da noite.Chego a pensar que faz parte de nossa pobreza a maneira como encaramos e vemos a arte em geral, e a música em particular. Somos pobres de espírito, acima de tudo; somos pobres de ambição, a boa ambição, motor que impulsiona aqueles que querem uma vida de liberdade; somos pobres por desamor àquilo que o dinheiro não compra. A pergunta que faço é: por quanto tempo perdurará nossa abjeta pobreza? Nossa pobreza não é a mera secura de recursos. Ela é, sobretudo, nossa aridez sentimental, nossa esterilidade de sensibilidade.
Não se cura pobreza com esmola. Só a abundância de bons sentimentos há de afastar essa chaga que carregamos incrustada na genética de nossa alma. O anjo não disse “paz na Terra aos homens de boa vontade”; mas, sim, “paz na Terra e boa vontade para com os homens”.
Os excelentes músicos desta terra haviam de ser agraciados com um mínimo da terrena boa vontade. Não é o que se vê. O que se vê, e se ouve, é a mais torpe pobreza de desamor à arte. E não falo da tentativa de fazer arte; falo da boa arte, da qualidade superior de arte. Não vai aqui uma defesa vazia e bairrista. Estendamos a crítica à pobreza e o elogio à boa arte também às terras vizinhas, ao país, que seja. Há que pressupor tudo isso porquanto há, com efeito, uma quantidade infindável de boas e belas porcarias em todos os lugares.
O que acontece? Ouvi outro dia, tendo uma boa música ao fundo, o seguinte: –“Não pago couvert artístico!” Eu, que ainda sou dado a indignações tolas e démodé, perguntei: –“Mas...” – fugiam-me as palavras, tamanha a minha perplexidade – “por quê não paga?” Meu interlocutor – na verdade uma interlocutora – explicou que havia uma lei que desobrigava quem quer que não quisesse pagar. “Mas os músicos estão ali, trabalhando, tocando pra você!” Ela tentou me explicar que sempre pagava a conta, onde se cobra também o couvert, com o cartão; e que tinha absoluta certeza de que essa quantia não seria repassada aos músicos.
Eis aí em minúcias a explicação que não explica. Eis aí o primor de idéia que viceja na mente de um raro espécime brasileiro com curso superior, que ganha o suficiente e muito mais, e que se nega a pagar seis ou sete reais para os músicos. Tudo porque tem absoluta certeza de que o empresário da noite não repassa a eles o que recebe. Eis a pobreza de idéia que faz músicos valorosos vítimas do descaso e desprezo de quem deles recebe o melhor. Imagina se todos os que estão ouvindo sua música resolvem fazer o mesmo.
Fernando Cavalcanti, 17.05.2010
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