domingo, 16 de novembro de 2014

UM BRINDE DE MENTIRINHA

          Entra ano e sai ano, e é sempre a mesma coisa. Amanhã, por exemplo, faz mais um ano o meu amigo Sérgio Moura. Se me perguntarem quantos anos faz o homem, nada direi. E não direi por uma simples razão: – não saberia a resposta. E direi mais ao incauto questionador: – não tenho como saber. 
          Os amigos quererão ver uma má vontade em minha atitude. Afinal, o que custaria para mim bater o telefone ao amigo e lhe fazer a  pergunta? Diria primeiramente ao amigo, para não espantá-lo: –"Como estás, ó Sérgio"? Ele, que muito gosta de falar de política e de seus tempos baianos, entabularia uma conversa qualquer ao final da qual eu, pegando-o de surpresa, diria: –"Ó, Sérgio, quantos anos completas amanhã"? (O confabulatório havia de ser hoje, impreterivelmente.) E havia de ser justamente neste ponto da conversa onde os problemas começariam.
          Uma parte dos leitores há de se lembrar que o Sérgio detesta fazer aniversário. E não falo somente do aniversário-festa, mas também do aniversário-envelhecer. Sim, acreditem os que ainda não haviam tomado conhecimento desta singularidade do amigo, mas é verdade. O Sérgio não conta o aniversário como um ano a mais, mas como um anos a menos. Ao se comportar dessa maneira, o amigo deixa de invocar a vida e passa a invocar a morte. É uma consequência inevitável. 
           Fácil perceber, após o esclareciemento do assunto, a razão da impossibilidade de se conseguir a informação pretendida, qual seja, a nova idade do amigo: – ele não a revelará nem a tiro. Para ele, o simples ato de dizer, por exemplo, "56" – não saiam por aí a ventilar que estou afirmando ser esta a nova idade do amigo –, já levaria o homem a ter cólicas desidratantes e dispnéias cianosantes. 
          Sei que haverá alguém mais esperto que se apressará a sugerir que, ao invés de tentar obter a informação diretamente do aniversariante, corramos a obtê-la de sua mulher. É possível, é possível. Contudo, há, desde já, a forte suspeita de que nem ela o saiba. Sim, porque o homem atormentado por esse tipo de fantasma torna-se, com o tempo, cada vez mais lacônico sobre o tema. Como o Moura casou-se já maduro, quase podre, supõe-se que nem mesmo a mulher tenha conhecimento da idade do homem. Por outro lado, e como fosse bastante discreta, sua mulher seria a cúmplice perfeita para guardar o segredo, e mais que segredo, o assunto mais indesejado de sua vida. 
           Há ainda outra questão, digamos, de etiqueta social. Não se deve, mesmo aos mais íntimos, estar a fazer perguntas consideradas de foro estritamente pessoal. É rude, é inconveniente, é deplorável. E, na verdade, não tenho o menor interesse na idade do amigo. Quero mesmo é beber de seu uísque! Até o ano passado eu costumava ligar para o amigo na véspera para cobrar-lhe o regabofe, mesmo sabendo de suas idiossincrasias e temores. O resultado invariável de minha intervenção era a promessa que jamais seria cumprida.(A festa pelo aniversário do ano passado ainda não aconteceu. Por aí se vê...) Tanto fez o homem que aprendi. Este ano nada cobrarei, nada direi, nenhum suspiro darei. 
          Confesso: – escrevi todo o trecho acima à véspera do dia do natalício do Sérgio. Subitamente fui, ao momento em que escrevia, acometido de um sono incontrolável e renitente, de modo que o deixei de lado e fui aos braços de Morfeu. Tencionava concluí-lo ainda ao mesmo dia, de modo que houvesse uma coerência temporal entre ele e a vida. Mas, não me perguntem por quê, o fato é que deixei o texto para lá, talvez influenciado pela certeza da indiferença com a qual meu amigo trata o passar de seu tempo. Pensava cá com meus botões que um dia haveria de concluí-lo. Ou não. Não seria a primeira vez que começaria a desenvolver idéias que poucos dias depois ganhariam um sabor amargo ou insosso, sendo por mim abandonadas sem a menor cerimônia.
         Contudo, vejam como a vida é cheia de surpresas e repleta de alternâncias. Hoje, ou melhor, ontem abro a rede social e me deparo com o que para mim foi um susto. O meu amigo Sérgio Moura estava se expondo àquela rede! Sim, o homem estava sendo parabenizado por uma China de amigos! Ao que me conste, ele lá não divulgara a data de seu nascimento de modo que, presumo, os que o parabenizaram já deviam ser conhecedores da mesma. Como na rede tudo se espalha como o caminho de pólvora progressivamente carcomido pela chama que avança, outros, e outros, e outros, e mais outros passaram a tomar conhecimento da festividade da data e vinham, também, felicitá-lo. Seria para mim a prova de uma mudança radical e definitiva se o meu amigo houvesse resolvido publicar a data de seu aniversário. Ainda assim, concluí que, sim, houve uma mudança digna de nota na maneira como ele está a encarar a data. Vejam o que ele diz lá: "Parabéns pelo tempo dos meus 55 anos". Ou seja, o homem confessou a idade com todos os efes e erres! Ora, vivas! 
          A coisa não parou por aí. Para meu espanto e respiração suspirosa, o Sérgio escreveu, bem ali na rede social, um texto onde se declara passado na casca do alho e – já o assumi – um homem maduro mas ainda não apodrecido, talvez apenas em vias daquilo que a inexorabilidade do tempo não perdoe. Fala de suas cãs e de suas linhas, de seu ventre um pouco abaulado, e de seu descaso para com a opinião alheia sobre si mesmo. Foi, com efeito, um texto típico de gente entrada em anos, estafada da lengalenga alheia, de saco entupido da conversa pra boi dormir. Conclusão: – foi um bom e oportuno desabafo. Nada mau para quem trancafiava-se a sete chaves por anos a fio ao dia de seu natalício.
          Entretanto, faltou o lado prático do manifesto. O amigo em nenhum momento de seu texto convocou os comparsas a juntarem-se a ele para o velho, desejável e desejado regabofe. Donos de um solar provido de deque e piscina, o amigo e a mulher bem poderiam ter dividido com os mais chegados os momentos de descontração tão agradáveis nesses momentos da vida. Até porque o dia foi um sábado, excelente para tais regalórios. Em vez disso, que fez o Sérgio quando lhe bati o telefone, tão logo lhe li a lauda? Resposta: – fez o que sempre faz, ou seja, não me atendeu a ligação. 
          E então percebi a verdade contundente e cruel: – Sérgio mudou um mísero e pseudoperceptível angstrom. Escondeu-se, como todos, na rede social, na nuvem da virtualidade onde o abstrato mais habita do que existe. Na concretude da realidade preferiu virar fumaça e, mais uma vez, sumir. Desconfio que o fez com receio de que eu, também mais uma vez, cobrasse o regabofe como faço todos os anos. Enganou-se o amigo. Liguei apenas para informar-lhe que estava a preparar mais um texto por ocasião de seu aniversário. Um texto resignado sobre o regabofe que, tenho certeza, jamais realizar-se-á. E aí ficaria a pergunta? Cadê o brinde que o Sérgio propôs em seu texto? Só agora me ocorre: – o brinde foi tão virtual quanto a mudança do Sérgio...

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